Que tendências sociais Macri conseguiu interpelar? O que foi que entendeu sobre a Argentina? Por José Natanson
Como se explica a vitória do Cambiemos [n.t.: chapa de Macri] nas eleições de domingo? [1] Proponho um método bastante empírico para enfrentar o desafio de entender os resultados: consiste em tomar em conta que o macrismo governa a cidade de Buenos Aires faz uma década, que há dois anos surpreendeu com uma vitória na província de Buenos Aires e no país e que, tendo passado já a metade de seu mandato, conseguiu revalidar-se de maneira contundente. Proponho esquecer-nos por um segundo dos memes de Esteban Bullrich [ministro da educação], sacudir o asco instintivo que nos gera a contemplação da peça publicitária armada de seus festejos e, por fim, começar a tomar seriamente o macrismo.
Os motivos do triunfo, então. Como vem ocorrendo, Cambiemos desenvolveu uma campanha profissional que se ajustou ao que Jaime Durán Barba [n.t.: marqueteiro de Macri] define como “disciplina estratégica”, isto é, não se desviou da linha traçada, e incluiu esforços importantes como a devastadora blitzkrieg midiática de María Eugenia Vidal [governadora da província de Buenos Aires] nas 48 horas prévias ao fim do período eleitoral oficial. No entanto, existe algo mais que uma simples habilidade tática detrás do triunfo do macrismo, que, no domingo passado [13 de agosto], conseguiu consolidar-se como a força mais votada a nível nacional, melhorou sua performance em comparação com 2015 e derrotou o peronismo em bastiões históricos [2]. Que tendências sociais conseguiu interpelar? O que foi que Macri entendeu sobre a Argentina?
Em primeiro lugar, o governo identificou temas que vinham gerando uma crescente preocupação social e sobre os quais o kirchnerismo não havia elaborado uma política conclusiva, entre os quais se destaca o narcotráfico. É claro que a abordagem demagógica escolhida não conseguirá resolvê-lo e inclusive é provável que, como ocorreu com outros líderes latinoamericanos punitivistas, em algum momento isso se volte contra ele. Pelo momento, no entanto, é suficiente nomeá-lo: não faz falta levar anos investindo em seções lacanianas de vinte minutos para entender o alívio profundo que produz o simples feito de colocar em palavras um problema, de nomear o que até então permanecia calado.
A política exige muitas coisas, entre elas a capacidade de detectar as angústias sociais: o narcotráfico pode parecer longínquo para aqueles que nos relacionamos com a droga através de um copo e vivemos em bairros centrais, longe da rede formada entre líderes do tráficos, aviõezinhos e soldados, mas aparece como uma ameaça cotidiana, quase existencial, para aqueles que se veem obrigados a conviver com ele todos os dias. A linha antimáfia que sublinha Vidal, apresentada como cruzada contra os poderes obscuros da província, e as diversas declinações do giro punitivista oficial, são a resposta – insisto: equivocada e perigosa – a este problema.
Mas existe algo mais do que a pontaria programática detrás da vitoria oficialista [n.t.: governista] nas eleições primárias. Cambiemos, já indicamos, expressa uma nova direita: democrática, disposta a marcar diferenças econômicas com a direita noventista, e, socialmente, não pela inclusão mas pela compaixão. Para transmitir com eficácia essa ideia forte, o macrismo se apoia em dois pilares. O primeiro é a decisão de prolongar a generosa armação de políticas sociais construída pelo kirchnerismo: Asignación Universal por Hijo [programa de renda mensal paga por cada filho de pessoas desempregadas, trabalhadores da economia informal, trabalhadores do serviço doméstico e beneficiários de quatro programa sociais], aposentadorias, inclusive as cooperativas do programa Argentina Trabalha, que anteriormente haviam denunciado como um foco de clientelismo e corrupção. O segundo é sua gestão na cidade de Buenos Aires: como durante seus dois mandatos de chefe de governo Macri não rompeu o consenso em torno da universalidade dos serviços públicos (não privatizou escolas nem hospitais e não proibiu os habitantes da província, nem sequer os paraguaios, de serem atendidos neles), pode construir a imagem de uma administração eficiente e moderada, que ademais produziu uma melhoria importante do transporte público e que dedicou recursos tanto aos espaços públicos de parques e praças como à oferta cultural orientada à classe média.
Isto não implica, clarificamos novamente, uma avaliação positiva de sua performance no governo da cidade, mas apenas reconhecer que se houvesse se comportado de outro modo, provavelmente não teria ganhado todas as eleições portenhas desde 2007 e talvez tampouco a Presidência. Porque o espelho desta caracterização sossegada do macrismo é a agitada imagem grosseira que durante demasiado tempo quis pintar o kirchnerismo: a consigna “Macri basura / vos sos la dictadura” [Macri lixo, você é a ditadura], em particular, refletia a incapacidade de compreender a verdadeira natureza da criatura política que se tinha à frente.
E neste sentido cabe perguntar-se também se a insistência em equiparar o macrismo com o menemismo noventista [3] não é a esta altura algo estéril: ainda que seu programa macroeconômico de metas de inflação, altas taxas de juros e ciranda financeira se alinhe claramente com a ortodoxia, a decisão de não recortar gastos públicos nem recorrer a demissões massivas de empregados estatais, junto à promessa de não reprivatizar as empresas públicas (nem sequer aquelas que, como as Aerolíneas Argentinas, geram prejuízos), marca um contraste com os anos 90. O neoliberalismo de Macri é um neoliberalismo desregulador, de abertura, anti-industrialista e, claro, socialmente regressivo, mas não é privatizador nem anti-estatista. Talvez isto explique porque, apesar da deterioração visível da situação socioeconômica, um setor importante da sociedade acredita na promessa oficial de que as coisas logo melhorarão.
Acontece que o neoliberalismo macrista inclui também uma proposta de justiça, sintetizada na perspectiva de igualdade de oportunidade, a única referência mais ou menos abstrata que o presidente se atreve a incluir em seus discursos. Frequentemente acompanhada de exortações a recuperar a “cultura do trabalho” e evitar “atalhos e malandragens”, a igualdade de oportunidades é a resposta que filósofos liberais notáveis como John Rawls e Amartya Sen encontraram nas dificuldades para confluir igualdade e liberdade nas sociedades contemporâneas. Apresentada na Argentina de hoje, a perspectiva encarna o trabalhador meritocrático, o verdadeiro sujeito social desta nova batalha cultural, e sintoniza com a tradição imigrante que é parte constitutiva de nossa cultura política: a ideia de progresso com base no esforço individual (no máximo familiar) que lhe permite chegar com uma mão na frente e outra atrás e progredir até ascender ao mundo encarpetado da classe média, o mito do “meu filho médico”.
Antes de que chovam tomates em mim, clarifiquemos: que o oficialismo formule este discurso não implica que a gestão concreta do seu governo o esteja levando em prática nem que seus principais dirigentes sejam exemplos de self-made men: o caso do macrismo é um assombroso exemplo de herdeiros meritocráticos. Mas o objetivo desta nota não é denunciar a simulação do Cambiemos nem desnudar a escuridão de sua alma verdadeira senão entender porque suas propostas terminam sendo convincentes, indagar os motivos profundos de sua eficácia, entender por que funciona.
O macrismo conseguiu expressar também certa marca da sua época. Sua apelação aos valores pós-materiais, aqueles que vão mais além das necessidades cotidianas da sobrevivência, são sedutoras para as classes médias acomodadas em um contexto de hipersegmentação social, onde os setores mais privilegiados levam uma vida mais parecida com a de seus pares sociais de Nova York ou Paris do que a de seus sofridos compatriotas que vivem na periferia, a uma viagem de ônibus de distância. Isto se verifica nas vagas tonalidades ambientalistas do slogan “cidade verde”, na importância atribuída ao cuidado de si (expressada na retórica new age, nas ciclovias, nas feiras de comida saudável) e uma revalorização da cotidianidade frente ao sacrifício totalizante que exigia a militância kirchnerista (Macri insiste que seus funcionários devem voltar a suas casas antes do anoitecer para jantar em família). Todos estes aspectos, fomentados por uma gestão multi-target que se segmenta em setores tão específicos como a seita dos runners, as demandas éticas dos veganos e as pautas insondáveis dos amantes de bichos de estimação, terminam de completar a ideia do macrismo como uma força política moderna e cosmopolita, à altura dos tempos.
Por último, Cambiemos se apresenta como uma renovação modernizante da política. Sem entrar uma vez mais em discussões sobre a realidade concreta de suas ações (a manipulação do escrutínio da província de Buenos Aires desmente o suposto higienismo), indiquemos que, auto-reivindicando-se como o primeiro partido político do século XXI, o macrismo se proclama como um passo adiante a respeito dos vícios e manhas das agrupações tradicionais.
Mais preocupados com a época que com a épica, o oficialismo defende uma visão anti-heróica dos assuntos públicos, uma reivindicação da normalidade cuja grande encenação é o timbreo [n.t.: campanha política de tocar a campainha por diferente bairros para falar com os moradores]. Concebido como um contato direto entre o funcionário e as pessoas, o timbreo é espontâneo, informal, quase diríamos puro, em contraste com a forma favorita do populismo: os atos de massa e toda sua parafernália de organização, logística, protocolo de oradores e longas negociações prévias pelos lugares no palco. Decisivamente, o timbreo permite deslocar o eixo de “cidadão” para “vizinho”. Ainda que quem aperte a campainha seja um funcionário nacional, inclusive um ministro, a governadora ou o próprio presidente, a política se torna, em um passe de mágica, local: a mensagem é que são os problemas imediatos e cotidianos os que realmente importam, os que o político, como mostram as fotos que logo circulam pela mídia, se aproxima para escutar.
O efeito é individualizante. Longe das assembleias, as mobilizações ou qualquer outra forma de apelação coletiva, o timbreo é a operação ideal da política macrista porque sintoniza com sua concepção da sociedade como uma agregação de individualidades. Ao limitar-se a um contato bilateral funcionário-vizinho, o timbreo aponta à particularidade de cada pessoa: a singularidade de seu problema concreto prevalece sobre sua condição de classe ou filiação política, que é o que ao fim e a cabo o que irmana os indivíduos em uma identidade comum e que, em última instância, os constroem como iguais.
Rebobinemos antes de concluir. A ampla vitória oficialista nas eleições primárias se explica por seus dotes de campanha mas também pelo feito de que expressa uma alternativa política capaz de conectar com amplos setores sociais. O macrismo não é, recorrendo à fórmula de Ricardo Forster, uma anomalia, um acidente ou um golpe de sorte; é uma força potente que se encontra no transe de construir uma nova hegemonia. Os resultados socialmente negativos de suas políticas, o fundo individualista que vive por trás de suas decisões, a concepção liberal de justiça que sustenta seu discurso o empurra sem remédio à direita do quadrante ideológico, mas se trata de uma direita democrática e renovada, que até o momento estava ausente de nossa cena política. Essa é a grande novidade, a notícia que a oposição deveria registrar se de verdade deseja ganhar em outubro.
Sobre este artigo
Publicado originalmente no jornal Página/12 em 17/08/2017. José Natanson é diretor do Le Monde Diplomatique, Edição Cone Sul. Traduzido por Primo Jonas para o Passa Palavra.
Notas do Tradutor
[1] Vitória eleitoral nas PASO parlamentares, “eleições Primárias, Abertas, Simultâneas e Obrigatórias”, eleições primárias gerais de todas as chapas que concorrerão às eleições na Argentina, instituídas em 2009. Ver https://es.wikipedia.org/wiki/Elecciones_primarias_en_Argentina
[2] A partir dos resultados oficiais, que demoraram mais de 2 semanas para contabilizar os votos e revelou uma manipulação escancarada da contagem e dos resultados por meio de uma contagem “não oficial” feito por uma empresa privada, constatou-se que a lista de Cristina saiu ganhadora na província de Buenos Aires – o principal bastião peronista.
[3] Referência à Carlos Menem, presidente da Argentina pelo Partido Justicialista durante toda década de 1990.