Por Leo Vinicius

 

Entre os próprios ativistas britânicos do autodenominado movimento de ação direta é reconhecido que, como um todo, ele era (ou ainda é) formado por estudantes, desempregados (beneficiários do dole), e pessoas que arrumam empregos temporários ou transitórios. O trabalho, ou o trabalho subordinado, era algo marginal na vida dessas pessoas. As suas existências estariam ligadas muito mais à esfera do “consumo” do que à esfera da “produção”, do emprego.

Na pesquisa feita por Derek Wall, muitos dos entrevistados participantes do Earth First! britânico e do movimento antiestradas haviam feito parte anteriormente de outros grupos ecologistas (Friends of Earth, Partido Verde, Greenpeace) ou de outras organizações políticas (grupos marxistas, por exemplo), mas se sentiram frustrados em determinado ponto e foram atraídos pela organização mais informal do EF! e sua ênfase na ação direta. Wall também salienta a “disponibilidade biográfica” como importante fator para o “envolvimento ativista”. Isto é, normalmente os envolvidos possuíam bastante disponibilidade de tempo e poucos compromissos (não possuíam filhos e sobreviviam com o dole ou eram estudantes). A ausência dessa disponibilidade de tempo chega a ser um fator que obstruiria a participação e integração efetiva no movimento, e na “comunidade ativista”. Relatando sua experiência de aproximação e participação no movimento, uma ativista aponta que a combinação da sensação de se sentir julgada, falta de autoconfiança e a falta de tempo livre a fez dar muito poucos passos na direção de se envolver em qualquer tipo de ação direta.

É reconhecido por eles que a idade dos ativistas se encontra, com poucas exceções, na faixa dos 18 aos 35 anos. Mark Weinstein, ao pesquisar no início desta década participantes do movimento de ação direta britânico com idades abaixo de 30 anos – entre os quais membros do RTS, do EF! e de outros grupos anticapitalistas –, conseguiu chegar a algumas conclusões que nos são pertinentes. A grande maioria vinha de famílias de classe média com uma confortável situação financeira. Com ocasionais exceções, chegaram ao menos a cursar o ensino superior, geralmente em ciências humanas e artes. A mesma ativista a qual nos reportamos na nota acima, descreve o perfil dos ativistas como: estando entre 18 e 35 anos (majoritariamente na faixa dos 20 anos), esmagadoramente brancos e bem escolarizados, que se vestem de maneira parecida e que costumam usar cabelos engraçados. Em muitos casos os pais tinham algum envolvimento político e ajudaram a fomentar uma visão crítica nos filhos sobre questões sociais e ecológicas, segundo a pesquisa feita por Weinstein. Bastante normal era a busca pela compreensão dessas questões através de livros. A leitura em geral impulsionava-os mais ainda a se tornarem ativos politicamente. Quase sem exceção manifestações e ações de resistência como em Twyford Down, a luta contra a M11, o J18, entre outras, tiveram um importante papel inspirador. O contato com algum desses eventos muitas vezes teve um importante papel ao engajamento político.

Para a grande maioria dos ativistas de ação direta entrevistados por Weinstein, havia uma obrigação de tentar mudar o mundo, que por sua vez estaria enraizada em um forte sentimento de culpa por sua situação de classe média em um país de primeiro mundo. Essa constatação confirma a proposição do ativista brasileiro residente na Inglaterra que vimos na primeira parte desta série de artigos, de que a sensibilidade “global” dos ativistas ingleses viria em grande parte da consciência de que seu estilo de vida seria sustentado pela exploração de outros povos. Mas apesar de expressarem objetivos políticos de longo prazo – como fundar uma democracia real, com participação direta – os ativistas claramente teriam seu foco voltado para questões mais imediatas, com objetivos de curto prazo ganhando grande importância, como o sucesso de alguma ocupação ou bloqueio programado, que teria algum impacto imediato nos lucros de alguma empresa ou no retardamento de algum projeto. Essas vitórias pontuais teriam o poder de revigorar o grupo de ativistas, e seriam sentidas como grandes conquistas. Ao mesmo tempo, outro objetivo era manter o nível de ativismo de tal modo que não comprometesse a saúde psíquica e física. O burn out (esgotamento, estresse) aparecia como tema recorrente entre os ativistas.

Nas entrevistas feitas por Mark Weinstein o projeto pessoal de futuro dos ativistas aparece como o de simplesmente manter o que eles fariam no presente, conservando sua situação atual, uma vez que eles sentiriam ter controle sobre suas vidas. Nenhum plano de carreira é mencionado. A vida é vivida no presente mais imediato. No entanto, apresentariam uma lista de coisas que gostariam de evitar. E trabalhar em empregos convencionais – mesmo como voluntário ou como caridade – sempre estava no topo dessa lista. Evitar cair na armadilha do emprego convencional, com tudo que ele teria de alienação e perda de possibilidades, seria algo altamente almejado pela maioria dos ativistas.

Essa fuga da subordinação do trabalho e mudança de subjetividade – alguns diriam perda da ética do trabalho – e a conseqüente criação de novos estilos de vida, apareceu principalmente na forma e categoria social juventude, e nos países capitalistas dominantes – como a Inglaterra – onde a margem de liberdade obtida pelos trabalhadores era maior, tornando-se factível a recusa da disciplina do trabalho. Faz-se presente no próprio meio ativista britânico a compreensão de que desde os anos 1960 as várias contraculturas anarquistas/ecológicas que surgiram foram todas predominantemente movimentos de juventude operando no espaço da autonomia cuja base material era o dole – autonomia chamada pelos próprios ativistas muitas vezes de dole autonomy. O dole seria um elemento fundamental dessa margem de liberdade.

Se nos anos 1980 o anarcopunk foi a contracultura rebelde mais notável no Reino Unido, nos anos 1990 foram, para Aufheben, o movimento antiestradas e a campanha contra a Criminal Justice Bill, que reuniu diversos estilos de vida e contraculturas e criou laços que deram impulso ao RTS. E foi no contexto da luta contra a Criminal Justice Bill – que buscava criminalizar as formas de ação dos diversos grupos de ação direta e seus estilos de vida – que em 1996 o governo britânico criou o Job Seeker’s Allowance (JSA), impondo um novo conjunto de regras que dificultavam o direito ao dole, reimpondo o trabalho como imperativo econômico, significando assim um sensível ataque aos estilos de vida, contraculturas e ativismo político que tinham no dole uma importante base material.

Em geral essas contraculturas que floresceram no espaço de autonomia do dole possuem uma vida temporal restrita. Seus limites são dados por serem em grande parte contraculturas geracionais. Na apreensão de ativistas, elas falharam tanto em acolher as necessidades de seus membros mais velhos quanto em envolver novas gerações (uma exceção teria sido a contracultura traveller, na qual se poderia encontrar três diferentes gerações simultaneamente). Conseqüentemente, com vistas a objetivos de transformação social mais amplos e profundos, uma conclusão tirada por eles seria a da necessidade de algum tipo de estrutura sustentável, uma contracultura que pudesse ser mantida ao longo dos anos, evitando que acabasse quando seus membros alcançassem os 30 anos ou que os mesmos erros fossem repetidos a cada 15 anos por falta de contato e herança entre gerações, como por exemplo o aprendizado de que problemas específicos como a construção de estradas e a exploração animal estariam ligados a uma totalidade chamada capitalismo. Em suma, construir uma cultura multigeracional que pudesse manter seus partícipes por longo tempo, para que a ação direta fosse bem além de um período de “feriado de autonomia excitante” entre o fim do colegial e a entrada no mundo do trabalho e no mundo dos cuidados maternais e paternais.

Ao lado desse limite geracional, aparece ainda com mais ênfase e mais freqüência nas reflexões autocríticas de integrantes do movimento de ação direta o limite subcultural do movimento.

Mais especificamente quanto ao movimento antiestradas, ao lado do entendimento de que apesar das suas incoerências e inadequações internas o movimento expressava um lado da luta de classes – resistindo ao desenvolvimento capitalista e às necessidades do capital –, havia também o entendimento de que embora as comunidades de luta do movimento antiestradas pudessem ser muito criativas e inspiradoras, elas eram problematicamente baseadas nos limites de um movimento subcultural e de estilo de vida. Numa forte autocrítica, um ativista que assina como Paulp, em um livro publicado pelo Reclaim The Streets com reflexões e autocríticas sobre o dia de ação global J18, afirma que se trata de uma cena fashion de protesto assentada no estilo, formada majoritariamente por brancos vindos da classe média. Nesse mesmo caminho de reflexão o desafio ao movimento de ação direta é também posto nos termos de se construir e sustentar uma cultura de resistência – como oposto a uma subcultura de estilo de vida – que consiga ser tão inclusiva quanto possível.

Anti-M11 (1994)

O fato, como observa um ativista que assina como Andrew X, de forma autocrítica, é que a unidade que possuiria o movimento de ação direta não viria por terem um mesmo trabalho ou viverem numa mesma região, mas do compromisso intelectual com um conjunto de idéias. A fonte de unidade e identidade viria dos projetos autônomos (e autonomistas) desenvolvidos pelos grupos e indivíduos, formando uma “cultura do-it-yourself”. Em vários textos reflexivos de grupos e integrantes do movimento de ação direta a ação política ligada ao “ativismo” e ao estilo de vida aparece como algo altamente pessoal/personalizado, uma espécie de escolha feita num supermercado de causas, das quais as mais “sexys e inspiradoras” levariam vantagem na escolha. Para o coletivo Aufheben, o que uniria o “outro” a esse “personal” individualizado do estilo de vida e da subcultura não seria a solidariedade, mas o sentido de liberdade de escolha moral. Dessa forma a política não estaria nascendo mais da necessidade. O mesmo aponta Andrew X ao afirmar que as lutas do movimento não se baseiam nas necessidades diretas de seus participantes, parecendo desconectadas e arbitrárias. O movimento de ação direta seria desta forma “incapaz de desenvolver um senso de prioridade coletiva ou de importância histórica”. Essa última observação, presente também em outras publicações e coletivos, é desenvolvida no sentido de apontar ao movimento a necessidade de ter uma orientação estratégica, que até então se faria ausente.

Havia também uma expectativa de que as restrições ao direito do dole, forçando conseqüentemente a que os ativistas que vivem do dole buscassem trabalho, forjasse uma base de convergência dos interesses e perspectivas de trabalhadores e ativistas, fazendo convergir assim as necessidades e perspectivas dos ativistas com as de um espectro social maior. Outra expectativa era a de que o trabalho em call centers e no telemarketing, onde normalmente iam parar muitos dos participantes do movimento de ação direta forçados a sair do dole, criasse as condições para a política do movimento de ação direta emergir da necessidade direta de seus participantes, em sua relação supostamente mais direta com o capital.

Uma questão nesse sentido foi levantada e discutida no movimento de ação direta: por que os ativistas desse movimento não voltaram seu ativismo político contra as políticas que estavam cortando e restringindo o dole, a própria base material dos seus estilos de vida e ativismo? Algo que pareceria inicialmente paradoxal, e que foi matéria de uma elaborada crítica, feita inicialmente pelo coletivo Aufheben. Enquanto protestos vigorosos e a resistência dos ativistas de ação direta – protagonizados por “desempregados” – se direcionavam à construção de estradas e davam forma às festas de retomada das ruas do RTS, o governo cortava os benefícios dos desempregados sem que esses mesmos ativistas-desempregados se levantassem contra. O fato era que uma forte cultura política sustentada na sua própria existência pelo dole escolhia, na visão de Aufheben, não defender seus interesses imediatos mas sim se concentrar em causas altruísticas como impedir a construção de estradas e salvar florestas. A conclusão de Aufheben era de que a escolha seria entre a mundana mas necessária luta contra as restrições ao dole, e a excitante e glamurosa ação eco-ativista.

Uma elucidativa resposta aos questionamentos e críticas levantadas por Aufheben, vinda também de dentro do movimento de ação direta, apareceu na oitava edição da revista Do or Die. O anônimo interlocutor – praticamente todos os textos publicados em Do or Die não são assinados – apontava que os temas e as bandeiras de luta dos acampamentos de resistência ou das festas Reclaim The Streets não eram a principal motivação por trás dos que se envolviam neles. Seria menos ainda os temas ou bandeiras de luta – retomar as ruas, impedir estradas, salvar florestas – o que faria essas atividades terem sucesso e serem largamente abraçadas. Casas em árvores e festas de rua expressariam, muito mais do que as campanhas contra a restrição do dole, a necessidade das pessoas envolvidas de transformar suas relações e vidas cotidianas e lutar por si próprias. Aí estaria a chave para se entender a escolha das bandeiras e temas de luta por parte dessa juventude ativista britânica. Quando esta dizia que as campanhas contra a JSA eram chatas, ela expressaria uma necessidade real, e não apenas uma crítica arbitrária. Expressariam exatamente que, embora podendo ser mais radical em conteúdo do que os eco-protestos, a campanha anti-JSA era muito menos radical na sua forma – tinha a forma de uma atividade política tradicional, como a levada a cabo por partidos e sindicatos. O ponto principal, apresentado em Do or Die, seria retomar o controle sobre nossas vidas, e se isso fosse feito a partir de uma bandeira de luta pelas “árvores”, pouco importaria. Viver em um local de resistência e protesto, como os acampamentos contra construção de estradas ou os squats contra a M11, permitiria essa transformação na vida cotidiana, sendo o que atrairia tantas pessoas a esses locais de ativismo. A estrada, ou qual fosse o conteúdo do protesto em si, seria muitas vezes secundária para a criação de comunidade e para a descoberta do poder coletivo que envolveria a vivência nos locais de protesto. E isso seria expressão de uma necessidade e interesse imediato dessas pessoas. Seriam os próprios locais de protesto e a forma de ação – a ação direta que traz um sentido de aumento de poder – que teriam tornado as lutas antiestradas naquilo que se tornaram, em termos de sucesso e adesão. Podemos perceber então que a mudança de vida se dá no momento e pela própria ação (direta), o que diferencia também a relação do movimento britânico com a ação direta encontrada em outros movimentos sociais nos quais a mudança de vida almejada por seus integrantes se dá primordialmente através de uma conquista material – terra para produzir, trabalho/renda etc.

O privilégio da forma de ação sobre o conteúdo da mesma corrobora o que Chris Knight dissera sobre o RTS: a ação vem antes de tudo, e o RTS seria encarado por vários de seus mais ativos participantes mais como um movimento de faça-você-mesmo, de ação direta, do que de protesto ou festa.

À sua maneira, e com invejável autocrítica, o movimento de ação direta britânico, que foi parte importante do ciclo de lutas contra os gestores da globalização capitalista, enfrentou contradições ou tensões que movimentos sociais em geral têm que enfrentar, mas dentro das suas especificidades: tensões entre forma e conteúdo, entre resultado imediato e visão de longo prazo. Além da dificuldade de manter um movimento através dos anos, principalmente quando sua base é a juventude.

Leia as partes I, II, III e IV.

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Referências usadas

Revista Do or Die: http://www.eco-action.org/dod ;

As publicações do coletivo inglês Aufheben: http://www.geocities.com/aufheben2/ ;

Entrevista com Chris Knight e Pauline Bradley, The Liverpool Dockers and Reclaim The Streets, 9 de março de 2002;

O artigo Mustn’t Grumble, assinado por Paulp, publicado no livro Reflections on J18 pelo Reclaim The Streets de Londres em 1999.

O artigo War is the Health of the State, do Brighton and Hove Stop the War Committee, publicado em Do or Die nº 8, 2000. Disponível em http://www.eco-action.org/dod/no8/

O artigo de Andrew X, Postscript of Give up Activism, em Do or Die nº 9, 2001. Disponível em http://www.eco-action.org/dod/no9/activism_postscript.htm

WALL, Derek. Earth First! and the Anti-Roads Movement: Radical environmentalism and comparative social movements. Londres: Routledge, 1999.

WEINSTEIN, Mark, Political Activity and Youth in Britain. In: TAYLOR, G.; TODD, M (eds.). Democracy and Participation: Popular Protest and New Social Movements. Londres: Merlin Press, 2004.

Practice and Ideology in the Direct Action Movement. In: Undercurrent nº 8, 2000. Disponível em http://www.geocities.com/kk_abacus/ioaa/pracideo.html

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