Por Ian Caetano
Vi poucas cenas na vida tão emblematicamente tristes quanto a de uma fachada de museu – e não qualquer museu, o mais importante e antigo do Brasil e um dos mais importantes do mundo – na qual, pelas aberturas da janela, podia-se ver o vazio da ausência de pavimentos e o céu, que, sob determinados ângulos, pelas janelas aparecia, visto não haver mais telhado que o ocultasse. Uma casca, marcada pela fuligem e pelos demais sinais deixados pelo fogo. Foi assim que, no dia 03 do presente mês, encontramos, eu e mais alguns indignados e entristecidos, o Museu Nacional, situado na Quinta da Boa Vista (Rio de Janeiro).
O incêndio que tudo tragou começou na noite do dia 02 (um domingo). Por sorte, fora de horário de visitação. Sabe-se lá o tamanho da tragédia que sucederia houvesse visitantes ali dentro. Acompanhei no dia 02, pelo televisor, as cenas devastadoras. O prédio em chamas a cuspir labaredas, extravasadas pelos vãos que antes eram janelas e pela parte superior, que antes era telhado. Como sói de ser, as redes sociais ficaram em polvorosa. Nisso, dentre o turbilhão de postagens e caos informacional (com pessoas alegando desde incêndio criminoso, até a possível queda de um balão de São João que poderia ter sido a causa do ocorrido. Consideradas as condições defasadas da estrutura do prédio, não seria surpresa se descobrirem que o problema foi simplesmente endógeno), surgiram então duas postagens de atos em defesa do patrimônio histórico, científico e cultural do nosso país (e, vale lembrar, de diversos outros lugares do planeta, visto que o museu abrigava artefatos – raríssimos – e obras de várias outras regiões do globo). Ambas para o mesmo dia: 03. Uma às nove da matina, em frente aos portões que guardam a Quinta da Boa Vista, outro às dezesseis horas, na Cinelândia (local mais corriqueiramente preferido para manifestações deste tipo).
Desde sempre, mas principalmente depois de vir residir no Rio de Janeiro, percebi o quanto os museus são importantes, o quanto me transformaram, o quanto são necessários e benéficos à edificação de uma sociedade melhor. Não é, nem de longe, a condição suficiente, mas certamente é um agregador salutar e sobremodo potencializador. Com isto em mente, resolvi que deveria ir aos atos. Experiência que narro a seguir. Aqui cabe uma advertência: a despeito de uma comparação de elementos equiparáveis, não há nenhum desejo de hierarquizar qual protesto tem maior ou menor mérito, qual é mais ou menos legítimo, ou qual é mais “verdadeiro” e qual não é. Creio que cumpriram papeis distintos no atual contexto e que podem (não necessariamente, mas podem) ser complementares.
A história começa cedo
Acordei por volta das cinco da matina, no Rio, nesta época, o céu nestas horas ainda está escuro. Perdi o sono, extasiado ainda com o ocorrido. A perda de um patrimônio arqueológico, antropológico, geológico, paleontológico, histórico, documental… humano, inestimável. O quinto maior museu, em acervo, do mundo. Resolvi já ir-me aprontando para direcionar-me rumo ao metrô. Depois de engolir um café da manhã e tomar um banho, saí. A estação de São Cristóvão, onde se deve desembarcar para chegar ao parque que abriga(va) o Museu, era a apenas duas paradas da estação mais próxima de minha residência. Havia ali meio punhado de pessoas (claro, ainda contava pelo menos uma hora e meia para o horário anunciado no evento), todas com ar arrasado, enlutadas. Entre conversas informais, descobri os organizadores (ao menos foi o que alegaram) do evento. Dois pós-graduandos do Museu, um de geologia, o outro de botânica. Ambos igualmente arrasados e visivelmente embargados por um sentimento de perplexidade e amargor. Mais tarde fui perceber que não só não tinham agremiação política, como tinham pouca experiência com este tipo de seara (organização de atos públicos). O que os levou a articular aquela mobilização foi a pura e simples indignação e o sentimento doloroso de perda que os acometia, e não só a eles. Não havia ali um interesse de capitalizar politicamente por ser desta ou daquela afiliação partidária ou ideológica. O que havia era o explícito e simples desejo de fazer alguma coisa quanto ao ocorrido.
Foi-se, aos poucos, aglutinando gente. Esperávamos um pequeno carro de som (não destes em que as pessoas sobem, mas um modesto automóvel regular com um aparelho de som em cima), que havia sido cedido voluntariamente. Fomos presenciando a chegada mitigada de estudantes do Museu, alguns frequentadores esporádicos, militantes independentes, quadros da UJC (União da Juventude Comunista, divisão de juventude do PCB), do PSOL (Partido Socialismo e Liberdade), uns quantos da juventude petista, alguns ativistas de repertório mais libertário e até mesmo, ainda que em menor número, alguns indivíduos que, na fala, expressavam um difuso posicionamento liberal… Enfim, um espectro político plural.
Havia bandeiras explicitadoras das posições de cada um destes pontos do espectro político; havia adesivos nas camisetas, externando a predileção por este ou aquele candidato; havia uma clara diferenciação estética dos grupos, que demarcava as diferenças ideológicas, organizacionais e programáticas destes mesmos… Nada disso importava. Ninguém estava ali pra demarcar posição, apesar da posição estar manifesta. As pessoas estavam ali simplesmente porque a perda do Museu era não só inaceitável e indignante, como dolorosa.
No carro de som, nenhuma fala interessada em relacionar a tragédia a uma saída que visasse alavancar este ou aquele grupo político-partidário. Foram falas que apontavam a preocupação com outros prédios passíveis de semelhante destino, falas de experiências de estudantes e frequentadores do Museu, que agora viam algo que os apaixonava em cinzas e ruínas. Foram falas, ainda que pulverizadas e pouco sistemáticas, tentando pensar como reconstruir o que se perdeu e recuperar o pouco que se salvou. Foram falas genuinamente orientadas a um objetivo e indignação que amarrava organicamente todos que ali estavam.
Não romantizo. É evidente que para transformação efetiva de uma dada realidade o sentimento – de indignação – agregador não basta, mas foi tocante ver, nestes tempos em que é tão raro presenciarmos posições genuinamente abertas, e não teleologicamente orientadas (no sentido mais comezinho da expressão), se manifestando simplesmente porque aquilo era importante, importante àquelas pessoas.
Os portões que guardam a Quinta da Boa Vista estavam cerrados, a guarda municipal vedava a passagem. “As ordens são para que ninguém passe”, disseram. A alegação era a da instabilidade ainda não averiguada da construção, muito embora, ao longo do dia, a justificativa fosse mudando (para medo de furto do patrimônio sobrante resgatado, por exemplo). Não se nega a pessoas com tamanha dor no peito e nó na garganta o direito de chorar o luto por aquilo que se perdeu, muito menos, à vista do corpo, impedir debaterem as pessoas os caminhos que evitem semelhante infortúnio noutros sítios.
Após um custoso e melindroso diálogo com a guarda municipal, tendo como mediadoras as grades, a resposta foi a de que “só cumpriam ordens” e que não tinham autoridade para liberar a passagem dos ali presentes (que já começavam a se avolumar). Com algum custo, conseguiu-se que alguém da reitoria, que já lá dentro estava, intermediasse uma negociação. Depois de muito imbróglio, decidiu-se que a guarda prepararia uma grade de isolamento junto à área de risco do Museu e liberaria a entrada dos estudantes, frequentadores e demais ali presentes. “Prazo, qual é?”, perguntamos. “Vinte cinco minutos, meia hora”, responderam. O sol começava a castigar os que do lado de fora do portão – e sem abrigo das árvores – estavam. Com o aumento da temperatura casou-se o aumento da percepção de que parecia um embuste a promessa feita. Passou-se meia hora, nada de liberação da entrada. Os ânimos se acirraram e um primeiro confronto, breve, teve lugar, pela tentativa de forçar um dos portões. A polícia não hesitou, ainda que protegida e segura pelas robustas grades dos portões e cerco da Quinta da Boa Vista, no uso do spray de pimenta e dos demais recursos de similar efeito.
Eram dois portões, o tumulto tinha locus num deles. A corrente que mantinha o portão trancafiado se arrebentou, num desentendimento entre a polícia tentando conter a entrada forçada e um manifestante que provocou um policial, a primeira cena lamentável do dia teve palco. O policial, alienando-se de sua obrigação precípua, deixou seu posto (na fronteira do portão) e saiu em corrida aberta para cima do manifestante, no meio da multidão, aplicando-lhe um golpe de estrangulamento. De imediato uma parte dos manifestantes tentou intervir em defesa do ativista imobilizado ao chão. Prontamente mais três destacados (um deles sem identificação na farda, diga-se), cercaram a situação. Pudemos contemplar a cena dantesca de, sem maiores razões, um manifestante estar sendo estrangulado, com um cordão de segurança de outros três guardas municipais que, ao invés de intervirem na situação, a salvaguardavam. Depois de algum tumulto e a chegada de dois policiais militares, eles voltaram, em defensiva, para dentro dos portões. Trancaram-no novamente.
Com o baixar dos ânimos, uma nova discussão intermediada pela reitoria foi realizada. Novo prazo, alegado pela razão do atraso da chegada das grades que seriam utilizadas para a delimitação do perímetro de segurança das ruínas do Museu.
Já contava mais de meio-dia. A desculpa agora era a de que estavam precisando buscar autorização junto à prefeitura da cidade, que é de quem a guarda municipal recebe ordens, para dar procedimento à situação. Nesse ínterim uma manifestante havia desmaiado, provavelmente pela mistura da alta temperatura e insolação e o gás de pimenta que foi diretamente atirado contra o rosto dela (inclusive custou sobremodo conseguir ajuda que a socorresse), num pequeno novo estado de ânimos irresponsavelmente um policial atira uma bomba de efeito moral no meio de uma aglomeração adensada (por sorte ninguém se feriu). A situação já era por demais ridícula. Os ânimos exaltados, o sangue quente. Um manifestante puxou o microfone: “a partir de agora, qualquer novo confronto ou acidente que ocorra será de única responsabilidade da guarda municipal. O que pedimos aqui não é nada demais, não viemos aqui para confrontar ninguém, queremos apenas ver aquilo que perdemos e poder debater pacificamente o que podemos fazer. O Estado quer aqui demonstrar autoridade pela simples demonstração de autoridade, sendo que não há nenhuma razão para repressão ou para impedimento da nossa entrada”.
Um dos portões que nesse meio tempo havia sido forçado, na ausência de mais correntes, foi trancado com duas algemas policiais (creio que os interessados poderão ver tais imagens na internet). Simbolicamente, escusado dizer, uma ofensa das mais infantis e ultrajantes.
Vencido mais um prazo, a indignação se agravou. Começamos a imprimir força contra o portão algemado, após algumas tentativas as algemas cederam. A multidão entrou acelerada. A polícia já se preparava para reagir, quando algum astuto à frente gritou em voz alta – e foi replicado por alguns logo atrás – “vamos de mãos pra cima!”. A marcha desacelerou. Todos nós entramos de mãos para o alto. A polícia, sem reação, não pode senão baixar a guarda. E assim foi a procissão até as ruínas. Não foram os polícias a nos deixar entrar. Eles cederam à pressão, à nossa pressão.
Ao chegar ao local, ao encarar de frente o outrora Museu, a generalizada perplexidade. Como disse ao início, poucas coisas engasgam tanto como aquela cena. A casca vazia de algo que significava tanto para aquelas pessoas que ali estavam. O quadro administrativo, os técnicos e técnicas, estudantes e docentes ali presentes, a enorme maioria sucumbiu em choro. Eu, que mesmo muitas vezes triste raramente choro, não pude conter também minha cota de lágrimas.
Politicamente muito pouco se pode dizer que foi alcançado. Mas esse genuíno sentimento de pertencimento e solidariedade é o que diferencia um potencial emancipador de um potencial político meramente imediato. Ninguém ali almejava grandes conquistas ou transformações (muito embora, no atual estado das coisas, seja calamitosamente possível advogar que lutar pela manutenção da história, da cultura e da educação hipostasiadas num museu seja uma “grande” ambição). Queríamos apenas velar o morto e pensar em maneiras de evitar acontecimentos semelhantes. Algumas propostas mínimas foram tiradas, quanto ao mapeamento de prédios históricos em similar situação, bem como algumas propostas de trabalho voluntário para ajudar no que fosse preciso para a recuperação daquilo que fosse recuperável do acervo e da estrutura do Museu… Enfim, uma genuína preocupação coletiva com o ocorrido.
Por volta das duas e pouco da tarde começa-se a esvaziar a Quinta da Boa Vista. Uma parte razoável, alegada e justificadamente, precisava recompor as forças físicas para poder comparecer ao ato da tarde, marcado para as 16h na Cinelândia (bairro central do Rio de Janeiro e, como já informado, palco relativamente tradicional de manifestações de grande porte, e deste mote, da cidade).
Corri para casa (que fica próxima ao ponto em que a manifestação foi marcada), engoli um lanche, tomei um banho e segui para o segundo ato do dia. O primeiro havia sido chamado por dois estudantes da instituição malferida, este havia sido chamado por um conjunto de atores coletivos, cujo eixo articulador era a UNE (União Nacional dos Estudantes). Ato visivelmente mais avolumado (o outro não foi pequeno, mas proporcionalmente a diferença era notável). Agora, não só um carro de som destes que comportam pessoas por sobre, mas dois destes. Começa a abertura com falas genéricas sobre a precariedade do estado, uma ou outra fala sobre a necessidade de melhoria nas verbas para a cultura e educação, as falas eram franqueadas apenas aos representantes das organizações formais ali presentes. A vinculação específica da pauta ao fato que mobilizava, em tese, aquelas pessoas, apareceu apenas, e timidamente, neste primeiro momento, uma vez. De resto, as vênias ao passado petista e os louros de outrora agora perdidos – evidentemente alinhavados com a urgência da necessidade de lutar pela liberdade de Lula – era o que imperava. O ato, marcado para as 16 horas, iria até a ALERJ (Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro). Só saiu da Cinelândia, contudo, por volta das 19 horas. Depois de falas genéricas de tantas organizações quanto quase o número de pessoas ouvindo (pois haviam outras tantas presentes de corpo, mas ausentes de espírito), anunciou-se que sairia a marcha. Acima do carro agora as pessoas que alavancariam simbólica e discursivamente a passeata. Figuras como o candidato à presidência Guilherme Boulos (PSOL), o deputado Marcelo Freixo (também do PSOL) e até o intelectual e escritor português Boaventura de Souza Santos. Curiosamente eles começaram a marcha – ainda que em cima dos carros de som – conosco, mas ao final já não estavam mais lá. Compreendo se decerto às vezes bate um ímpeto orgânico de natureza peristáltica ou algo parecido, mas acometer aos três tal infortúnio… Bem, talvez tenham simplesmente pensado em algo melhor com o que despender seu tempo. A este respeito, encontrei por acaso um professor cuja opinião muito estimo. Falamos da urgência de um ato sobre este tema (muito embora o tema pouco ou nada estivesse sendo tratado), o problema é que durante nosso pequeno diálogo, ao fundo escutávamos o teor das falas proferidas pelos representantes das “N” organizações. Olhamo-nos partilhando veladamente certo consenso quanto a uma latente perplexidade. Ele disse: “Bem, o repertório é um pouco estranho, mas faz parte”. Pude apenas responder: “É, faz parte”.
As defesas a Lula e as autopromoções, umas mais veladas, outras mais explícitas, dos grupos ali presentes tornou-se a tal ponto fatigante, que um certo setor (com o qual inclusive nem concordo) num dado momento começou a elencar frases em bloco como “não me leve a mal, mas isso aqui não é palanque eleitoral“. A cacofonia era evidente. Se no primeiro ato as diversas tendências políticas uniram-se pela sensibilidade a uma pauta comum, aqui a pauta comum serviu de vetor para a disputa de público e de espaço destas tendências políticas.
De todo modo, novamente, não quero parecer tacanho. É evidente que não só no escopo, mas nos potenciais resultados, estas distintas manifestações cumprem funções diferentes. O que magoa é que em determinados momentos, para certos grupos, tudo vira cálculo.
Mas não posso ser injusto. O Museu, que timidamente havia aparecido numa curta fala ao início do ato (que havia sido chamado tendo ele como pauta) reapareceu. Reapareceu quando, já contado bom tempo à frente da escadaria da ALERJ, quase ninguém mais ali estava, uma representante da UNE diz: “não nos esqueceremos jamais do que ocorreu com o Museu”. É, não nos esqueceremos.