Policiais acusados pela Chacina do Morro do Estado (Niterói) são condenados a 45 anos de prisão, mas recorrerão em liberdade
Terminou hoje (25/09) de madrugada o julgamento do sargento Antônio Carlos Miranda, do cabo José Francisco de Araújo Júnior, e dos soldados Wanderson Soares Nunes e José Roberto Primo Domingues, todos do 12o BPM e acusados pelo homicídio de Wellington Santiago de Oliveira (11 anos), Luciano Rocha Tavares (12), Edimilson dos Santos Conceição (15), José Maicom dos Santos Fragoso (16) e Wedsom da Conceição (24), e pela tentativa de homicídio de Carlos Alberto, sobrevivente da chacina que na época tinha 13 anos. O júri popular decidiu por maioria pela culpa dos acusados e o o juiz da 3ª Vara Criminal de Niterói, Peterson Barroso, sentenciou-os a 45 anos de prisão pelos crimes. Entretanto, na sentença o juiz deu aos réus (que não se encontravam presos, somente afastados do policiamento de rua) o direito de recorrer em liberdade.
O julgamento começou ontem (24/09) com os depoimentos das testemunhas de acusação, entre elas o sobrevivente Carlos Alberto, que desde que saiu do hospital (foi ferido na perna com um tiro de fuzil) está no programa de proteção às testemunhas acompanhado pela mãe. Com exceção de uma, todas as testemunhas de acusação (incluindo Carlos Alberto) pediram para depor sem a presença dos réus no Tribunal, o que mostra o medo que ainda impera face ao crime brutal de quatro anos atrás. Algumas testemunhas tiveram que ser pressionadas pelo próprio promotor do caso para admitirem fatos básicos, como a presença de policiais no local das mortes, tal o medo por elas
demonstrado.
A partir dos testemunhos e das provas técnicas, foi possível reconstruir como foi a matança: na noite de 03/12/2005, por volta das 22h, Carlos Alberto, Wellington e Luciano estavam voltando de uma lan-house na favela e
indo para uma festa, quando foram atacados por um grupo de policiais a tiros de fuzil. Wellington foi executado com cinco tiros à queima-roupa, Luciano levou dois tiros pelas costas e Carlos Alberto refugiou-se num bar após ser atingido na perna, sendo perseguido pelos PMs, e aparentemente só não foi morto porque no bar haviam outras pessoas, inclusive crianças. Edmilson, José Maicon e Wedson foram atingidos perto do mesmo local da comunidade, mas não estavam com o grupo de três meninos. Todos eles, entretanto, foram alvejados a curta distância e com sinais de que tentaram se defender (tiros nos antebraços e mãos, por exemplo). Wedson foi levado ao hospital com vida mas morreu posteriormente.
Os PMs registraram todas as mortes como autos de resistência, construindo a versão que os jovens estavam armados e com drogas. Para reforçar essa farsa, forjaram inclusive “depoimentos por escrito” de Wedson e Carlos Alberto quando os dois estavam no hospital Antônio Pedro, conforme contou Carlos Alberto (que era analfabeto na época!) no tribunal.
Entre as testemunhas de defesa dos policiais, estava o coronel PM Marcus Jardim, atual comandante do 1o Comando de Policiamento de Área, responsável por quatorze batalhões (Centro e zonas Sul e Norte do município do Rio), e que era comandante do 12o BPM na época da chacina. Jardim tem em seu “currículo” outros fatos sangrentos e brutais, como o comando do 16o BPM na época do cerco do Complexo do Alemão e Penha, que deixou mais de 50 mortos devido a operações policiais em alguns meses em 2007. Também notabilizou-se por frases grotescas como “2007 foi ano dos três P: pan, pac e pau”, “a PM é o melhor inseticida social”, e por ter presenteado o relator de Direitos Humanos da ONU, Philip Alston, em visita ao Rio em novembro de 2007, com uma miniatura do blindado da polícia, quando gritou alucinado: “viva o caveirão”!
Jardim, é claro, defendeu a versão de “confronto com bandidos” de seu comandados. Entretanto, a defesa dos policiais (representada por defensores públicos), incapaz de provar o confronto armado, procurou explorar o preconceito e a criminalização da favela para impressionar o júri, alegando “provas” de que os jovens seriam traficantes (mesmo não estando armados na ocasião) e assumindo uma postura sensacionalista, que caberia mais num apresentador de TV sem escrúpulos como o deputado Wagner Montes, do que em juristas. Esse tipo de abordagem, é claro, significa defender abertamente um tipo de crime: a execução sumária.
Essa manipulação da defesa revoltou moradores do Morro do Estado e outros que estavam presentes, e a Associação de Moradores da comunidade vai estudar formas de denunciar e representar contra as atitudes dos defensores públicos. Também revoltada com essa tentativa de manipulação do júri, Fernanda, mãe de Wellington, que acompanhou todo o julgamento, desabafou ao jornal “O Fluminense”: «Se meu filho fosse bandido, não iria lutar por justiça. Se alguém tem dúvidas sobre a integridade de meu filho, deve procurar representantes do Conselho Tutelar. Ele era querido por todos. O sonho do meu filho era ser jogador de futebol.»
Felizmente toda essa manipulação não conseguiu impedir a condenação dos PMs em primeira instância. Fundamental no desenrolar de todo o caso foi a mobilização construída pela Associação de Moradores do Morro do Estado, com apoio do Sindsprev, movimento estudantil da UFF, Cebraspo, Rede e vários outras organizações e movimentos. Mobilizaram a comunidade e toda a sociedade de Niterói através de manifestações, panfletagens, reuniões, audiências, etc, mesmo enfrentando resistências. Ontem mesmo, por exemplo, o presidente do Fórum de Niterói proibiu o acesso ao tribunal do júri de pessoas com camisetas com quaisquer símbolos e/ou dizeres. A Associação e o Sindsprev haviam feito várias camisetas negras com os dizeres em branco: «Ontem senzala, hoje favela – A luta continua!», e todos que tiveram que trocá-las ou virá-las pelo avesso para poderem assistir ao julgamento.
Também nós da Rede, que estamos habituados a comparecer aos julgamentos com nossas camisetas ou com camisetas com as fotos das vítimas, tivemos que cobrir nossos símbolos devido a essa determinação arbitrária. Junto com outras organizações, também iremos nos manifestar e estudar medidas contra isso, já que em todos os julgamentos no Rio ou em outros municípios, o acesso com esse tipo de manifestação é garantido pelo judiciário.
Rede contra a Violência