Por Duas Estudantes

“Defenda a Educação, apoie o professor”. É o que diziam os panfletos que distribuíamos aos nossos colegas, convocando-os a participar da mobilização dos professores contra uma tentativa de cortes de direitos no início de 2018. A frase revela uma abordagem que, se por um lado conquistou a expressiva adesão dos estudantes, por outro nos leva a pensar: em que medida o discurso, as ações e a relação entre alunos e professores construídos na luta reforçam ou tensionam as formas pelas quais o capital organiza o trabalho na escola?

No início de 2017, estudantes de algumas escolas particulares vinham construindo uma comunicação entre seus grêmios com o projeto de articulá-los em uma poligremia, recuperando uma forma organizativa já utilizada em outros momentos ao longo dos últimos anos. No entanto, sob a urgência da mobilização para uma greve geral contra as reformas trabalhista e previdenciária, os encontros acabaram extrapolando a estrutura dos grêmios, abarcando alunos que não participavam de tais organizações. Diante disso, optou-se pela formação do Inflama, uma frente de ação dos estudantes de escolas particulares.

Antes de ser um grupo de atuação consolidado, o Inflama se configurou mais como um veículo por meio do qual os estudantes se comunicam e se articulam em contextos específicos de mobilização. Não se desenrolou um processo de construção de uma identidade política comum; a reflexão foi deixada em segundo plano e o grupo manteve seu caráter reativo, antes de propositivo. De alguma forma, essas características permitiram que o Inflama continuasse a representar um meio eficiente de articulação no ano seguinte, apesar da modificação da composição dos grupos secundaristas.

Se, em 2017, o Inflama surgiu em face das reformas que visavam consolidar as tendências liberalizantes no mundo do trabalho, em 2018 foi retomado diante de uma tentativa concreta de aplicação da nova legislação. Aproveitando-se de brechas abertas pela reforma trabalhista, os donos das escolas privadas buscaram suprimir garantias da Convenção Coletiva de Trabalho, um acordo estabelecido entre os sindicatos patronal e dos professores de escolas particulares e que assegura uma série de direitos da categoria.

Portanto, a pauta que levou alunos a apoiar as paralisações e ir às ruas ao lado de seus professores — forçando os donos de escola a assinarem a Convenção Coletiva até o ano seguinte —, não compreendia reivindicações propriamente estudantis. E o que motivou os estudantes a se envolverem na mobilização, se esta não nos dizia respeito diretamente?

Entre os alunos, o teor dominante das falas que buscavam convencer os colegas a aderir à mobilização clamava por uma solidariedade associada aos afetos. A retórica era a de que devíamos nos sensibilizar com nossos professores, pois são pessoas com as quais convivemos diariamente e que estão comprometidas com nossa educação. Talvez se possa afirmar que o que mais moveu os estudantes não foi o conteúdo específico da pauta, tampouco sua inserção em uma perspectiva mais ampla de luta. Mas que, em vez disso, foram os laços pessoais que se destacaram: “O professor é meu amigo, mexeu com ele, mexeu comigo! A professora é minha amiga, mexeu com ela, chamou pra briga!”, cantaram os alunos.

Se constituiu, assim, uma forma de solidariedade de caráter individualizado e pautada em um perigoso deslocamento do campo da política para o das relações pessoais. Foi sobretudo em torno disso que se deu a adesão dos alunos às mobilizações.

Mas para justificar nossa atuação como grupo que toma parte nas mobilizações, a retórica empregada foi outra. A solidariedade individual de cada aluno deu lugar à reivindicação coletiva de um papel na luta pela “defesa da Educação”. Afirmávamos que o corte de direitos de nossos professores produziria uma precarização nas condições de trabalho que nos seria prejudicial: a luta também é nossa, pois a precarização da educação nos afeta diretamente. Foi também com base nesse discurso que os estudantes puderam organizar suas próprias panfletagens, “trancaços” de rua e, em algumas escolas, votar pela paralisação antes mesmo de seus professores. Exigíamos a manutenção da Convenção Coletiva sob a justificativa da defesa de uma “educação de qualidade”.

Ora, ao reivindicar uma “educação de qualidade”, o que estava sendo exigido senão a qualidade de um serviço comprado?

Quando a mobilização é apresentada dentro de uma disputa por uma mercadoria pedagógica considerada de melhor qualidade, os estudantes reafirmam nela seu papel de consumidores. E não seria esse o mesmo papel mobilizado por movimentos como o Escola Sem Partido? É claro que, em um contexto no qual predomina uma tendência à desagregação no ambiente escolar, a opção pela aliança em vez da vigilância revela que o esfacelamento das relações e da coletividade não é o único horizonte possível. Mas se o sentido da ação dos alunos é o oposto, o princípio é o mesmo: pressionar a instituição com base na posição de cliente que reivindica a qualidade do serviço consumido – no limite, uma postura que não difere muito daquela de um consumidor que exige que o técnico contratado para consertar seu ar-condicionado o faça corretamente.

No entanto, ainda que o discurso que justificou a mobilização contribuísse para afastar o conflito do âmbito do trabalho, os efeitos que dela decorreram caminharam no sentido contrário. Assistimos a um desvelar de tensões latentes nos locais de trabalho: ao verem seus interesses ameaçados e se depararem com a possibilidade de ruptura do ciclo produtivo, até os donos das escolas com os projetos pedagógicos ditos mais inovadores e progressistas tiveram de mostrar seus lados perversos – e quando os conflitos vêm à tona, abre-se a possibilidade de se pensar novas formas de organização. Mas se em certa medida a mobilização levantou novas questões e potencializou reflexões já existentes sobre o processo de trabalho dos professores nas escolas, não foi capaz de conectá-las ao papel que os estudantes ocupam nesse mesmo processo.

As trocas realizadas nas rodas de conversa, panfletagens e demais atividades coletivas durante a mobilização teceram uma rede de solidariedade entre estudantes e professores – ainda que com todos os limites já apontados. Fortaleceram-se os laços de coletividade entre dois pólos da sala de aula que tendem a entrar em conflito no dia-a-dia: quando, por exemplo, um estudante é pressionado a fazer a lição de casa ou a estudar e ter um bom desempenho na prova, é contra o professor, imediata representação de autoridade, que se volta sua rebeldia.

Essa tensão é reflexo da forma como a produção na escola é disposta, uma vez que o controle sobre o trabalho do estudante é, ao mesmo tempo, o controle sobre o trabalho do próprio professor. Nesse arranjo, a pressão exercida pelas diretorias e pelos donos de escola sobre o docente se converte em pressão sobre o estudante, cujo desempenho servirá de medida para a produtividade da instituição de ensino. Pensar na forma como os alunos se inserem na lógica de trabalho e, portanto, de produção dentro do ambiente escolar exige olhar para a relação entre alunos e professores, mas também para o que está por detrás dela. E, nesse sentido, ainda que as relações construídas na luta tenham tido efeitos opostos àqueles gerados pela disposição da força de trabalho nas escolas, não incidiram de fato sobre a fonte desses efeitos.

Ainda assim, pequenas práticas, que passaram quase por despercebidas durante as mobilizações, apontam para uma direção interessante. Ocorreu de algumas vezes estudantes chegarem atrasados na aula após terem ido panfletar na porta de outros colégios. Sabendo do motivo do atraso, houve professores que, passando por cima de regras da instituição, permitiram que alunos entrassem na sala após o horário estipulado. Aqui já não se tratava apenas da afirmação de um laço afetivo: ao abrirem mão do controle sobre os estudantes, os professores estavam burlando também o seu próprio trabalho.

A dúvida que fica é como buscar, na relação entre alunos e professores, as possibilidades dessa forma de atuação. Para tanto, cabe pensar mais a fundo o papel que o estudante ocupa no processo produtivo da escola. Um primeiro ponto é que um aluno que não produz representa uma queda na produtividade da escola. E nas instituições privadas essa lógica é especialmente notável: a demanda por matrículas em uma escola cresce na medida em que os alunos demonstram melhor desempenho em exames externos – não à toa existe uma preocupação tão grande com os rankings de Enem etc.

A qualidade do serviço oferecido pela escola não se refere a um projeto pedagógico abstrato, mas sim à produção e disciplina de seus alunos. Se ao exigir uma “educação de qualidade” os estudantes se reafirmavam na posição de consumidores, é possível enxergá-los agora em outro papel do processo produtivo: se podem ser usados como indicadores da produtividade da escola, é porque os alunos também configuram, eles próprios, a mercadoria que está sendo produzida. E é justamente esta a especificidade da produção na escola, pois, diferentemente do que ocorre em uma fábrica comum, a mercadoria que nela se produz é humana, é força de trabalho. Mas, tal como qualquer outra mercadoria, ela e o seu valor são frutos unicamente de trabalho humano, neste caso, do trabalho dos professores e demais funcionários escolares – mas não só.

Como mercadoria humana, o estudante é um produto que produz a si mesmo e detém, portanto, poder de recusa em relação ao ciclo produtivo da educação. Se um estudante decide dormir nas aulas e não fazer suas lições, ele representa um entrave à produção dentro da escola. Passa a ser alvo de repressão por parte dos professores, da direção, e mesmo da família: todos pretendem discipliná-lo.

Investigar possibilidades de luta que coloquem em questão a forma como o capital organiza o trabalho na escola passa justamente por essa especificidade. Em outras palavras, passa por questionar no que se sustenta essa produção pautada na relação entre trabalhadores que produzem trabalhadores e trabalhadores sendo produzidos e produzindo a si mesmos.

Quais são, por exemplo, as formas de controle sobre o trabalho dos professores e estudantes e como elas se sobrepõem? Pensando na difusão de novas tecnologias nas escolas, chama a atenção o uso de plataformas online, como o Moodle, que atuam ampliando as formas de controle sobre o trabalho dos professores e dos estudantes. Por um lado, criam-se mecanismos de acompanhamento direto do trabalho do professor – inclusive pelas famílias dos alunos – forçando uma maior produtividade sem aumento da remuneração, ampliando os ciclos de mais-valia. Por outro, abre-se a possibilidade para uma nova dimensão do controle sobre a produção cotidiana dos estudantes, o qual é exercido, na maior parte das vezes, pelo próprio professor: é possível monitorar quantas vezes o aluno entrou na página da disciplina, quando foi seu último acesso, quanto tempo ficou em cada atividade etc.

Ao mesmo tempo, faz-se necessário compreender como tais formas vêm se transformando em conjunto com mudanças mais amplas. No mercado da educação, assistimos à compra de escolas de diferentes perfis por empresas do mercado financeiro, à ampliação dos grandes conglomerados, às propostas de vouchers no ensino público. E tais processos se articulam com transformações gerais no mundo do trabalho, que exigem, por exemplo, investigar quais as novas formas de contratação de professores e outros trabalhadores na escola e como a formação dos estudantes enquanto força de trabalho está sendo moldada segundo as novas exigências do capital.

As transformações na educação, tanto no setor público quanto privado, estão intimamente associadas às mudanças nas relações de trabalho, as quais determinam novas possibilidades de luta. É nesse sentido que a investigação das formas, antigas e novas, de organização do trabalho na escola contém em si o potencial de subversão das relações sobre as quais elas se sustentam – dentre essas, a relação entre professores e estudantes. Afinal: como agir não sob a perspectiva de defender a Educação, mas, ao contrário, para subvertê-la?

15 COMENTÁRIOS

  1. Muito interessante o texto, principalmente no que tange a análise das formas de controle e sua relação com a produtividade das fábricas-escolas. O único item que a rigor gostaria de pontuar é a identificação do estudante como a mercadoria que resulta do processo produtivo educacional. Entendo o uso que os capitalistas da educação fazem dos rankings nos exames externos…há um uso publicitário disso, etc. Mas a rigor não dá pra dizer que a mercadoria que sai do processo educacional (do qual professores – mais diretamente – e demais trabalhadores no espaço escolar – de forma mais indireta – constituem a força de trabalho criadora de mais valor) é o estudante. Este não é vendido (pelo menos ainda não está estabelecida essa relação…). Nas escolas particulares eles são os compradores da mercadoria “educação” – e suas subdivisões…aulas, atividades extras, dentre outros serviços – produzida.

  2. Trbalhadora do estado, todos dias ouvimos que a educação serve pra permitir a pessoa entrar no mercado de trabalho. Quem entra no mercado é? mercadoria… não faz sentido o estudante entrar no mrcado de trabalho como consumidor, no mercado de trabalho o consumidor é o capitalista. E o consumidor da educação raramente é o estudante; não tem renda própria pra ser consumidor (no caso da escola particular), não é contribuinte (no caso da educação pública). A família quer entregar uma mercadoria valorizada no mercado, quem vai produzir é o professor (não tem outro trabalhador na escola que faz isso).

  3. Bem, acho que a gente precisa pontuar algumas coisas. Estamos nos atendo a qual processo produtivo de mais valia?

    No processo das escolas particulares – pois nas públicas sequer tem mais valia produzida pelo professor, apesar de ter trabalho assalariado e salário – o capitalista dono da escola contrata a força de trabalho do professor para produção de mais valia a partir da mercadoria “aula” em sentido amplo. O estudante em sentido amplo é quem compra esta mercadoria (digo em sentido amplo, pois a rigor muitas vezes é a família quem “compra/paga”). Na maioria das fabricas-escolas de hoje, o capitalista da escola não vende os estudantes para uma empresa que compra essa força de trabalho. A venda mercadoria força de trabalho, ou melhor dizendo, o dinheiro de um capitalista – ou do Estado – que paga esta mercadoria, esse dinheiro ficará com o próprio trabalhador, será o seu salário.

    Entendo que o papel da educação é formar força de trabalho que posteriormente será vendida como uma mercadoria, como qualquer outra, com suas importantes particularidades para o capital. Mas, a rigor, o dinheiro da venda dessa mercadoria força de trabalho não pertencerá ao capitalista dono da escola onde essa força de trabalho estuda…é só para pontuar que são processos distintos a produção da mais valia a partir da mercadoria força de trabalho professor para produção da mercadoria “educação”, que é adquirida/comprada pelos estudantes/famílias, etc. para qualificar a mercadoria força de trabalho que será vendida no mercado de trabalho. Há momentos de compra e venda, e portanto de mercado, distintos. 1) capitalista da escola-compra professor-que produz mais valia na produção da mercadoria educação/aula-que vende esta mercadoria para estudantes/famílias, etc… 2) Outro é o processo de venda desta força de trabalho (outrora estudante-comprador da mercadoria educação) para um capitalista qualquer, para produção de outras mercadorias. No sistema, óbvio que está tudo relacionado, mas é importante diferenciarmos o tipo de mercadoria produzida e vendida em cada um deles.

  4. Me parece que o texto acerta em falar de produção da força de trabalho, os professores estão produzindo os trabalhadores do futuro, essa produção conforme o capitalismo se desenvolve tende a estar cada vez mais em instituições profissionais e menos nos âmbitos familiares. O produto do trabalho do professor é outro trabalhador, é para isso que ele é contratado e é nessa relação que é extraída a mais valia dele é extraída.
    Agora, porque o trabalhador do Estado não tem extração de mais valia? Não seria o Estado um ente capitalista?

  5. Trabalhadora do Estado diz que:

    1) “No processo das escolas particulares – pois nas públicas sequer tem mais valia produzida pelo professor, apesar de ter trabalho assalariado e salário – o capitalista dono da escola contrata a força de trabalho do professor para produção de mais valia a partir da mercadoria ‘aula’ em sentido amplo.”

    Há um equívoco profundo aqui: a afirmação de que nas escolas públicas não há produção de mais-valia, apesar de os professores serem assalariados. Fosse assim, os professores de escolas públicas não seriam pressionados diariamente por maior produtividade e melhores resultados. Fato corriqueiro, os professores são responsabilizados cotidianamente por maus resultados em exames como o Ideb; no ensino superior são responsabilizados por maus resultados em exames como o Enade. Eles convivem ainda diariamente com estabelecimentos repressivos e com uma vigilância e um controle cada vez maiores sobre seu processo de trabalho (por exemplo, através do recurso cada vez intenso à digitalização), sem contar as pressões por aumento da jornada de trabalho e a imposição de uma quantidade cada vez maior de tarefas numa mesma jornada de trabalho. Enfim, dizer que o professor da escola pública — e o mesmo vale para o da universidade pública — não produz mais-valia é um equívoco profundo.

    Diz ainda que:

    2) “Na maioria das fabricas-escolas de hoje, o capitalista da escola não vende os estudantes para uma empresa que compra essa força de trabalho.”

    Ora, os proprietários de escolas realmente não “vendem” os estudantes: não são senhores de escravos nem traficantes de pessoas. O que eles fazem é fornecer um serviço, pago por famílias que pretendem agregar valor a uma mercadoria que serão elas mesmas a fornecerem no mercado (força de trabalho qualificada por meio da educação). O trabalhador que faz um curso técnico ou uma pós-graduação, por exemplo, para aumentar sua qualificação, faz a mesma coisa: compra um serviço que agrega valor à sua própria força de trabalho, a qual será depois ele a fornecer no mercado de trabalho. Nos estabelecimentos públicos é a mesma coisa, com a diferença de que, ao invés de as pessoas pagarem mensalidades (há casos em que as mensalidades são subsidiadas), elas pagam impostos posteriormente convertidos em investimentos na educação. Nesse caso é o Estado o fornecedor do serviço, serviço este apenas ilusoriamente gratuito.

    Nada do que foi dito pela comentadora muda o fato de que o professor, dentro da sala de aula, produz um produto (força de trabalho qualificada): ele é um assalariado — e, portanto, produz mais-valia — de uma empresa prestadora de serviços (pública ou privada, tanto faz). E o que atesta, do ponto de vista dos capitalistas, a qualidade do produto que resulta desse serviço? O bom desempenho em todo tipo de exame.

  6. Em alguns setores do Estado, sim, existe extração de mais valia (PETROBRAS, Empresas Elétricas, de saneamento, etc.). O Estado atua como os demais capitalistas. Vendendo mercadorias, resultante de um processo de produção, onde se gera mais valia: venda de energia elétrica, tratamento de água, saneamento, etc.. Mas na escola pública, ainda gratuita do ponto de vista mais estrito em comparação com as escolas particulares que vendem a mercadoria “educação”, não há produção de mais valia. Não falo aqui dos setores públicos onde já existem OSs e outros arranjos. Falo da escola pública tradicional. Sem parceria púbico-privada. O Estado venderia os estudantes por quanto? E para quem? Quem compra de forma imediata a mercadoria “estudante formado para ser força de trabalho”? E se esse estudante sequer conseguir se empregar? O papel social da escola e do professor obviamente está relacionado com o objetivo central de todo o sistema, que é potencializar e criar as condições para a extração de mais valia em processos futuros. Quanto a isso, acho que é consenso. A divergência é: o professor da escola particular produz mais valia para o dono da escola na venda da mercadoria educação/aula. Não na venda de estudantes para empresas, ainda que futuramente isso vá acontecer. Só que quando isso acontecer, e se acontecer, quem se apropriará do dinheiro resultante da venda dessa força de trabalho é o próprio trabalhador e sua família. Ele não vai pegar o salário dele e transferir para o dono da(s) escola(s) particular(es) em que ele estudou. A divergência é só essa. No mais, o texto é interessantíssimo ao abordar uma gama de outros aspectos no espaço social da escola.

  7. Todo esse nó é o seguinte:
    Trabalhadora do Estado está admitindo a existência de mais-valia apenas em uma dimensão “contábil” ou mercantil, a partir da prática da venda de uma mercadoria (D’).
    Quando o foco e o critério são os processos produtivos, que é o que diz respeito aos trabalhadores (a extorsão de seu trabalho e tempo de trabalho, suas condições de trabalho, os modos de produzir etc), o conceito de mais-valia não coincide com essa leitura “contábil” ou mercantil, posto que é indiferente se o patrão vende ou dá a mercadoria, se a mercadoria é subsidiada ou não pelos contribuintes, como também é indiferente se o patrão acumula social ou privadamente os lucros obtidos do mais-valor deixado pelos trabalhadores.
    São compreensões muito distintas sobre a mais-valia, sendo que a segunda é a que interessa de fato aos trabalhadores, enquanto a primeira serviu de mascaramento das relações sociais de produção capitalista nas experiências socialistas de Estado.

  8. Mais valia é uma categoria econômica, não contábil…a lógica do capital se restringe basicamente à produção de mercadorias (que nem sempre podemos pegar com a mão, diga-se de passagem!) com mais valor PARA SEREM VENDIDAS/COMPRADAS, e assim se conseguir mais dinheiro que o investido no início do processo produtivo. Os capitalistas em geral não dão estas mercadorias-capital…ELES VENDEM…Afirmar que em determinados processos o Estado não produz mais-valia, nem capital, não significa dizer que estes mesmos processos não estão subordinados ao capital. São coisas diferentes. Vários trabalhadores de vários setores de atividade estatal não produzem mais valia e são submetidos a controles de produtividade, repressão, etc. O professor pode não produzir mais valia, mas ter sua atividade totalmente subordinada a formação da força de trabalho para se inserir no processo de acumulação de capital. E e fato é isso que acontece. O Estado – através dos impostos que a classe trabalhadora paga – reduz o “custo” que o capitalista teria para formar essa força de trabalho, e portanto, permite a diminuição do valor desta mesma força de trabalho. Com a saúde pública acontece o mesmo. O que teria que estar incorporado nos salários para saúde e educação, o Estado a serviço do capital, reduz…ou seja…o Estado/governo entra como grande parceiro para garantir todo o sistema. Pois estes processos de trabalho assalariado estão submetidos à logica do sistema. Mas para assumirmos isso, não precisamos esticar a categoria mais valia para que tudo caiba nela. Nem todo trabalho assalariado produz mais valia. É real que hoje, cada vez mais, o capital tenta tornar produtivo o que antes era improdutivo (de capita)? Sem dúvida nenhuma! Nas nossas táticas cabem perfeitamente a luta dos professores e demais trabalhadores que não produzem mais valia? Sim. Inclusive, quando determinado setor da atividade estatal não produtivo de capital está em vias de ser privatizado, para passar a ser produtivo de capital, o imbróglio não é só a possibilidade de demissão, reforço da coerção sobre os trabalhadores, etc. O central é a necessidade de determinados setores da burguesia em transformar atividades outrora não produtivas de capital (e também de mais valia) em atividades produtivas de capital (e mais valia).

  9. Trabalhadora do Estado,

    Veja, por exemplo, esta notícia (aqui: https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2019/05/brasil-aumenta-recursos-para-educacao-mas-gasta-mal.shtml). O percentual do PIB gasto pelo Brasil com a educação aumentou, entre 2000 e 2015, de 4,6% para 6,2%. No mesmo período, o gasto por estudante aumentou de RS 2.587,00 para R$ 7.273. Ou seja, a economia cresce, o governo arrecada mais e investe mais. Outra notícia (aqui: https://educacaointegral.org.br/reportagens/sobre-numero-de-estudantes-por-sala-de-aula-na-rede-publica-de-sp-diz-estudo/) demonstra muito bem o mecanismo da mais-valia nas escolas públicas: em São Paulo, em 2016, a secretaria de educação publicou uma resolução permitindo ampliar em até 10% o número máximo de estudantes por sala. Além do mais, entre 2015 e 2016, foram fechadas 2.776 salas, mesmo com uma ampliação no número de matrículas, levando ao aumento do número de estudantes por sala.

  10. Diz João Bernardo:

    “(…) a completa integração da produção de força de trabalho no capital, os trabalhadores não oferecem no mercado a sua mercadoria, o valor de uso de sua força de trabalho, porque desde o início os capitalistas já a detêm”(BERNARDO, João. Economia dos conflitos sociais. São Paulo: Cortez, 1991, p. 95).

    A partir desta perspectiva, pouco importa a situação individual de cada trabalhador ou à que categoria profissional ele pertença, seja ela do setor público ou privado, ou do setor primário, secundário ou terceário. O que determina sua situação é a classe em que ele está inserido. Portanto é da perspectiva de classe (e nunca da identidade ou cultura ou mesmo da categoria profissional…), ou seja, do papel “SOCIAL” desempanhado pelos indivíduos que devemos nos ater. Da mesma forma não é a partir do capitalista individual que se deve analisar a produção e a expropriação da mais valia, seja ela absoluta ou relativa e sim da perspectiva de classe. Por isso a produção e a expropriação da mais valia tem que ser analisada a partir dos sujeitos coletivos, ou seja, proletariado e capitalistas, e estes, o mais importante, compostos pela burguesia e pelos gestores. Por isso quando a gestão pública ou privada do ensino “ensina”, “ensina” a partir de um movimento integrado da produção e para a produção e esta integração (não devemos nunca nos esquecer da plena integração da produção capitalista em todos os níveis, especialmente o internacional) pressupõe, a “anteriori”, uma espécie de apropriação coletiva pelos capitalistas da mais valia produzida, a qual, a posteriori, será repartida de acordo com o quinhão de cada capitalista individual.

  11. Gente, pera aí, vocês estão perdendo a linha em algo simples:

    Mais valia pressupõe uma exploração e se constituí como um valor calculável: as partes dessa relação são o capitalista e o trabalhador. Desse modo, numa colégio privado, a produção se pauta por vender um serviço que é a qualificação de mão-de-obra; para tal, empregam-se inúmeros trabalhadores, mas o principal, ou seja, que trabalha diretamente na atividade (front office e back office, alguém?) é o professor.
    Logo, pode-se calcular a mais-valia, aliás, deve-se calcular a mais-valia, que na prática corresponde ao valor gerado pelo trabalho do professor que, para além dos custos da operação e salário, resta ao capitalista dono da escola – dos meios de produção.
    Portanto, se um professor gera 50 reais por hora aula, mas recebe 10, se tirarmos outros 15 dos custos de manter a sala de aula, material, etc, teremos que os 25 restantes do trabalho do professor são a mais-valia do capitalista.

    Claro que há inúmeros elementos nesse cálculo, pois o capitalista compete com outros dentro de um mercado, assim como o professor compete com outros, complexificando as variáveis desse cálculo. Mas nada disso vem ao caso nessa explicação.

    Se a escola é pública, o estado não calculará o quanto o professor produz por hora aula, pois, a princípio, sua conta parte da sua capacidade de arrecadação. Ou seja, o Estado supõe um valor por hora aula que seja correspondente ao seu balanço: se o Estado é rico e, tiradas as despesas regulares da escola, como luz, giz, etc, ele poderá pagar, para todo seu quadro de professores concursados (ou não) um valor por hora aula que será decidido com um cálculo baseado na arrecadação total. O Estado, por tanto, não lucra com seu professor.
    Assim, se pagos todos os custos fixos de manter todas as escolas do Estado ele retira 300 reais, dos 1000 reais do PIB dedicados à educação, esses 700 serão alocados para pagar os salários dos professores. Salvo se por determinação de lei, há algum fundo, o Estado não pode acumular dinheiro para si, ele deverá investir o montante arrecadado em melhorias na educação, seja subindo salários, melhorando escolas ou construindo outras.
    Tudo isso será decidido “democraticamente” pelos representantes eleitos, na hora de aprovar a lei orçamentária e eventuais medidas da administração pública. Vale lembrar que a Administração pública não pode criar despesa sem aprovação do legislativo.
    Logo, não cabe falar em mais-valia do professor de escola pública.

    SE, POR OUTRO LADO, estivermos falando de alguma escola que seja concessionária, ou parceria público-privada, o Estado basicamente faz um processo de ofertar essa oportunidade de parceria via, por exemplo, licitação; ele determina um lucro-fixo ou pouco variante destinado ao concessionado; o que isso implica?
    Se um professor trabalha numa escola assim, em teoria, ele produz sobre-trabalho que será calculado a partir desse lucro fixo, ou seja, em tese, a mais-valia é limitada pelo teto determinado pelo Estado, nas condições do edital do processo licitatório. Isso significa que há verdadeira previsibilidade para o capitalista que resolve participar desse processo e, para o Estado, há controle para garantir que os mecanismos de mercado não subvertam o interesse público que ele pretende atender.

    Não dá pra discutir mais valia em escola pública sem entender como funciona serviço público, o Estado e suas eventuais parcerias com o setor privado:
    NADA DISSO, impede que o Estado sucateie o trabalho ou sirva de forma a gerar direta ou indiretamente mais-valia às elites, mas isso é outra história

  12. Então, acho que nós estamos misturando dois assuntos que, sim, estão relacionados, mas não são a mesma coisa. Segundo a citação feita por Gilberto, “(…) a completa integração da produção de força de trabalho no capital, os trabalhadores não oferecem no mercado a sua mercadoria, o valor de uso de sua força de trabalho, porque desde o início os capitalistas já a detêm”(BERNARDO, João. Economia dos conflitos sociais. São Paulo: Cortez, 1991, p. 95).

    Eu entendi o que João Bernardo quis afirmar e me interessei inclusive por pegar a inteireza do texto. O processo de subsunção real do trabalho ao capital e a aguda e constante expropriação dos meios de vida e subsistência da classe trabalhadora, produz esse processo. Hoje muitos de nós precisamos da relação de capital, majoritariamente, para realizar trabalho, infelizmente. Quando não é trabalho assalariado produtor de mais valia, pelos menos trabalho assalariado. E nós não cuidamos de crianças e as educamos por amor apenas e porque “cuidar da criança é dever do estado e da sociedade”. Mas sim, produzimos força de trabalho. Para o capital é isso. Mas em relação à produção de mais valia eu gostaria de dar um exemplo. Tenho um filho de 5 anos. Frequenta creche. Desde que foi concebido, pelo fato de ser fruto de uma familia de trabalhadores – ou seja, que não detém meios de produção, pouco importando se produzem ou não mais valia, no caso não produzimos – no sistema do capital, desde já o “destino” dele está selado: terá que vender força de trabalho para sobreviver. Ou vender trabalho autonomamente. Ou seja, o sistema do capital em tese já possui esta mercadoria – a menos que este meu filho “dê um jeito” de se tornar capitalista, o que acho quase impossível, considerando a concentração de capital que há pelo menos um século acontece! Mas só futuramente quando algum capitalista começar a usar esse valor de uso força de trabalho EFETIVAMENTE é que este meu filho poderá produzir mais valia, A DEPENDER DO PROCESSO DE TRABALHO EM QUE SE INSIRA. Do contrário vamos esticar o conceito/categoria e dizer que todo mundo que trabalha ou é filho de trabalhador já produz mais valia desde o embrião. É bom os capitalistas nem ouvirem isso!!! Pois do jeito que o capital está desesperado para transformar serviços outrora improdutivos em produtivos de mais valia… (e a educação entra aí desde muito tempo, assim como saúde, uso de estradas, etc.).

    Eu só quero pontuar que o conceito/categoria da mais valia, a rigor, não tem a ver com investimento estatal, etc. Pode estar interligado? Óbvio, pois tudo está a serviço da valorização do valor nesse mundinho…Inclusive processos não produtores de mais valia (por enquanto!!! sempre por enquanto!!!) que visam diminuir o valor da força de trabalho (educação), estender o tempo de uso da mercadoria força de trabalho (produção de ciência e sua aplicação à saúde) estão a serviço disso. E, a depender do parâmetro, pode ter muito investimento estatal público e não gerar diretamente mais valia (tem sido cada vez mais difícil encontrar atividades que já não estejam na lógica de produção e reprodução de capital, mas existem…e justamente ao entendermos a categoria mais valia e várias outras que com ela se conectam no processo de trabalho produtor de capital é que conseguimos, inclusive ver a evolução histórica de como processos que outrora não produziam capital, apesar de estarem a ele subordinados, hoje já produzem. As privatizações e outros processos ilustram bem isso. O que chamo de mais valia é o trabalho que excede o valor do salário do trabalhador, cristalizado numa mercadoria (física ou não) que será vendida e que gerará mais dinheiro para o capitalista privado ou público, de forma direta, do que o investido no processo produtivo da referida mercadoria-serviço. Varios outros processos de trabalho que não produzem mais valia concorrem para garantir a extração de mais valia, cada vez mais generalizada? Sem nenhuma dúvida. Nisso não há nenhuma discordância…

  13. Continuo defendendo a forma sistemática e classista de compreensão da mais-valia: o que importa, para o trabalhador, é o processo de extorsão produtiva de seu trabalho e tempo de trabalho. Isso é o que produz mais-valor e faz TODA a engrenagem do capitalismo funcionar de modo integrado. Se o fruto de sua extorsão é vendido no mercado para um CPF/CNPJ ou subsidiado de outras formas, isso não importa. A diferença entre propriedade pública ou privada, no capitalismo, é uma diferença apenas formal, não é o que determina o grau ou modalidade de extorsão da mais-valia (se relativa ou absoluta, se intensiva ou extensiva). E a mesma coisa pode ser dita para o processo de acumulação de capital: para o trabalhador não importa se o capitalista é um indivíduo, uma comunidade hippie (ou a direção do Fora do Eixo compartilhando uma casa maneira), um fundo de pensão, uma sociedade transnacional, um Estado.

    Pensar diferente disso é voltar a abrir os flancos para os capitalismos de Estado, obstruindo a compreensão do caráter sistemático e integrado da reprodução social do capitalismo para além da instância “mercado”.

  14. será ingênuo de mim mesmo dizer que há aqui um quê de dialética nisso tudo, dado que Marx fez a análise do capitalismo com todas as suas idas e voltas dos elementos analíticos em direção às negações e leis tendenciais, para que depois João Bernardo faça a crítica da análise do capitalismo que parte do capital individual? É só afirmando aquele primeiro momento da crítica da economia política que podemos chegar ao segundo, negando então o primeiro para chegar a um entendimento mais amplo do capitalismo. Para isso é importante retomar o que diz o Maisvalido, pois as teorias não se fazem no vazio, e os seus avanços também se dão sobre os cadáveres da história.

  15. Penso que a ideia das autoras era identificar uma duplicidade presente nas mobilizações de professores e estudantes, dando continuidade às discussões presente no texto de João Bernardo “Um duplo desafio”, pensando em como romper com as hierarquias entre professores e alunos para além do breve momento de luta, nesse sentido questionam a disciplina imposta ao aluno como forma de reforço da hierarquia entre trabalhadores. Entretant,o não analisam o duplo disso que é o professor que permite que elas durmam e não façam coisas, está delegando unicamente à elas sua produção como classe trabalhadora.

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