Por Primo Jonas
¡Todas las balas se van a devolver!
“Prende la mecha” [“Acenda o Pavio”]
Anarkia Tropical
Não há grandes segredos sobre o que está ocorrendo nestes dias convulsionados no Chile. Nos sites brasileiros que estão noticiando algo do que lá ocorre, já aparecem os especialistas e acadêmicos que explicam as “profundezas” dos distúrbios: o aumento das passagens, a aposentadoria de miséria, as dívidas estudantis, etc., etc. Sobre estes temas se encontrará muito nos meios de comunicação progressistas, e não o digo de forma depreciativa, pois certamente estão corretos em indicar grandes questões estruturais da atual miséria proletária vivida pelos irmãos e irmãs que vivem no território hoje ocupado pelo Estado chileno.
O que estes dados não esclarecem é a dinâmica peculiar dos conflitos sociais naquele território. Um aspecto muito relevante para entender a sua atual composição de classe é o fato de a ditadura pinochetista ter aplicado reformas capitalistas “neoliberais” desde muito cedo em comparação com outros territórios da região. De fato, muitas das reformas que estão sendo realizadas em diferentes países da região já foram realidade no Chile há décadas. “O Chile é o futuro”, dizíamos com risadas tristes, eu e um companheiro chileno. Obviamente que este processo de modernização acelerada em um território com uma economia tão pequena resultou num aprofundamento da proletarização por diversas vias. A desigualdade social e uma cultura yankee nas formas de trabalhar, de consumir e de pensar, gerou um terreno fértil propenso à recusa e à ruptura. Quais são as perspectivas de vida de uma juventude que estará endividada por 10, 15 anos só para poder estudar? Os estudantes que constantemente ocupam seus colégios, que botam fogo nas ruas quando a polícia assassina um deles, não são os “mais politizados”, os que fazem campanha eleitoral ou os que debatem programas políticos. Não, o ódio à polícia está presente nos otakus, nos freaks, isso pode inclusive ser visto na produção gráfica espontânea criada para a campanha # evasionmasiva, isto é, os “catracaços” nos metrôs de Santiago.
Qualquer pessoa que tenha ido ao Chile e que tenha um pouco de atenção ao que dizem as paredes pode notar quão disseminado é o sentimento antipolicial, antipaco. Não é apenas o ambiente anarcopunk de cidades como Valparaíso. São todos e todas com alguma memória histórica do papel que o exército cumpriu no golpe de Estado de 73, são muitas das comunidades mapuches no sul que lutam contra a proletarização ou ao menos contra o aprofundamento da despossessão. O mesmo ocorre em cidades minúsculas, como Cobquecura, que visitei há um par de anos: ao redor de 5.000 habitantes, segundo um mapa impresso antigo, cidade costeira. Não era uma questão contra a polícia, mas sim a capacidade destas pequenas comunidades de se organizarem em sua própria defesa. Aproximadamente uma de cada três casas ostentava uma bandeira negra com a logo da campanha antissalmoneira (as salmoneiras são cultivos intensivos de salmão em zonas da costa, estando entre os seus piores efeitos a contaminação das águas devido às quantidades enormes de hormônios aplicados aos peixes).
A ditadura pinochetista massacrou boa parte dos e das militantes de extrema-esquerda no Chile, assim como setores populares combativos. Existem muitos registros de história oral, riquíssimos em detalhes, acessíveis por meio de livros publicados recentemente. O último que li, Sangre de Baguales, é narrado por um ex-militante do MIR, que deixou sua Valdívia natal para fazer trabalho político na cordilheira, entre os trabalhadores mapuches das madeireiras da região de Panguipulli, Neltume, Liquiñe e Chihuío. Entre as muitas histórias impressionantes da vida difícil destes homens e mulheres, que chegaram a autogestionar a madeireira onde trabalhavam cerca de 3.000 pessoas, o autor Pedro Cardyn conta como participou de um dos pouquíssimos focos de guerrilha que ensaiaram resistir ao golpe. Mas também nos comenta das outras experiências de luta armada no país, apoiadas por ele, nos anos 80. De fato, o território sob controle do Estado chileno foi e continua sendo pródigo em experiencias radicais. Para além de toda a influência guevarista na América Latina, do outro lado da cordilheira certas tradições anarquistas e niilistas do começo do século XX parecem se renovar e são também combustível para todo tipo de radicalização baseada no ódio à miséria proletária e às forças repressivas. É o impressionante caso da VOP, Vanguardia Organizada del Pueblo, grupo revolucionário criado no ano 1968 a partir de militantes expulsos do MIR. Este grupo, conduzido pelos irmãos Rivera Calderón, realizou roubos a bancos e o justiçamento de um ex-ministro do Interior responsável pelo massacre de Puerto Montt, em 1969, quando os carabineiros mataram um grupo de pessoas que estavam ocupando um terreno ilegalmente. A VOP foi perseguida e desmantelada pelo governo Allende pois era um dos poucos grupos que se mantinha crítico à Unión Popular, defendendo a linha da via inssurreicional ao socialismo e sendo integrada por uma estranha mistura de comunistas, anarquistas, delinquentes, conspiradores, etc. Os irmãos Rivera Calderón e outros integrantes foram cercados e assassinados pela polícia em 1971. Poucos dias depois, com quase todo o grupo exterminado, um dos militantes que restava vivo se encaminhou para um quartel da polícia armado com um fuzil e dinamites, e se explodiu levando consigo três policiais.
Seria um erro tipicamente sectário dizer que todo esse espírito indomável se resume à forte presença da ideologia anarquista naqueles territórios, particularmente do “insurrecionalismo”. Mais inteligente seria pensar que neste terreno fértil é que o anarquismo parece ter facilidade de florecer. Por um lado, os laços entre anarquistas e lutas indígenas mostram uma atividade real e séria de ao menos parte deste campo militante. O melhor exemplo disso é na verdade argentino, Santiago Maldonado, quem com frequência viajava para as comunidades mapuches tanto no território argentino como no chileno. O fato de ter sido assassinado ao integrar um bloqueio de estrada realizado por uma comunidade mapuche mostra o grau de confiança que essa comunidade tinha em Santiago. A Cordilheira dos Andes, com seus caminhos secretos, foi tradicionalmente utilizada como rota de fuga para grupos ou indivíduos perseguidos no território chileno, especialmente no caso mapuche, dado que seu território tradicional incluía ambos os lados da cordilheira. Por outro lado, a radicalidade e algumas posições que podem rapidamente ser associadas ao anarquismo em outros ambientes sociais e políticos, no Chile podem corresponder simplesmente à mobilização popular e suas tradições, sem que haja uma identidade política com o anarquismo. De fato, apesar de toda a potência libertária e dos feitos espontâneos da classe trabalhadora chilena na época prévia ao golpe de Pinochet, o anarquismo parece ter influenciado muito pouco as lutas proletárias daquele momento, e nos relatos que conheço não me lembro de ter visto uma menção sequer a um grupo que se reivindicasse anarquista.
E se falamos de via insurrecional ao socialismo, termino esse relato pensando nas muitas insurreições que estamos acompanhando nos últimos meses. Têm sido via a quê? Existe aí algo de socialista — no sentido mais antigo da palavra —, como talvez diria um trotskista, um “conteúdo socialista” sem a sua forma? Para onde será que aponta tudo isso? Bem, acho que nesse verão seremos muitos e muitas pelo mundo inteiro pensando sobre isso…
Ilustram este artigo obras do artista chileno Camilo Yáñez.
Sr. Primo Jonas,
Por gentileza, o que é anarquismo e o que é “simplesmente mobilização popular e suas tradições”?
SECUNDANDO PRIMO JONAS:
https://comunidaddelucha.noblogs.org/post/2018/06/08/memoria-proletaria-en-las-calles-metropolitanas-la-vop/#comment-14
Primo Jonas,
Estamos diante de ensaios revolucionários, que não começaram nos últimos meses, são uma continuidade das insurreições anti-sistêmicas que iniciaram-se em 2011 com a Primavera Árabe.
Há quem prefira condenar estes processos revolucionários pelos resultados eleitorais ou políticos que os sucederam. Como é o caso daqueles que fazem uma ligação direta entre junho de 2013 e o fortalecimento da direita e da extrema-direita que culminou com a eleição de Jair Bolsonaro aqui no Brasil.
Jailson, vou ser tão breve como tua pergunta. Anarquismo é uma corrente ideológica e política. Mobilização popular e suas tradições são histórias e práticas locais de uma população.
Operário, tenho certas dificuldade em entender a Primavera Árabe como uma insurreição anti-sistema. Digo, em termos amplos eu poderia interpretar que grandes mobilizações de massas atropelando e combatendo a legalidade vigente mais do que nada aponta à capacidade destas massas de justamente reverter ou transformar a ordem legal vigente. Em muitos casos se tratou de uma revolta contra regimes rígidos, baseados em personalidades já velhas e desgastadas. Mas talvez casos como o Brasil e o Egito mostram que estas revoltas podem terminar em novos regimes igualmente ou mais rígidos, que de alguma maneira aplaca os desejos de uma parte da população enquanto persegue mais duramente as partes perdedoras.
No contexto atual acho que condenar ou “recomendar” estes processos, que eu não chamaria de revolucionários, nem sequer cabe aos pequenos partidos de esquerda que estão muito longe de poder controlá-los ou sequer de influenciá-los, o que dizer então dos pequenos grupos que fazemos parte nós da ultra-esquerda (libertária ou outro nome mais adequado).
O que vejo até agora é uma mistura ainda confusa entre expectativas e análise de possibilidades. Este tipo de revoltas de massas seguirá ocorrendo até que surgirá finalmente um caso onde o controle será assumido por conselhos de trabalhadores? Até que ocorrerá uma fragmentação total e cada território será controlado por assembleias locais? Onde é que isso ocorreu em todos os casos desde 2011? Para além do momento negativo, que se mostra claro em todos os casos, quais são os momentos positivos destas revoltas que nos deem alguma pista sobre uma possível revolução? Quais serão os soviets do século XXI? Há algum sinal disso? Talvez realmente sejam ensaios, mas ainda não está claro para mim ensaios de que. Acho que seguiremos colecionando pequenos detalhes, algumas informações interessantes, mas o significado dessa onda, que já tem quase 10 anos, ainda não é tão claro para mim.
Primo Jonas,
A minha esperança reside na capacidade das massas reverterem e transformarem.
Como não recomendar processos revolucionários e de luta? Se nós observamos apenas as mudanças superestruturais após as insurreições, o movimento dos trabalhadores estará fadado ao fracasso.
Será que o processo revolucionário que acontece agora no Chile não seria uma continuação da luta dos estudantes secundaristas que quebraram o centro de Santiago inteiro em 2015 contra a reforma na educação?
Por isso que entendo esse período como um “ensaio revolucionário”, ou como os marxistas ortodoxos preferem denominar de situação pré-revolucionária.
Apesar das derrotas parciais que foram sucedidas por regimes mais rígidos com traços bonapartitas, como é o caso do Brasil por enquanto, e até mesmo traços fascistas, como na Húngria, a classe trabalhadora acumulou experiência em luta e considero esse o fator mais importante pra tentarmos esboçar alguma análise sobre a luta de classes do “nosso tempo.”
E com que métodos a classe trabalhadora acumulou experiência em luta? Bem, a maioria desses processos de luta que acorrem desde de 2011 têm alguns traços em comum, a classe trabalhadora se expressou de forma consciente nas ruas através de manifestações multitudinárias, o primeiro nó do nosso tempo foi desfeito, mesmo que momentaneamente a classe trabalhadora uniu-se e superou o seu processo de fragmentação. Outro traço é que as organizações instituicionais não foram capazes de DOMESTICAR o movimento de massas, nem os sindicatos e nem os partidos (da direita à esquerda) conseguiram dirigir esses movimentos com rédeas curtas, e esse fator/traço da negação dos partidos e sindicatos somado com a negação do que você nomeou como ordem legal vigente é o que em minha opinião caracterizam esses fenômenos com anti-sistema.
O que veio depois das mobilizações?
Em minha opinião, principalmente a direita e a extrema-direita foram capazes de canalizar esse sentimento anti-sistema, anti-democracia, no Brasil, Bolsonaro é o Presidente que está cagando pras instituições, o seu discurso é totalmente contra as instituições da Democracia, contra partidos, contra sindicatos e contra os meios de comunicação.
Por enquanto a classe trabalhadora paga a conta da crise do Capital na esperança de dias melhores, o fim da ordem legal vigente por enquanto parece ser onde reside essa esperança.
Mas, em um contexto de crise mundial-estrutural do Capitalismo, no qual não há mais espaço pra concessões substanciais e a receita da burguesia para continuar acumulando é a austeridade, as experiências com “as novas ordens legais vigentes” tendem a ser efêmeras, o que resultará em novas insurreições. Que governo de plantão foi capaz até agora de promover um grande período de estabilidade até agora?
A tendência mundial é do acirramento da luta de classes e não do apaziguamento-esvaziamento das lutas.
Seus questionamentos refletem as limitações dos ensaios até então, não tenho respostas para quais serão os soviets do séc. XXI, mas há esperança.