Por Isaac

Isaac, anteriormente um motorista de caminhão na UPS e representante de fábrica independente, comenta “O Irlandês” de Martin Scorsese para Organizing Work.

Quando eu era motorista de caminhão[1] na UPS em Baltimore, nosso representante era um coroa alcoólatra, amargo e divorciado chamado Eric. Ele subiu no emprego honestamente, desde que era motorista, e era ferozmente leal ao presidente local do sindicato, Denis Taylor. A sede local 355[2] era o feudo pessoal de Denis; ele concorria em todas as eleições sem nenhuma oposição, e foi se cercando de caras que eram sem dúvida os seus caras. Assistir a O Irlandês, de Martin Scorsese, me fez lembrar bastante do Eric e do Denis.

Uma vez, no estacionamento do lado de fora do nosso local de trabalho, um trabalhador atirou e matou outro trabalhador. Os dois estiveram brigando por causa do direito de senioridade[3] e o cara mais novo se ressentia de ter que sair do trabalho primeiro. Ele esperou pelo outro cara do lado de fora, querendo briga, mas não sabia que o cara mais velho tinha uma arma na sua caminhonete. Resumindo a história, o trabalhador mais velho alegou legítima defesa e escapou da condenação por assassinato. A UPS tentou demiti-lo, e houve uma reclamação formal[4]. O sindicato venceu, e ele MANTEVE SEU EMPREGO. Eric o representou, e o Eric era um cara do sindicato por completo – que me impressionou tanto por sua dedicação quanto por sua total amoralidade. “Eu acho que o nosso cara estava certo”, ele disse. “Sabe como é… senioridade”.

O Irlandês é baseado no livro I Heard You Paint Houses [“Ouvi Dizer Que Você Pinta Casas”, em tradução livre] de Charles Brandt, que conta a vida do representante sindical e matador de aluguel da máfia Frank Sheeran. Quando Bill Bufalino (representado por Todo Mundo Ama o Ray[5]) defende o jovem Frank (Robert DeNiro), é como se ele estivesse fazendo igual ao Eric. No primeiro flashback – o filme inteiro é narrado em flashbacks – Frank é um motorista de caminhão corrupto que trabalha para um açougue no sul da Filadélfia. Ele dá um golpe na empresa vendendo pedaços de carne para a máfia local. “Você fez isso?”, Bill pergunta para ele de cara. “Eu não me importo se você fez – eu estou aqui para te proteger”.

Joe Pesci está perfeito como Russell Bufalino, chefe da família criminosa Bufalino, que protege Frank e lhe ensina sobre o submundo de Filadélfia. Ele ajuda Frank em sua vida na máfia e acaba lhe dando a oportunidade de começar a “pintar casas” (matar pessoas). O elenco estrelado ainda inclui Al Pacino roubando a cena como Jimmy Hoffa, Stephen Graham como o notoriamente mafioso chefe do sindicato dos motoristas de caminhão Anthony “Tony Pro” Provenzano, Anna Paquin como Peggy, a filha distante de Frank, uma aparição de Harvey Keitel como Angelo Bruno, o predecessor de Pesci na máfia, e aquele cara loiro esquisito que faz o papel de Todd na série “Breaking Bad” [Nota do Passa Palavra: trata-se do ator e comediante Jesse Plemons] como Chuck O’Brien, o filho adotivo de Hoffa.

Para o sindicato dos motoristas de caminhão International Brotherhood of Teamsters, histórias sobre a vida e a morte de Jimmy Hoffa são praticamente um mito fundador. Todos os aposentados que vão ao sindicato têm uma opinião sobre onde o corpo de Hoffa está. O babaca do seu filho, Jimmy Hoffa Jr., controla o sindicato até hoje, depois de ter sido eleito pelo seu sobrenome, mesmo nunca tendo sido um sindicalizado. As únicas habilidades do Hoffa pai enquanto estava vivo eram quebrar pernas e organizar trabalhadores. Depois de liderar a greve dos “Garotos do Morango” contra a Kroger’s[6] quando era adolescente, ele foi contratado como um organizador profissional na sede local 299, não tanto pelo seu carisma, mas por suas habilidades de combate. Ele foi enviado para participar das greves de ocupação de 1936 dos trabalhadores automotivos como o líder de um esquadrão volante armado com cassetetes e bastões de beisebol. Entre seus mentores estava Farrell Dobbs, um líder do Socialist Workers Party[7] de Minneapolis, com quem ele trabalhou na campanha dos motoristas de caminhão nas estradas dos Estados centrais [dos EUA]. O jovem Hoffa absorveu tudo da militância e crueldade de Dobbs, mas nada do seu socialismo. Sua campanha para organizar as lavanderias judaicas de Detroit consistia principalmente em explodir as que não reconheciam o sindicato.

Confronto entre policiais e caminhoneiros na grande greve de Minneapolis, em 1934.

O Irlandês faz alusão a essa história quando Frank é contratado para explodir uma lavanderia em Delaware, mas isto se revela um grande erro, porque o proprietário dela é o parceiro de negócios de Russell Bufalino, Angelo Bruno (Keitel). Bufalino salva a vida de Frank conversando com Bruno, aprofundando a dívida de Frank e cimentando sua lealdade.

Na medida em que Frank sobe na hierarquia da máfia, Bufalino arruma um emprego regular para ele como organizador no sindicato dos motoristas de caminhão para encobrir suas atividades. Não demora muito para Hoffa notá-lo e convidá-lo para ir a Chicago explodir os carros de uma companhia de táxis que era contra o sindicato. Os dois se tornam próximos, convivendo com as famílias, e Frank rapidamente se torna um dos parceiros mais confiáveis de Hoffa. Sua filha Peggy gosta muito de Hoffa, mesmo tendo medo e desconfiando dos outros amigos criminosos de seu pai.

Uma das maiores narrativas durante o filme (de três horas e meia de duração!) é a deterioração da relação de Peggy com Frank. Ela é uma criança esperta e tem uma boa ideia do que seu pai faz, apesar de ele nunca falar sobre seu trabalho.

Não vou entregar toda a história, mas o filme cobre um ENORME período histórico. Há algumas especulações interessantes sobre o envolvimento da máfia no ataque à Baía dos Porcos, em Cuba, e no assassinato de JFK [John Fitzgerald Kennedy, 35º presidente dos EUA]. Uma das coisas mais divertidas feitas por Scorsese é congelar a imagem sempre que um novo membro picareta do sindicato dos motoristas de caminhão aparece pela primeira vez, com um texto descrevendo a morte violenta que cada um sofreu. Eu acho que não é surpresa para ninguém dizer que Al Pacino não chega até o final do filme.

Como um membro do sindicato, o que mais me impactou no filme foi o quão pouco a sua cultura mudou. Os federais [Federal Bureau of Investigation – FBI] limparam o sindicato da máfia há muito tempo, mas um certo estilo mafioso está fundido no seu DNA. O nepotismo, o favorecimento dos amigos, a lealdade pessoal, a hipermasculinidade, o sotaque italiano falso de filhos da puta que nem são italianos.

Em 2017, o bosta do filho do Hoffa nomeou Denis Taylor, o nosso presidente local, como diretor da Divisão de Encomendas. Isto significava que ele estava no comando do contrato coletivo que cobre todos os 260.000 trabalhadores da UPS nos EUA. Houve um comparecimento recorde para a votação do contrato, de 48% de todos os trabalhadores. O “Não” ganhou por uma margem de 54%. Os trabalhadores rejeitaram em alto e bom som o contrato costurado pelo Denis.

Denis invocou uma regra do estatuto do sindicato que diz que se menos de 50% das unidades envolvidas votarem, o contrato pode ser aprovado de qualquer maneira… mesmo se o “Não” tiver ganho. A UPS até lançou um comunicado na mesma noite dizendo que estavam dispostos a voltar para a mesa de negociação, mas Denis implementou o contrato mesmo assim. A moral no chão de fábrica atingiu uma baixa histórica. Para que servia votar?

Da esquerda para a direita, os sindicalistas: Jimmy Hoffa Jr., Sean O’Brien e Denis Taylor.

Eric, se você está lendo isso, eu não me esqueci da reclamação que eu ainda tenho por causa daquele pagamento que eu nunca recebi.

Denis, eu espero que alguém te mande em uma maldita viagem para a Austrália.

Traduzido ao português por Marco Tulio Vieira a partir do original disponível aqui.

Notas

[1] Os motoristas de caminhão são conhecidos nos EUA como teamsters. Este também é o termo usado para se referir a um membro do sindicato, a International Brotherhood of Teamsters, e também ao próprio sindicato. Um teamster normalmente é apenas o condutor do veículo, um trabalhador assalariado que não possuí nenhum direito sobre o instrumento de trabalho, no caso, o caminhão. [Nota do Passa Palavra: etimologicamente, “team” é, também, um grupo de animais de carga ou tração, e o “teamster” é quem conduz este grupo de animais; a tradução mais próxima para “teamster” a guardar este sentido seria, portanto, “tropeiro”, mas ela não se adaptaria à passagem do “teamster” das bestas de carga para os caminhões motorizados.]
[2] A estrutura sindical estadunidense é bem diferente da brasileira. A sede local seria como um sindicato de base territorial que é filiado ao que seria uma entidade nacional, a International Brotherhood of Teamsters.
[3] Este direito garante que um trabalhador, depois de uma certa quantidade de anos trabalhados, adquira um direito de ter seu emprego mantido em uma serie de casos. A regra especifica varia, dependendo da empresa, do sindicato ou do estado.
[4] Um procedimento burocrático onde o trabalhador faz uma reclamação para o sindicato, que a encaminha através de vários procedimentos formais.
[5] Seriado estadunidense dos anos 1990, no qual o ator era protagonista.
[6] Rede de mercearias onde Hoffa trabalhava.
[7] O Socialist Workers’ Party – SWP foi um partido trotskista nos EUA, apontado como o mais importante divulgador das ideias de Trotsky no país.

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