Por Bob
A nota a seguir precede o artigo em sua versão original na revista Chuang, e optamos por também traduzi-la, a bem da contextualização.
Publicamos aqui um registro enviado por um leitor que mora em Pequim. O artigo fornece informações detalhadas sobre como um certo grupo de trabalhadores de colarinho branco do continente[1] vê a agitação em curso em Hong Kong, e como o seu entendimento foi moldado nos últimos meses. A realidade descrita por esse artigo é desapontadora, como frequentemente a realidade tende a ser. Nosso objetivo em publicá-lo, todavia, não é o de esmagar qualquer otimismo contra as rochas afiadas do mundo real, mas em vez disso ressaltar que a única esperança merecedora deste nome é aquela que consiga cruzar esse mortal e decepcionante terreno com o otimismo nas mãos. Isso só pode ser feito por meio de uma rigorosa investigação empírica de nossa realidade presente.
Que esperança esse artigo oferece, em termos de rumos a se seguir? Nós, que vivemos na China, com frequência nos sentimos igualmente desesperançados, apesar do fato de que interagimos regularmente com a pequena minoria de esquerdistas e militantes trabalhistas do país com visões ao menos alinhadas às nossas numa perspectiva mais ampla. Nos últimos anos, porém, a repressão (mais recentemente voltada contra esquerdistas e organizações trabalhistas, seguindo os passos de repressões similares contra feministas e outros) estreitou substancialmente esse espaço, separando-nos do já pequeno grupo de amigos com quem compartilhávamos qualquer tipo de camaradagem política. Ao mesmo tempo, aqueles que restam são, provavelmente, mais representativos da ampla massa de trabalhadores chineses — sejam de colarinho branco, azul ou rosa — do que os esquerdistas mais expostos, que sofreram mais nas repressões.
Entre aqueles que restaram, do pessoal graduado dos escritórios de Pequim destacado neste artigo se esperaria que fossem uma exceção: são cidadãos chineses que tem VPN (ou tinham, até o aumento da censura ter bloqueado a maior parte delas), criticam regularmente o PCCh e tem sido historicamente simpáticos ao liberalismo de Hong Kong. Mas as conversas citadas a seguir revelam que essa posição tornou-se bem mais complexa em resposta ao movimento antiextradição, empurrando alguns desses antigos liberais, ou mulheres e homens apolíticos, em direção a uma posição que é solidamente nacionalista, antidemocrática e em favor de abrangentes medidas de repressão.
Exploraremos esse fenômeno em maior detalhe num futuro registro sobre o surgimento e estabelecimento de um novo nacionalismo chinês de direita durante o último ano, em resposta à guerra comercial e ao movimento antiextradição, especialmente entre estudantes universitários. O relato abaixo reflete principalmente a situação de trabalhadores de colarinho branco em Pequim, centrado naqueles que se veem como relativamente cosmopolitas, liberais e críticos ao PCCh.
Chuang
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Quando milhares de pessoas tomaram pela primeira vez as ruas de Hong Kong contra a lei de extradição no início de junho, poucas dos 1,3 bilhões de pessoas no continente ao norte ficaram sabendo. O controle das redes sociais bloqueou a maior parte das postagens relacionadas aos protestos de Hong Kong, e as manchetes da mídia estatal não publicaram sequer uma palavra sobre a situação delicada da cidade. Mas muita coisa mudou desde então. Hoje, não se passa um dia sem que a televisão central da China exiba cenas do fogo nas ruas de Hong Kong e coletivas de imprensa da polícia contabilizando o número de detidos nas manifestações de cada dia. No início, quando não havia notícias sobre Hong Kong no continente, eu desejava que meus amigos — ao menos aqueles que, como a maioria das pessoas, não têm acesso a VPN para ultrapassar o Grande Firewall[2] — pudessem ouvir sobre o que estava acontecendo em Hong Kong. Agora que a mídia estatal mergulhou o país em um fervor nacionalista para defender a “unidade nacional”, eu tenho saudades dos dias de apagão midiático.
A mídia estatal foi colocada em uma posição embaraçosa pela eclosão dos protestos em Hong Kong. Quando as primeiras notícias vieram à tona, os protestos massivos pareciam ter acontecido do nada, desorientando muitos dos meus amigos aqui em Pequim. Semanas de silêncio deixaram os continentais sem qualquer conhecimento da situação, até os primeiros relatos aparecerem na mídia estatal em meados de junho. Eles perderam a apresentação do projeto da Lei de Extradição pelo governo de Hong Kong em fevereiro, os comícios e o debate público sobre o projeto que se desenvolveu no verão. Ainda não havia notícias quando centenas de milhares estiveram nas ruas exigindo a retirada da Lei de Extradição em 9 de junho, ou quando voaram as balas de borracha e gás lacrimogêneo foi lançado no edifício do Conselho Legislativo, em 12 de junho. Então, em 13 de junho, a Xinhua[3] publicou seu primeiro artigo importante, intitulado “A opinião pública dominante em Hong Kong apoia a Lei de Extradição para impedir que Hong Kong se torne um ‘paraíso dos fugitivos’ “. O artigo foi forçado a retomar o pano de fundo das mobilizações, que não haviam sido cobertas pela imprensa do continente até então. O texto falava do homem de Hong Kong que assassinou uma mulher em Taiwan, e dos meses de preparação do governo de Hong Kong para alterar suas leis para permitir que ele fosse extraditado para o continente. Não falou dos meses de manifestações em menor escala contra o projeto de lei, ou das discussões locais que alertaram para o descontentamento, mas mencionou uma petição iniciada em abril pelo grupo pró-continente “Safeguard Hong Kong”, que alegava ter as assinaturas de 900.000 honcongueses apoiando o projeto.
A Xinhua e demais agências estatais foram duramente pressionadas a explicar por que 2 milhões de honcongueses, numa cidade de só 7 milhões de pessoas, tomaram as ruas contra o projeto naquela semana, no dia 16 de junho. Logo antes das manifestações daquele dia, os jornais do continente veicularam uma declaração do Departamento de Ligação com Hong Kong, alertando sobre “forças estrangeiras interferindo em Hong Kong”, uma alegação ridícula. Ainda que governos e agências de inteligência estejam sem dúvida em cena, e se encontrem regularmente com líderes políticos como Joshua Wong, ou superlideranças pagas do “movimento democrático” como Benny Tai, eles claramente não poderiam mobilizar um terço da população da cidade, menos ainda dirigir as “turbas de preto”[4] para o confronto com a odiada polícia — as ”aves de rapina“ que arremeteram para prender manifestantes às dúzias, infiltraram-se em protestos vestidos como manifestantes, ou permitiram às forças de segurança do continente operar dentro das fileiras da polícia local.[5]
Notícias e fotos das marchas massivas ainda penetravam, circularam no WeChat e em outras mídias sociais, e lembro-me de alguns de meus amigos do continente apoiando manifestantes em Hong Kong e achando uma pena que Pequim tivesse erguido tão rapidamente barreiras entre a cidade e o resto do país. Em junho, ainda havia vários sinais de que muitos continentais que simpatizavam com Hong Kong estavam contornando a censura para mostrar apoio. Mas essas interpretações e sentimentos mais compreensivos foram rapidamente submersos pela crescente campanha de propaganda. O controle da mídia social reforçou-se, e os protestos de Hong Kong foram se tornando, aos poucos, um tópico das notícias diárias. As autoridades do continente tiveram que elaborar uma mensagem comum. Rapidamente estabeleceu-se a linha de destacar os manifestantes “violentos” e “extremos”, supostamente incitados por “forças estrangeiras hostis”, principalmente os EUA (embora a China também tenha atacado publicamente a União Europeia, o Reino Unido, a Alemanha e outros governos estrangeiros que emitiram declarações contra a violência policial).
A narrativa, contudo, permaneceu um pouco confusa, e a cobertura continental continuou sendo vista por alguns de meus amigos como suspeita e incoerente. Um deles, por exemplo, questionava: se os protestos reuniam principalmente uns poucos extremistas nos centros políticos e financeiros da ilha de Hong Kong, por que havia tantos relatos de prisões (que os jornais do continente publicavam com muito gosto) ao longo de Kowloon e nas partes mais rurais dos Novos Territórios, no norte? Ou haveria protestos maiores do que os noticiados pela CCTV [China Central Television]? Claro, muitos amigos do continente estão perfeitamente cientes da censura estatal, e sabem que, em se tratando de assuntos politicamente sensíveis, as manchetes, na melhor das hipóteses, podem estar contando meias verdades. Mas sem alternativas prontamente disponíveis, a confusão semeada só parece aumentar, à medida em que a própria situação de Hong Kong continua a se desenvolver e ficar mais complexa a cada dia.
A invasão do prédio do Conselho Legislativo de Hong Kong no dia 1º de julho chocou outra amiga em Pequim. Após assistir às filmagens que circulavam na internet, ela estava fora de si, confusa e desacreditada. “Eu pensava que os honcongueses eram pessoas pacíficas”, dizia. “O que deixou eles tão furiosos e violentos? Acho que os boatos sobre influências estrangeiras devem ser reais. Por que eles fariam isso?” Poucos no continente tiveram acesso à cobertura de eventos como esses, ou puderam ler relatos de dentro do movimento que detalharam como um grupo de jovens de Hong Kong votou invadir o prédio usando um chat do Telegram, sem grandes planejamentos anteriores, tal qual tantas das ações de protesto têm sido decididas: coletivamente, nas plataformas de conversa de celular.
Chineses continentais assistindo o noticiário dificilmente entenderiam o papel que Pequim desempenhou na intransigência governamental, ao mesmo tempo apoiando, mas também paralisando Carrie Lam — junto com seu governo e suas forças policiais — ao forçá-la a manter uma linha dura absoluta diante dos protestos. Os continentais talvez tenham considerado fake news a matéria do Global Times[6] que expunha o vazamento de uma fala explosiva de Carrie Lam a um grupo de empresários. Lam explicou um tanto ingenuamente ao grupo que, “se tivesse escolha”, pediria demissão. “O espaço, o espaço político para um chefe executivo que pela Constituição precisa, infelizmente, servir a dois senhores, ou seja, o governo central da China e o povo de Hong Kong, esse espaço político é muito, muito, muito limitado para manobrar”, disse Lam. Fontes do governo de Hong Kong também revelaram à Reuters, bloqueada no continente, que o governo central chinês bloqueou uma movimentação dos dirigentes de Hong Kong para dar concessões aos manifestantes e retirar o projeto de lei de extradição pelo menos um mês antes do recuo oficial do governo de Lam, no início de setembro.
Isso pode até ter sido um movimento unilateral de Lam, a única das “cinco demandas” que seu governo podia engolir, seja como um osso jogado aos manifestantes, seja para acalmar a elite empresarial, mas é difícil afirmar. Muitos capitalistas de Hong Kong há tempos já viam a lei de extradição, e talvez a incursão mais profunda de Pequim em seu domínio exclusivo, como “ruim para os negócios”. O dinheiro fluiu para Cingapura e outros mercados conforme o governo avançava com o projeto. As outras demandas — como a libertação de centenas de manifestantes presos, ou um inquérito independente sobre violência policial — só importavam para o povo de Hong Kong, eram politicamente caras para o governo e, de qualquer modo, não custavam nem um centavo às empresas. Lam não podia renunciar, e o sufrágio universal seria muito caro para a cidade — literalmente —, conforme notou seu antecessor, CY Leung: “Se é tudo um jogo de números e representação numérica, obviamente você estaria conversando com a metade das pessoas em Hong Kong que ganham menos de US$ 1.800,00 por mês [HK$ 13.964,20]”, disse ele numa entrevista em 2014. Lam poderia, claro, ser franca com os líderes empresariais, ao tempo em que continuava a mentir entre os dentes para o público, e enviava mais (e cada vez mais militarizados) policiais contra os manifestantes.
Tensões — entre Hong Kong e o continente, e no interior da própria cidade — chegaram a um ápice no Dia Nacional da China, 1º de Outubro. Carrie Lam festejou em Pequim, enquanto a cidade erguia-se em protestos e um manifestante de 18 anos de idade era baleado no peito, à queima-roupa, por um oficial de polícia. Claro que nenhuma notícia dos protestos chegou à CCTV nesse dia, apenas a orgia de militarismo e orgulho nacional. Xi Jinping, contudo, fez uma referência a Hong Kong em seu breve discurso de abertura da parada militar, dizendo que a China precisava aderir à política de “um país, dois sistemas”, pouco antes de quilômetros de soldados, tanques, mísseis e drones desfilarem pela rua Chang’an e depois na praça Tiananmen. Meus colegas assistiram com orgulho e prazer, exceto uma, que é de Hong Kong. Ela passou a tarde chorando. Tendo visto a filmagem do jovem baleado nas ruas de Hong Kong em loop ao longo da tarde toda, a explosão de fogos de artifício à noite em Pequim foi demais para ela aguentar.
Está claro que muitos dos meus amigos e colegas que outrora estavam com a mente aberta para os protestos, ou talvez apenas curiosos quanto à novidade de manifestações massivas, agora estão decididamente do lado do governo central contra Hong Kong. O que eu achei particularmente alarmante foi a perda de qualquer senso de sutileza, ou vontade de entender os meandros da situação. Alguns mergulharam de cabeça em ideias fáceis de entender, mas lamentáveis. Eu escuto dizerem coisas do tipo: “Bom, os honcongueses optaram pela independência, então eles todos cruzaram a linha. Eles perderam a razão”. Muitos dos meus amigos foram frequentemente bem críticos ao PCCh no passado, e saíram da linha do partido em várias questões controversas, como os campos de Xinjiang, ou o Estado policial sempre em expansão, com seu Grande Firewall e câmeras de segurança em cada esquina. Contudo, nos últimos tempos, ao menos quanto a Hong Kong, parece que, na hora do vamos ver, alguns deles recuaram para um nacionalismo tosco, defendendo uma visão de “chinesidade”. A profanação de símbolos como a bandeira nacional chinesa, ou as vaias ao hino nacional chinês, rapidamente viraram assunto de debate no bebedouro do escritório, conforme circulavam amplamente no WeChat. “Esses honcongueses estão cometendo o erro de esquecer que são chineses. Eles estão virando racistas, com ódio de sua própria terra natal, o que é simplesmente inaceitável”, disse um. Claro, exemplos do ódio crescente contra honcongueses no continente não circulam no WeChat, como o espancamento de um time de hóquei de Hong Kong durante um torneio em Shenzen depois de vencer um adversário do continente. “Eu acho que a única saída para essa situação vai ser devolver Hong Kong para a China uma segunda vez”, disse outro, referindo-se à entrega da cidade em 1997, deixando de ser colônia britânica.
Eu garanto que essa deve ser a visão de uma pequena elite priveligada na capital, que tem o hábito de ler e discutir as notícias sobre Hong Kong, sobre a guerra comercial entre EUA e China, ou sobre conflitos no Oriente Médio, sobretudo como um passatempo. Não posso dizer que isso reflete a visão do continental médio, da costa às províncias do interior, ou do migrante do êxodo rural. Ao menos no meu entorno, todavia, a narrativa do Estado parece ter conseguido pegar forte depois desses últimos meses, indo do silêncio a uma absoluta guerra de propaganda. Combinanda à censura e repressão contra conversas particulares, ela pegou forte nos corações e mentes de muitos que naturalmente poderiam ser observadores mais simpáticos. Ao mesmo tempo em que a situação atual entre meus colegas parece sombria, também está claro que, se os cidadãos tivessem um acesso maior à informação, o custo para o Estado seria, de fato, pesado. Ao menos ficaria mais difícil para meus colegas caírem na narrativa do Estado, que não é senão a da lealdade eterna ao Estado, ao Partido, e à ideia do povo chinês num tempo de crise — como a Marcha dos Voluntários, o hino nacional, proclama:
A Nação Chinesa está num momento crítico
E de cada peito lança-se o último clamor:
Levantai-vos!
Levantai-vos!
Levantai-vos!
Nós, os milhões de corações que batem em uníssono,
Em desafio ao fogo inimigo, marcharemos!
Notas
[1] Nota do Passa Palavra: Por “continente” o autor refere-se à China continental.
[2] Nota do Passa Palavra: conjunto de medidas tecnológicas e legislativas empregues pela China para controlar a internet no território do país, que vão desde a censura a determinados sites estrangeiros e à redução da velocidade do tráfego de internet com o exterior até o bloqueio ao Google, Facebook, Twitter, Wikipédia e outras fontes de informação, e à exigência de adaptação, por parte de empresas estrangeiras, à legislação chinesa de internet.
[3] Nota do Passa Palavra: “Xinhua”, ou “Nova China”, é a agência oficial de notícias do governo chinês.
[4] Nota do Passa Palavra: referência à proliferação de adeptos da tática “black block”.
[5] Aqui vemos mais um exemplo dos rumores de forças continentais operando em Pequim.
[6] Nota do Passa Palavra: suplemento do Diário do Povo, jornal oficial do Partido Comunista Chinês, dedicado a analisar notícias internacionais de um ponto de vista nacionalista.
Traduzido pelo Passa Palavra a partir do texto publicado em inglês no blog da revista Chuang.