Por Miguel Serras Pereira
Um pouco por toda a parte, ouvimos falar da necessidade de reformar, melhorar, “dignificar” — o que significa remunerar mais generosamente, conceder mais mordomias, etc. — a classe política, sendo o subentendido que tal seria um grande passo em frente no que se refere à nossa vida política e à qualidade do regime ou à sua transformação. Pois bem, sendo embora evidente que os políticos de profissão que temos na região portuguesa e no mundo não são particularmente brilhantes, esta insistência na necessidade ou importância de uma classe política “de qualidade” é inversamente proporcional à vontade de democratização das instituições e de extensão da cidadania governante que é condição do exercício democrático. Bem sei que, entre muitos outros, os termos “democracia” e “cidadania” são muitas vezes, ou as mais das vezes, imprópria ou abusivamente usados, o que tem por efeito criar mal-entendidos em torno de pontos que seriam de outro modo evidentes, como é o caso da ideia segundo a qual a democracia efectiva e a cidadania governante implicam o combate imediato contra a reprodução de uma “classe política” dotada de competências hierárquicas próprias e a existência de políticos profissionais.
A democracia é o regime político que tem por princípio a autonomia de seres humanos que se dão, assumindo explicitamente fazê-lo, as suas próprias leis — a sua própria lei — e que, nesse exercício, se criam como cidadãos (co)governantes e (auto)governados. Ou, mais precisamente, a democracia consiste no processo de universalização da cidadania: todos e cada um dos membros da sociedade recebem, a partir do momento publicamente instituído em que sejam considerados adultos, como lei a responsabilidade pelas leis que se dão e pelo exercício do poder político que os governa. O cidadão é, como dizia Aristóteles, aquele que é capaz ao mesmo tempo de governar e de ser governado. A democracia é a universalização — no termo de um processo de formação/socialização definido e igual para todos — desta condição de cidadania.
Tanto basta para que comecemos talvez a ver melhor como a cidadania democrática e a política profissional ou a classe política especializada tendem necessariamente a excluir-se. A política democrática abre, para além da especialização profissional e das diversas competências particulares, um domínio não-profissional, que é o da organização explícita da sociedade e da deliberação sobre ela, em que, ao contrário do que se passa noutras esferas, ninguém é de direito superiormente qualificado ou autorizado. O que tem por pressuposto que promova também qualquer coisa como, para o dizermos nos termos de Hannah Arendt, um tipo de reflexão não-profissional, que, não se confundindo com a filosofia especializada, é condição de toda a interrogação filosófica e crítica, tal como esta pode exercer-se a propósito de todos os fazeres e saberes, e tal como, para tornar possível a cidadania governante de que é solidária, terá de exercer-se sobre o governo da cidade, sobre os seus usos e costumes, movimentos e tensões. Este espaço público de decisão e autonomia, pressupondo e promovendo a capacidade individual de reflexão autónoma e crítica da cada cidadão, condena à partida enquanto antidemocrática a formação de uma classe política profissional, bem como, noutra ordem de ideias, a ideia de uma política científica, ou da invocação de um saber ou doutrina como mecanismo de legitimação de uma divisão hierárquica do poder.
Em democracia a divisão do trabalho político deixa de confirmar e reproduzir a divisão política do trabalho, pois deixa de passar, entre os cidadãos, pela oposição entre governantes e governados, e, na medida em que seja possível falar ainda dela, refere-se à dupla e simultânea condição de governante e de governado que caracteriza os cidadãos que, participando igualitariamente na definição das leis, por elas são, também universalmente, vinculados. Se voltarmos agora ao início, teremos de admitir que uma classe política mais competente e profissionalizada poderia talvez tornar as medidas da administração mais eficazes do que são, mas não as tornaria mais democráticas. Pelo contrário, qualquer maior eficácia do poder político que se baseie no reforço da sua divisão hierárquica e afaste a cidadania da sua vocação/dimensão governante equivale a um reforço da dominação. A democracia, embora não exclua e até requeira a delegação mandatada, é directa. A ideologia da competência e da profissionalização da política é um caldo de cultura antidemocrático por excelência. Mas, na actual sociedade, a própria classe política tende a dispor de cada vez menos poder político real em benefício de instâncias e agentes que se apresentam como simples portadores das exigências da economia e das técnicas e métodos de racionalização correspondente. É por isso que a democratização do poder político e a criação de um espaço público de deliberação e decisão da cidadania governante não exige apenas a extinção da política como actividade profissional exercida por um corpo especializado, mas também a restituição explícita à esfera da deliberação e decisão democráticas regulares a instituir do poder político exercido na esfera económica. A organização económica é política, e politicamente articulada de um extremo a outro, como, de resto, os próprios pensadores clássicos da matéria sabiam, chamando “economia política” ao objecto que se propunham estudar. Deste modo, no momento em que a dimensão política explícita e os que dela se ocupam aceitam ser telecomandados por aquilo a que chamam a objectividade ou a racionalidade ou a necessidade da economia, esta última esfera passa cada vez mais a ser, em vez de sua intendência, o lugar central do poder político efectivo, enquanto a classe política se vê tendencialmente reduzida a uma espécie de direcção do pessoal, à escala da sociedade gestorialmente concebida.
O desenvolvimento de cada um destes pontos poderia e deveria levar-nos muito longe. Mas já não será mau que a sua indicação esquemática possa contribuir para fazer ver melhor que a verdadeira política democrática — essa actividade autónoma do cidadão que, como queria Castoriadis, interpela e estipula a autonomia, pelo menos potencial, dos demais na construção das cidades humanas e das suas leis — é um fazer e um fazer-ser muito mais amplo e profundo do que o rotineiro afã de tudo quanto faz uma classe política em vias de subalternização no interior da oligarquia dominante. E para fazer ver melhor também que a luta pela cidadania democrática governante e contra a profissionalização oligárquica da política é condição da restituição à política e a cada um de nós, dentro e fora dela, já não diríamos da sua plena dignidade, mas, na esteira de Orwell, de uma existência decente.
Versão ligeiramente adaptada de um texto publicado na revista da Casa da Achada PREC. Põe, Rapa, Empurra, Cai, Lisboa, número zero, Novembro de 2005.
CITANDO AnaEraklitob
É a democracia sendo contrabandeada, como ‘regime’, numa definição pertinente à autonomia (como movimento). Autonomia classista, ou seja: proletária.