Por Nicolas Lorca
Nas últimas semanas, principalmente após o assassinato de Georg Floyd, a caça aos falsos cotistas ressurgiu no cenário brasileiro. De um lado, encontra-se a justificativa de combate à “fraude” no sistema de cotas. Por outro lado, observa-se uma incompreensão do preto/pardo no Brasil e de alguns aspectos do sistema de cotas. Ainda, nota-se que a caça aos falsos cotistas representa o surgimento de tribunais e comitês informais de verificação racial e, como consequência, a retomada de perspectivas coloristas e racialistas.
Dessa maneira, o Movimento Negro – ou parte dele – retornou a um velho hábito, que tende a gerar mais polêmica e fragmentação do que a promover a construção do novo, de relações sociais em que o racismo e a segregação não se tornam aspectos marcantes. Além disso, o Movimento Negro tende a alinhar mais com pautas fascistas do que com pautas puramente “progressistas”. Dentro dessa dinâmica, a caça aos falsos cotistas encontra-se no bojo de atuação de um movimento que ou não sabe exatamente o que quer ou não sabe como atuar de modo a alcançar seus objetivos.
A caça aos falsos cotistas constitui uma estratégia bastante confusa, tanto do ponto de vista jurídico-legal quanto do ponto de vista da ação política. Para fins de explicação, utilizarei uma análise sobre a política de cotas nas três maiores universidades públicas do Brasil, em correlação com os efeitos dessa ação no que diz respeito aos impactos dessa estratégia de defesa dos direitos do negro e “afirmação de identidade”.
O IBGE, a EDUCAFRO e as universidades brasileiras
O sistema de cotas raciais surge no cenário brasileiro através das mobilizações sociais que ocorreram a partir da década de 1980. Parte significativa desse movimento pela implementação das cotas raciais para o ingresso nas universidades públicas surge no entorno do Movimento Negro Unificado (MNU). Após anos de luta, as cotas começaram a se tornar realidade nos anos 2000, quando a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) implementou o primeiro modelo.
Após quase vinte anos, o sistema de cotas tornou-se praticamente uma regra para as universidades brasileiras, fazendo com que parte significativa dos negros, pardos, indígenas e quilombolas tivessem acesso às universidades públicas e privadas.
No entanto, quando se observa os indicadores sociais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) verifica-se que entre os jovens de 18 a 24 anos, 25,2% estão cursando o ensino superior, sendo apenas 18,3% pretos ou pardos, em comparação com 36,1% de brancos.
Esses dados auxiliam na compreensão de que parte significativa dos negros ainda está ausente das universidades. Concomitantemente, o sistema de cotas raciais é organizado de maneira distinta pelas universidades, podendo cada uma organizar e fiscalizar da forma que lhe aprouver.
Nesse sentido, tomando o Ranking Universitário Folha (RUF) , as três maiores universidades brasileiras são: 1 – Universidade de São Paulo (USP); 2 – Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP); 3 – Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Destarte, as três maiores universidades brasileiras possuem modelos de cotas raciais distintos. Entretanto, pode observar-se que esses modelos utilizam a mesma base, partem do mesmo conceito de negro e branco. Este conceito é desenvolvido pelo IBGE (ver aqui) e corroborado pela EDUCAFRO, em que o negro é aquele que possui não somente os fenótipos, mas também a cor de pele ou, dentro de um contexto mais amplo, é compreendido enquanto socialmente negro.
Em vista de sanar as dubiedades do conceito do IBGE, cada universidade faz adaptações e cria mecanismos de fiscalização racial. A EDUCAFRO foi demasiado importante nesse processo. Em primeiro lugar, através da pressão pela implementação dos comitês de heteroverificação; em segundo lugar, por exercer, primariamente, uma verdadeira — e quase religiosa — perseguição aos “falsos cotistas”.
Diante disso, criou-se um espectro onde a determinação de quem é negro e quem não é assume um carácter institucional, onde a EDUCAFRO encontra-se centralizada e as universidades são absorvidas dentro da lógica de fiscalização de negritude e branquitude.
Na UNICAMP, por exemplo, os comitês de averiguação foram criados em 2020, mesmo que o surgimento das cotas raciais na instituição tenha ocorrido em 2017. Outro exemplo disso é a UFRJ , que passou a adotar comitês de heteroverificação.
Sendo assim, observa-se que os comitês de averiguação surgem como uma tendência das universidades para combater as fraudes no sistema de cotas. Com base nisso, a enorme pressão que a EDUCAFRO realizou nos últimos anos desemboca num movimento crescente pela implementação desses comitês.
No entanto, a existência dessas organizações cria um risco no que diz respeito ao ingresso de negros no ensino superior. Em primeiro lugar, pode destacar-se que tanto o conceito do IBGE quanto a visão restritiva da EDUCAFRO não correspondem à maioria dos negros e pardos no Brasil.
Em anos de cultura miscigenada, o conceito de negro no Brasil alterou-se radicalmente, criando manifestações próprias e desdobramentos novos. Falar de critério racial, incorporando somente cor de pele e fenótipos é, mais uma vez, incorrer numa visão colorista da questão. Radicalmente, a existência dos comitês de averiguação coloca em risco as cotas raciais e promove o racismo unilateralmente.
No auge da teoria racialista, quando se buscava sustentar uma ideia de que os negros eram inferiores aos brancos, utilizava-se fitas métricas e goniômetros. A justificativa era que os negros tinham, por sua vez, as proporções do crânio mais arredondados que os brancos e, por causa disso, eram dotados de menos inteligência.
A determinação de quem é negro e quem não é realizada através dos comitês tem repercussões significativas no processo de exclusão racial. Recordo-me de um amigo que era nitidamente negro, militava no Movimento Negro e era reconhecido por seus pares, mas foi excluído por não se enquadrar nos critérios dos comitês de averiguação.
Não faltam exemplos dos erros desses comitês e de como estes constituem novas formas de racismo cientifico. Os critérios raciais do IBGE compreendem que, além do fator cor de pele e fenótipo, o negro precisa ser socialmente aceito como negro. Essa questão é demasiadamente polêmica e incorre justamente num problema que mencionei anteriormente: os comitês não dão conta de determinar quem é negro ou não. O conceito do IBGE, tão reivindicado entre os acérrimos defensores dos negros, acaba por criar uma marginalização maior e uma incompreensão da negritude no Brasil. O fato é que o conceito não funciona, e na prática traz muito mais a exclusão de estudantes negros do que o favorecimento de estudantes brancos.
Por outro lado, encontra-se ainda um erro gravíssimo do ponto de vista da análise racial no Brasil. Quando se observa, por exemplo, a taxa de ingresso de negros nas universidades, os pardos são somados ao montante dos negros. Esse processo, por sua vez, cria uma ideia de que mais negros estão ingressando na universidade. Contrariamente, quando se verifica a desistência ou, mais ainda, o abandono educacional, os pardos são retirados dessa associação com o negro.
Dentro da política de cotas raciais, o conceito de pardo encontra-se largamente indefinido, inconcluso. Afinal, quem é pardo no Brasil? O Movimento Negro faz largas campanhas para dizer que “pardo é papel” e que esses indivíduos são negros. Os brancos, por sua vez, não os reconhecem enquanto pares raciais. No centro dessa questão, simultaneamente, os pardos são encaixados ora como negros ora como brancos.
A negação da existência desses indivíduos e do processo de formação destes enquanto grupo social cria todo o tipo de confusão e coloca em xeque a capacidade dos comitês em determinar a raça.
É nesse balaio que os gatos se batem…
Na ausência de um conceito claro de negritude, atrelado às deficiências na educação brasileira e à dubiedade das comissões de averiguação, surgem, em contrapartida, comitês informais. Sem meias palavras: surgem comitês de fiscalização de negritude e fraude no sistema de cotas fora da esfera institucional.
A caça aos falsos cotistas tem se tornado quase que uma regra nas universidades brasileiras. Nas últimas semanas pudemos observar essa perspectiva de forma mais ampla. A estratégia da EDUCAFRO tomou proporções gigantescas, saindo das mãos dela e tornando-se uma característica comum dos coletivos e organizações do Movimento Negro.
A justificativa de combate às fraudes no sistema de cotas aparece, agora, como um aspecto dimensional das lutas do movimento negro brasileiro. Com base nisso, surgem, quase que simultaneamente, perfis em redes sociais que buscam expor e “denunciar os fraudadores”, bem como cobrar que esses estudantes sejam expulsos das universidades. São inúmeras as universidades que possuem esse comitê informal e torna-se um esforço desnecessário apresentar todas elas.
Nos quatro cantos da terra tupiniquim existe uma verdadeira “guerra santa” contra aqueles que “fraudaram” o sistema de cotas. Essa luta pela justiça racial encontra-se “justificada” na ideia de que o acesso de negros à universidade está sendo comprometido pelos “brancos fraudadores”. Desse modo, a exposição desses indivíduos cria uma falsa perspectiva de que, retirando os fraudadores da universidade, a vaga ociosa é automaticamente transferida para o negro. Ao mesmo tempo, encontra-se uma ideia de que a exposição tende a criar um medo nas pessoas e assim evite que novas fraudes ocorram.
Expor para conquistar o que é nosso!
Na última semana percebermos o quanto a exposição dos falsos cotistas se insere numa perspectiva de que na ausência deles (os fraudadores) a vaga seria ocupada por aqueles que a perdem em decorrência da fraude. Recentemente, numa caça aos falsos cotistas da Universidade Federal de Goiás (UFG) foram espalhadas pelos campi fotos dos fraudadores e foi criada uma lista coletiva onde os estudantes os denunciavam. Os limites dessa estratégia ficaram explícitos.
Em primeiro lugar, o sistema de cotas na UFG (e em outras universidades) não dispõe de mecanismos claros para que a vaga retirada do “fraudador” seja atribuída àquele que a perdeu. Nesse sentido, pode observar-se que, mesmo com a denúncia de um falso cotista e a instauração de um processo administrativo, a cota fraudada não é devolvida para o sistema. Ela fica perdida, ociosa.
Recentemente, num movimento de denúncias em massa, alguns estudantes foram considerados ‘brancos demais” para estarem em cotas para negros ou pardos. Após a instauração de um processo administrativo com o objetivo de confirmar a raça dos estudantes, alguns foram considerados aptos para ocupar a vaga de cotista. Os denunciantes, por sua vez, observaram que a banca de heterverificação não servia para determinar raça.
Ora, a implementação das bancas de heteroverificação constituiu uma pauta importante de organizações como a EDUCAFRO e o MNU, pois pensava-se que a existência delas colocaria limites na fraude do sistema de cotas. No entanto, percebe-se que, progressivamente, a luta pelas bancas de heteroverificação tem se direcionado para a existência de comitês informais, formados pelos justiceiros raciais.
A caça aos falsos cotistas cria uma sensação de que o sistema de cotas não funciona – e talvez não funcione mesmo. No entanto, as imprecisões no conceito de raça cunhado pelo IBGE, cria espaço para a fiscalização racial. Nesse sentido, quanto menos “negro” for o indivíduo, menos tem direito às cotas. Esse processo torna-se evidente quando observamos, por exemplo, a “questão do pardo”.
O pardo encontra-se no centro da caça aos cotistas, pois a imprecisão do conceito permite que indivíduos muito diferentes consigam ingressar nas universidades através dessa cota. Embora existam casos onde o “fraudador” se compreenda enquanto negro, isso não é tão expressivo quando observamos o uso de pardo. Talvez, nesse ponto, possamos compreender a reivindicação que o Movimento Negro tem feito sobre a não existência do pardo.
Por outro lado, talvez o mais relevante para esta discussão, diz respeito à tática da caça aos falsos cotistas. O surgimento destes tribunais informais, que buscam trazer a “justiça racial”, cria como consequência a perseguição, a exposição e a exclusão de alunos a partir de critérios raciais indefinidos.
A caça aos falsos cotistas reivindica que somente os “puros”, aqueles que verdadeiramente se encaixam no conceito, podem usufruir das cotas. Isso coloca em risco, por exemplo, o ingresso ou a permanência de parte significativa de negros e pardos que na cartela de cores desse movimento são considerados “brancos demais”.
O fato é que esses tribunais informais revivem o racismo científico, buscam determinar quem é digno das cotas e quem não é digno através de uma cartela de cores que não existe formalmente, mas são definidas por um critério subjetivo, ausente de uma verificação mais profunda ou sistematização conceitual. O que importa, tão somente a este grupo, é a exposição dos “falsos cotistas”. O julgamento informal incorre num erro gravíssimo, que promove a instauração de um determinismo racial.
A tática de caça aos que “fraudam” o sistema de cotas constitui uma verdadeira forma de segregação, de distopia. Para os defensores dessa tática, expor os estudantes que fraudam o sistema de cotas é, acima de tudo, fazer justiça ao povo “negro”. Nesse sentido, para esse movimento, qualquer negro que se opõe a essa tática é um cotista ingrato, um negro de estimação, um passa pano!
Para além disso, outro aspecto chama a atenção. A exposição dos “falsos cotistas”, amparada na maioria das vezes num conceito subjetivo de negritude, cria como consequência o ressurgimento de perspectivas que buscam pôr um fim a elas. Ao passo que esses movimentos ganham força nas universidades e, de certa maneira, são legitimados pela sociedade, surge a ideia de que a determinação de quem é negro e quem não é não pode ser realizada pelas universidades, nem pelo IBGE. Pelo contrário, a determinação racial “deveria” ser realizada por negros, pelo Movimento Negro, pela EDUCAFRO.
Essa tentativa de institucionalização do conceito e o processo de “fiscalização” racial contribuem para um desmantelamento do sistema de cotas, que passa a contar com uma fiscalização das universidades e fica nas mãos dos comitês informais. Concomitantemente, a caça aos falsos cotistas apresenta ainda um aspecto mais grave, ou seja, a possibilidade do Estado criar mecanismos que, ao invés de promoverem um maior acesso as universidades, acaba por criar restrições que afetam diretamente os estudantes cotistas.
É possível observar, por exemplo, os efeitos que a caça aos falsos cotistas têm produzido no curto prazo. Desde o surgimento de formas de punição mais “brandas”, como a expulsão e perseguição, até o ressarcimento do Estado pela fraude no sistema de cotas. Todos estes aspectos demonstram que a luta contra a fraude no sistema de cotas e, principalmente, a caça aos falsos cotistas dispõe de enormes problemas. Do ponto de vista do conceito racial, observa-se a exclusão de estudantes e o surgimento de comitês e tribunais informais. Do ponto de vista da ação política, a caça aos falsos cotistas tende a desgastar o sistema de cotas, gerando por consequência o surgimento de políticas de desmantelamento do modelo. Do início ao fim, a caça aos falsos cotistas tende a desenvolver mecanismos confusos, voltados para uma compreensão subjetiva de raça, com fortes inclinações ao colorismo e ao racismo científico.
As imagens que compõem a ilustração desse artigo são do pintor barroco Michelangelo Merisi da Caravaggio (1593-1610)
Há algo de curioso nesse movimento. Um dos itens que costuma embasar a argumentação em favor das cotas é que 50% da população brasileira é negra, se buscarmos de onde vem esse dado veremos que é do IBGE, com a totalização de pretos e pardos que assim foram autodeclarados. Então a autodeclaração serve para sustentar a política, mas não para as pessoas entrarem na universidade.
Que texto prolixo e tendencioso. Para quem é preto traz aquela sensação recorrente de mais uma tentativa de brancos a fim de manter a todo custo sua estrutura de privilégios sobre negros. A questão é que neste país não há um termo como “people of color”, que essencialmente, a menos nos EUA, refere-se a toda pessoa negra, seja parda, ou de tom de pele mais escuro; e tampouco há (ainda) jurisprudência para lidar com a questão dos fraudadores de cotas. O que se tem visto é a iniciativa de algumas IES, através de denúncias formais, optar pelo cancelamento de algumas matrículas. Aqui cabe lembrar que a política de cotas é amparada por lei, mas mais uma vez, reitero, há sempre aqueles que querem pormenorizar a questão da justiça racial como se esta fosse uma questão menor no espectro jurídico, quase subjetiva, ou uma “visão colorista”, “corta cabeças”, etc., a despeito de termos usados pelo autor. Não se trata disso. Entre a maioria das pessoas denunciadas, autodeclaradas “pretas” ou “pardas”, não resta dúvida se tratarem de indivíduos caucasianos, brancos, fenótipos e características brancos. Essas pessoas cometeram um delito, e pronto e acabou! Numa alusão mais ampla, podia-se inclusive incorrer em crime de falsidade ideológica. Ora, se as políticas de cotas servem como “política tapa buracos”, imediatista na luta por reparação de danos sociais pós-abolição, todo esforço por trazer justiça racial é válido, daí justifica-se a criação dos comitês de verificação e a visão de que a sociedade deve ser educada, que os fraudadores cometeram faltas GRAVES e sua punição deve servir de exemplo e inclusive de amadurecimento destas políticas. Não deve ser tratado como “deslize” de brancos que não sabiam, ou melhor, não tinham consciência de estar tirando o direito de uma pessoa menos privilegiada de estar na faculdade. Mesmo se você e seu colega estudaram ambos em escola pública, a narrativa social do negro pode diferenciar bastante. Se você tem tempo para estudar pro vestibular e seu colega negro não, pois esse precisa sair do Ensino Médio direto para o trabalho, isso é privilégio; se você pode estudar pro vestibular com mais segurança alimentar do que seu colega negro por que esse tem que dividir a comida com mais irmãos, isso é privilégio; se você mora mais ao centro do que em regiões periféricas e não precisar apanhar dois ou mais meios de transporte para ir estudar, isso é privilégio. Poderia ficar elencando uma série de problemáticas que só que é preto passa, muitas vezes tendo que trabalhar o dia todo para pagar uma universidade particular, enquanto o seu colega supracitado do Ensino Médio, está ingresso em uma IES pública por fraudar um mecanismo de justiça social? É isso um delito menor? Menos passível de punição exemplar? Basta!
João Firmino, você coloca diversas questões interessantes. Primeiro, você observa que não existe uma definição muito clara sobre negros e pardos no Brasil, principalmente quando discute sobre “pessoas de cor”. O problema consiste nisso, ou seja, a ausência de um conceito claro, que compreende todo o largo histórico de miscigenação e formação de identidade é o principal fator da caça aos “falsos cotistas”. Dizer que não existe jurisprudência é, por sua vez, desconsiderar diversos casos concretos que adquirem materialidade na jurisprudência.
1 – http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=278000
2 – https://ufmg.br/comunicacao/publicacoes/boletim/edicao/2047/inclusao-mais-justa
Posteriormente você escreve “Entre a maioria das pessoas denunciadas, autodeclaradas “pretas” ou “pardas”, não resta dúvida se tratarem de indivíduos caucasianos, brancos, fenótipos e características brancos. Essas pessoas cometeram um delito, e pronto e acabou! Numa alusão mais ampla, podia-se inclusive incorrer em crime de falsidade ideológica”. Bem, se estamos tratando do direito, sobretudo do direito publico e do direito penal – pois você colocou a falsidade ideológica – então como explicar a exclusão de estudantes negros, pardos e indigenas por partes dos comitês de heteroverificação (https://www.educafro.org.br/site/comissoes-de-verificacao-ja-impediram-matricula-de-15-mil-cotistas-pelo-pais/)? Se a própria EDUCAFRO compreende a exclusão desses indivíduos, como diremos que é falsidade ideológica? Deixo como exemplo o caso da estudante indígena que foi acusada de “fraudar” as cotas, mesmo sendo indígena (https://m.leiaja.com/carreiras/2020/06/04/cotas-jovem-indigena-critica-injusta-acusacao-de-fraude/).
Por fim, você escreve “Ora, se as políticas de cotas servem como “política tapa buracos”, imediatista na luta por reparação de danos sociais pós-abolição, todo esforço por trazer justiça racial é válido, daí justifica-se a criação dos comitês de verificação e a visão de que a sociedade deve ser educada, que os fraudadores cometeram faltas GRAVES e sua punição deve servir de exemplo e inclusive de amadurecimento destas políticas. Não deve ser tratado como “deslize” de brancos que não sabiam, ou melhor, não tinham consciência de estar tirando o direito de uma pessoa menos privilegiada de estar na faculdade”. Esse trecho depõe contra o seu primeiro argumento, ou seja, de que não existe um grupo racial bem definido. a fraude no sistema de cotas – como mencionei em diversos momentos do texto – são frutos: 1 – da ausência de uma compreensão clara de negritude e da construção e constituição do pardo no Brasil; 2 – da ação excludente das comissões de heteroverificação.
Se você pretende falar sobre legalidade, de jurisprudência e de legislação, a exposição desses indivíduos também se constitui um crime. O problema da caça aos falsos cotistas está centrado na política de exposição, no estabelecimento de critérios subjetivos de raça e o estabelecimento de tribunais informais de racialidade.
Não irei discutir meus “privilégios”, por que isso é uma discussão mais ampla e que não cabe expor aqui. No entanto, penso que é bastante interessante ser colocado como “branco” porque escrevi um texto de crítica à caça aos falsos cotistas.
Gostaria de pedir o número de identificação de negritude do Sr. Nicolas Lorca, para saber se este tem “local de fala”. Gostaria também de obter a taxa de desprivilegiado do Sr. Lorca, para saber se este deve ou não criticar algo. Em qual nível de negritude ele se encaixa? será que é negro?
Atenciosamente,
Centro de Fiscalização Racial
N. 0000, CEP. 000000-1
Nicolas Lorca,
acredito ser relevante sua intenção de analisar determinados aspectos das relações raciais, o que já vem sendo feito em, pelo menos, três de seus textos – (A frente negra brasileira: Institucionalização, contestação e fascismo – Institucionalização e contestação: As organizações e as lutas do movimento negro… – O negro aqui e acolá: o movimento negro no Brasil e nos Estados Unidos) -, com acertos e equívocos de quem se propõe a discutir tão espinhosa temática.
Inicialmente, não sou afeito ao liberalismo black money, que somente reforça a reprodução social do capital, nem muito menos aos identitarismos picaretas, que prescrevem um culturalismo essencialista e voltado para identidades fixas e imutáveis no tempo. Como debato a temática racial – que está para além de “uma questão do negro” e muito centrada na branquitude como elemento referencial -, acredito que o seu presente texto possui determinadas debilidades que apresento para um debate franco e direto, principalmente em virtude de você firmar certas generalizações – presentes em outros textos seus – que não se coadunam com uma perspectiva analítica crítica de base materialista.
Primeiro, você reiteradamente insiste – ainda que em certas passagens faça a devida ressalva (“o Movimento Negro – ou parte dele –”) – em compreender o movimento negro como um bloco monolítico, logo homogêneo, o que padece de evidente equívoco, tendo em vista que o movimento negro é diversificado politicamente, desde perspectivas fascistas a viés de extrema esquerda. Nisso, você deixa de apontar uma imensa complexidade de tensões, acirramentos e disputas no seio do movimento. Já discutimos isso em Institucionalização e contestação: As organizações e as lutas do movimento negro no Brasil, nos comentários.
Segundo, você parte do pressuposto de que haveria uma “incompreensão do preto/pardo no Brasil e de alguns aspectos do sistema de cotas”, que estaria fundada numa ideia subjetiva de raça, o que tornaria difícil definir quem seria o sujeito abarcado pelas medidas compensatórias, razão pela qual a “caça aos falsos cotistas constitui uma estratégia bastante confusa”. Bem, me parece que você deixa de considerar – ou intencionalmente não foi objeto de suas preocupações – a dinâmica racial brasileira, que, independentemente do recorte teórico-analítico adotado, causa efeitos concretos na repartição da riqueza social e no acesso diferenciado aos serviços públicos, intensificando a exploração do trabalho pelo capital. Veja que o racismo, numa sociedade de base escravocrata e de capitalismo dependente, é uma manifestação concreta e medidas de enfrentamento devem ser adotadas, para mitigar os seus efeitos. Enquanto a raça for um marcador relevante na sociedade brasileira, não pode ser desconsiderada tão somente pensando-se nos perigos da racialização ou de um colorismo abstrato – que existem – e, muito menos, de uma igualdade universal também abstrata, Isso não impede, por outro lado, de afastarmos os identitarismos que reforçam “perspectivas coloristas e racialistas”.
Terceiro, você mesmo reconhece que “parte significativa dos negros, pardos, indígenas e quilombolas tivessem acesso às universidades públicas e privadas” e também aponta disparidades entre os negros e os brancos. Isso não pode ser desconsiderado: são marcadores significativos. Lembre-se que há uma disputa política em torno desse conceito de raça, razão pela qual essa “dubiedade” que você sinaliza não é um mero detalhe, tendo em vista que o acesso às universidades é um elemento importante para quebrar o ciclo geracional de pobreza e desigualdades – ainda que outros negros continuam fora das universidades – . Em razão disso, a heteroidentificação não é uma criação abstrata, tendo em vista que responde a questões concretas de delimitação dos contornos das políticas de ação afirmativa. E, obviamente, é também um campo de disputa política.
Quarto, você fala em “Em anos de cultura miscigenada, o conceito de negro no Brasil alterou-se radicalmente, criando manifestações próprias e desdobramentos novos”. Não é crível, pela leitura dos seus textos anteriores, que você acredite nesta “cultura miscigenada”. Entendo a sua preocupação com a racialização, em torno da pele e do fenótipo, contudo “o negro precisa ser socialmente aceito como negro” pelas comissões de heteroidentificação me parece um contorcionismo seu, pois a identidade é construída intersubjetivamente e, portanto, ocorre na mediação com o outro. Por exemplo, a identidade não seria algo sempre em disputa na classe trabalhadora ou será que se perde tempo com o apoio às lutas cotidianas dos trabalhadores?
Quinto, “A negação da existência desses indivíduos [pardos] e do processo de formação destes enquanto grupo social cria todo o tipo de confusão e coloca em xeque a capacidade dos comitês em determinar a raça” e “Os brancos, por sua vez, não os reconhecem enquanto pares raciais” me parecem uma evidente dubiedade sua. Seria difícil definir “quem é negro e quem não é”, mas, opor outro lado, é extremamente fácil para você mobilizar a categoria branco. Curioso…
Sexto, as comissões de heteroidentificação – a não ser o recorte de instituições que você usou – levam também em consideração o histórico de vida do pretendente à cota, o que talvez você tenha de deixado de analisar. Isso evita as fraudes, visto que, segundo o que você sugeriu, a categoria branco é de fácil identificação, razão pela qual, nesse sentido, não teria espaço para a problemática do pardo.
Sétimo, “Essa tentativa de institucionalização do conceito e o processo de ‘fiscalização’ racial contribuem para um desmantelamento do sistema de cotas” é um grave equívoco seu. Atribuir esse desmantelamento a tais razões pode soar como desonestidade intelectual, algo que, acredito, não seja o que você pretendia expressar. Veja que uma análise mais criteriosa de sua parte pode apontar, entre outras razões mais críveis, o ataque do atual governo – e do temeroso também – às universidades públicas, às políticas de inclusão social e às políticas de assistência estudantil como causas para o desmantelamento do sistema de cotas. Veja que você sem se refere ao “sistema de cotas”, não tocando, sequer, em politicas de permanência dos estudantes nas universidades, que exercem papel relevante para os relativos sucessos dos cotistas, apesar de todas as dificuldades.
Enfim, são questões para um debate franco e direto.
João Marques
Com João Marques aprendi que a classe trabalhadora é uma “identidade”.
Curioso,
atualmente é difícil discutir algo com seriedade e buscando um debate franco sem que surja alguém que fuja ao debate central e faça o desvirtuamento do que se escreve. É lamentável. Pura desonestidade intelectual…
classe trabalhadora também é um conceito, também são duas palavras, também é um sujeito histórico, é uma posição na relação social de trabalho.
Mas existe um aspecto empírico que parece escapar bastante ao Curioso. Quando saimos à rua, olhamos ao redor, e não precisamos de muita teoria para poder IDENTIFICAR a classe trabalhadora.
Geralmente quem ignora tal identidade são os arautos do fim do trabalho, da obsolecência da teoria marxista, etc, etc, etc.
Muito boas as questões postas pelo João Marques. Acredito que o bom debate é por aí, todo mundo aprende.
Caro João Marques! Irei responder ao seu comentário em forma de tópicos, preferencialmente sobre as discordâncias.
1 – Você escreve “você reiteradamente insiste – ainda que em certas passagens faça a devida ressalva (“o Movimento Negro – ou parte dele –”) – em compreender o movimento negro como um bloco monolítico,”. Como discutimos em outro texto e torno a repetir: Compreendo que este é um problema e é passível de crítica. Entendo que é importante essa distinção e estou aprendendo a traça-la. A questão da generalização nesse texto trata-se de uma discussão de que parte hegemônica do movimento negro defende essas perspectivas. As outras tendências – estas minoritárias – são isoladas, enquadras enquanto brancas, retintas, “passadores de pano” e etc.
2 – Caro, não sei se entendi o que aponta em segundo. Compreender as relações raciais em conjunto com as relações trabalho é fundamental para compreender a caça aos falsos cotistas enquanto estratégia. Essa questão está impressa (mesmo que não diretamente) no texto. Quando você discute o capitalismo periférico, associado ao modelo escravista e coloca que “medidas de enfrentamento devem ser adotadas, para mitigar os seus efeitos”, não é possível compreender se está falando que a caça aos falsos cotistas é justificável para diminuir os efeitos do racismo e promover um acesso dos negros à universidade ou que essas medidas se tornam materiais através do sistema de cotas. Se for o primeiro caso, descordo radicalmente. Primeiro, é fato a existência dessa distinção e o tratamento entre negro e brancos, mas a caça aos “falsos” cotistas não irrompe a mudanças concretas, não concebe um horizonte plausível, pois essas medidas tendem a criar mais confusão e exclusão de negros e pardos, do que o fim das fraudes no sistema de cotas.
3 – Em terceiro você escreve “Em razão disso, a heteroidentificação não é uma criação abstrata, tendo em vista que responde a questões concretas de delimitação dos contornos das políticas de ação afirmativa. E, obviamente, é também um campo de disputa política…”. O problema da heteroidentificação trata-se justamente de duas coisas que aponto no texto: 1 – a ausência de um conceito claro de negritude, que corrobora para a exclusão de pessoas negras e pardas; 2 – a incapacidade das comissões em determinar raça. Apresentei vários exemplos desses aspectos tanto no texto, quanto nos comentários.
4 – Caro, não me recordo de ter negado a existência da miscigenação. Pelo contrário, no texto sobre a Frente Negra observei que a miscigenação não era um problema para a organização; em As lutas e organizações do Movimento negro no Brasil apontei que o MNU não concordava com a miscigenação e com as relações inter-raciais. No entanto, considero a miscigenação um fator importante e carente de discussão sincera dentro do debate racial. A identidade se faz nas relações sociais, nas trocas culturais e etc. O caudilho disso, ou seja, o que virá a ser depende de como isso se organiza.
5 – Discordo radicalmente do que você escreve em sexto: o problema da caça aos falsos cotistas concentra-se na não-compreensão de quem é ou não pardo. Quando aponto que existe uma incompreensão dessa questão, discuto que esse grupo social é enquadrado ora como negro e ora como branco, a depender dos interesses. Essa questão apresenta-se tão problemática que, por exemplo, se analisarmos o processo de fraude no sistema de cotas verificaremos que as maiores acusações são de pessoas que ingressam nas cotas como pardo, não como negro. Como resolveremos esse problema? A negação dele não resolve…
Algo para o qual o texto me chamou a atenção, e que eu nunca havia pensado, é justamente que os dados raciais no Brasil são feitos com uma metodologia de auto-identificação. Logo, estes dados são utilizados como fundamento de políticas públicas (número de estudantes universitários negros e negras / total de estudantes, em comparação com número de negros e negras / total da população). Mas o que o autor está dizendo é que os comitês de caça aos falsos cotistas estão na prática impondo uma revisão da metodologia, mas apenas na ponta da aplicação, e não na metodologia demográfica.
Então, a disponibilização de um grande número de cotas raciais, fundamentadas na grande proporção de negros e negras no Brasil, reservadas não para esta grande proporção demográfica, senão para um grupo específico identificado por meio da “pureza da raça”, se não é uma questão de má fé, certamente parece ser um prato cheio para dar ruim.
Nicolas Lorca,
desculpe o lapso de tempo para a resposta.
Em relação ao item 1 de sua resposta, era o que gostaria que você explicitasse. Sempre é bom deixar essa ressalva. Já em relação ao item 2, me refiro à segunda perspectiva que você sinalizou. No que se refere ao item 3, há uma divergência minha contigo, pois considero que a heteroidentificação e os seus problemas práticos não estão fundamentados nas premissas que você apresentou, muito embora sejam questões relevantes. O interessante aqui é como a mobilidade do racialismo se apresenta como um entrave para a própria luta antirracista, nos levando a pensar outras alternativas para superar esse parâmetro.
Já em relação ao item 4, concordo contigo que a miscigenação é algo melindroso que, se não for bem tratado, sucumbe ao pior do que existe no racialismo. Em razão disso, acredito que o debate sobre identidade é materialmente pouco mobilizado para além das artimanhas do racialismo. No que se refere ao item 5, não há de minha parte negação do problema do pardo, contudo observo que esse problema me parece ser de como compreendemos a mobilização dessa categoria. Na maioria das vezes, é mobilizado contra a luta antirracista e políticas de ação afirmativa, como elemento de manutenção da hierarquia racializada.
Por fim, em que pese as discordâncias, é salutar a sua intenção de debater essa temática tão espinhosa, para além de um “problema do negro” e dos lugares comuns que certa militância de “esquerda” carrega em suas posturas políticas cotidianas. Espero que as minhas considerações sirvam para isso também.
Um forte abraço,
João Marques
João Firmino comentou aqui que os tribunais raciais vinham de iniciativa de estudantes e que não havia experiências institucionalizadas desse processo. Bem, podemos que o inverso disso.
Falsos Cotistas na UNB: https://g1.globo.com/google/amp/df/distrito-federal/noticia/2020/07/13/unb-expulsa-15-estudantes-cassa-diplomas-e-anula-creditos-por-fraude-em-cotas-raciais.ghtml
Falsos Cotistas na USP: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/07/jovem-e-expulso-da-usp-por-fraudar-cotas-raciais-e-sociais-em-1o-julgamento-da-historia-da-universidade.shtml
O que me chama a atenção é o trecho que diz “As cotas destinam-se aos pardos negros e não aos pardos socialmente brancos (…)”. Ora, como se identifica um pardo negro?