Por Rodrigo Araújo

A situação em Roraima há algum tempo ultrapassou o limite do aceitável, mas aparentemente, quando este limite é alcançado, ele sempre se mostra mais elástico do que inicialmente parecia.

Na data em que escrevo, 3 de julho, o estado tem 18.323 casos confirmados de contaminação e 359 mortes decorrentes da infecção por coronavírus. O Hospital da Criança, sob gestão do município de Boa Vista, opera em 120% da sua capacidade na UTI. Há uma semana, no dia 25 de julho, o estado contava cerca de 10.803 casos e 258 mortes. Os dois primeiros casos haviam sido oficialmente contabilizados no dia 22 de março, e estes números mostram o avanço avassalador da doença, sobretudo na última semana.

Projetando o número de casos de infecção por milhão de habitantes, segundo levantamento apresentado pela plataforma de dados do Google Notícias, Roraima ocupa o 2º lugar no Brasil, com 35.383 casos, atrás apenas do Amapá, com assombrosos número de 38.819 casos, e posteriormente seguido pelo Distrito Federal, com 20.342 casos, e pelo Amazonas, com 18.982 casos. No entanto, estes números seguramente representam tão somente uma imensa incapacidade de aferição da infecção por parte das várias esferas de governo, tendo em vista que mais da metade dos testes feitos em Roraima tem resultado positivo e um estudo da UFPel estima que a contaminação pode ser de 82 mil pessoas só na capital, Boa Vista, o que equivale a aproximadamente 25% da sua população. Entretanto, por si só não são suficientes para expor o tamanho do absurdo que vem ocorrendo no estado mais setentrional do país e por isso outros ângulos de abordagem talvez ajudem a dimensionar o os problemas.

Quando a pandemia foi declarada pela Organização Mundial de Saúde, OMS, e informações a esse respeito começaram a chegar, imaginávamos que o isolamento natural desta região iria de alguma forma servir como uma espécie de barreira natural de contenção do vírus. A esta altura já seria de pleno conhecimento geral que o isolamento social não só teria a capacidade de mitigar a contaminação pelo novo coronavírus como teria o poder, se aplicado de forma correta, de praticamente zerar o surto de novas infecções. Isso possibilitaria a projeção de um futuro relativamente próximo em que pudéssemos conviver com a infecção, havendo uma menor quantidade de danos e óbitos. Mas não foi esse o futuro trilhado por Roraima, embora para isso tivesse grande potencial.

Fora as regiões norte e nordeste de Roraima, que fazem fronteira com a Venezuela e com a Guiana, região do bioma conhecido como lavrado (uma espécie de estepe/cerrado), todo o restante do estado é cercado por densa e praticamente intransponível floresta equatorial. Considerando tais barreiras, existiriam somente quatro métodos de entrada no estado: vindo da Venezuela pelo trecho norte da rodovia BR-174; vindo da Guiana pela rodovia BR-401; vindo do estado do Amazonas pela parte sul da BR-174; ou por avião. Contrariando o senso comum sobre a região amazônica, em Roraima os rios não são comercialmente navegáveis. Em função desta condição, o fluxo para esta região é ínfimo se comparado ao fluxo em outras regiões do país. Além do mais, todos os caminhos terrestres contam com bases de fiscalização (o que, em termos de infraestrutura, por si só facilitaria a instalação de barreiras sanitárias para contenção do vírus), bastando ao governo investir em pessoal e na criação de uma base itinerante no interior do aeroporto, a exemplo do que foi feito em vários outros locais atingidos pelo coronavírus.

Porém, contrariando o óbvio, os governos estadual e dos demais municípios não coordenaram esforços efetivos neste sentido. Apenas realizaram uma pálida restrição na circulação de pessoas por transporte coletivo intermunicipal e interestadual: uma medida imposta pelo governo do estado, cuja cadeira maior é ocupada pelo governador Antônio Denarium, partidário de primeira hora do presidente Bolsonaro e atualmente sem partido, mas que foi derrubada no último dia 22 de junho; outra medida de fechamento completo por parte da Prefeitura no município de Bonfim, que faz divisa com a Guiana; e a restrição de pessoas de fora da cidade no município de Cantá, medida realizada pela Prefeitura deste município. Dizemos que estas medidas são pequenas, tendo em vista que Roraima não conta com uma rede estruturada de transporte coletivo intermunicipal, cuja função é preenchida quase que por completo por táxis permissionários e sobretudo por veículos particulares que não sofreram restrições de circulação por parte dos governos. Chegaram a ser instaladas barreiras sanitárias, tanto no aeroporto da capital quanto nas estradas que ligam o estado aos outros locais. Porém, o trabalho ali realizado se limitou à aplicação de um questionário tentando identificar a origem do viajante e a existência de sintomas da COVID-19, não sendo realizado nenhum tipo de teste e nem mesmo uma simples aferição de temperatura corporal. Mesmo se bem feitas, é evidente que muito dificilmente as barreiras sanitárias livrariam por completo o estado da invasão pelo vírus, já que sua propagação pode ocorrer também por objetos e produtos, mas muito possivelmente seu espraiamento seria mitigado e em muito atrasado, dando condições às diversas instâncias de governo de planejar melhor as ações de combate ao problema. Mais uma vez, nada disso aconteceu, mas Roraima ainda tinha outro trunfo.

Para se espalhar, o vírus precisa da relação interpessoal, em que pessoas com e sem sintomas funcionam como vetores da doença. É sabido, no caso da COVID-19, a exemplo de outras infecções, que estar afastado pode funcionar como elemento de contenção da contaminação. E morar longe uns dos outros seria precisamente um dos diferenciais positivos deste lugar. Roraima é o território brasileiro com a segunda menor densidade populacional do país, contando com apenas 2,7 habitantes por quilômetro quadrado, perdendo apenas para o Amazonas como a menor densidade populacional, com 2,6 hab./km², e sendo antecedido no quesito pelo Mato Grosso, com 3,86 hab./km². Para se ter uma dimensão do que isto significa, as unidades federativas com maior densidade populacional do país são o Distrito Federal, com 523,4 hab./km², o Rio de Janeiro, com 394,2 hab./km², e São Paulo, com 184,9 hab./km². Mesmo se comparada à do Mato Grosso, a densidade populacional em Roraima é consideravelmente menor. Sendo assim, parece que Roraima pode ser melhor comparado neste aspecto ao estado do Amazonas. Entretanto, mesmo considerando tal vantagem, nestes estados existem vários município com maior ou menor circulação e aglomeração de pessoas.

Consideremos apenas os dois maiores municípios de cada um destes estados, tendo em vista o maior potencial de aglomeração das cidades maiores. Ainda aqui veremos diferenças significativas entre estes dois, mas que dariam uma boa vantagem para Roraima. Manaus, a capital amazonense, conta com uma população de mais de 2,18 milhões de habitantes e é uma metrópole industrial, enquanto Boa Vista, a capital roraimense, tem pouco mais de 399 mil habitantes. Em comparação aos outros municípios do país, a primeira é uma cidade de grande porte, enquanto a segunda não passa de um município de médio porte. Isso tem implicações sobre a dinâmica de funcionamento e estruturação do espaço urbano, com consequências sobre a forma de circulação e aglomeração de pessoas. Cidades menores tendem a ter espaços de aglomeração reduzidos e Boa Vista conserva ainda em grande medida um traçado planejado, com grandes e largas avenidas, e é uma cidade completamente horizontalizada. Já Manaus é uma típica cidade grande brasileira, que cresceu de forma desordenada e é bastante precária em termos de infraestruturas habitacionais e sanitárias, além de ser bastante verticalizada. A singularidade da capital roraimense se explica em parte pela contínua aplicação de um planejamento urbano, bem como por dificuldades na produção de si mesma, já que o solo sobre o qual assenta a cidade é muito arenoso e isto implica em custos adicionais para a construção de prédios com mais de três andares (ao que tudo indica, existem apenas dois, com exceção de alguns edifícios públicos). Convém destacar que estas observações são relacionais e isto significa que Boa Vista, assim como Manaus, têm muitos problemas infraestruturais; porém, mesmo ponderando a diferença de proporção entre ambas, os problemas boavistenses parecem menores que os manauaras neste quesito, e aspectos habitacionais e sanitários são decisivos para conter a infecção. Mas nenhuma barreira física foi capaz de colaborar para a diminuição do alastramento do vírus, nos remetendo aos meios sociais capazes de realizar esta tarefa, e ainda sobre este ponto encontraríamos vantagens para Roraima no combate à infecção.

Roraima tem mais de 80% de seu PIB realizado no setor terciário, havendo destaque em serviços de informação e financeiro, atividades imobiliárias, turismo e comércio, que juntos comporiam aproximadamente 33% do PIB estadual. Os outros 47% do PIB roraimense adviriam das atividades de administração pública, educação, saúde e seguridade social. Estão concentradas neste setor da economia as atividades que mais poderiam desenvolver formas de trabalho remoto e/ou com o maior distanciamento social possível (como comércios funcionando por entregas em domicílio, escritórios trabalhando em homeoffice ou aulas à distância, por exemplo). Também aqui cabe o destaque para a grande massa de funcionários públicos, que, em sua grande maioria neste primeiro momento, foram simplesmente dispensados de suas atividades. Apesar de ter mais esta condição favorável à contenção do vírus, o isolamento social no estado nunca passou dos 55% (logo após a confirmação dos primeiros casos da doença no estado) e no momento gira em torno de pouco mais de 40%.

Logo em meados de março, quando os primeiros casos de COVID-19 foram anunciados, ocorreu um lockdown informal praticado pelo grosso da população. Na sequência, os governos municipais, inicialmente seguidos pelo estadual, decretaram o fechamento de escolas e repartições públicas, o que levou o isolamento social ao seu melhor patamar até hoje. Isso, porém, durou poucos dias, pois, logo na sequência das declarações do presidente, neste mesmo mês houve uma politização ideológica à direita e começaram a ocorrer manifestações “pela reabertura da economia”, seguidas por medidas de flexibilização do comércio e de retorno do funcionamento parcial de repartições públicas. O medo inicial foi substituído pela indiferença e pelo discurso de salvação da economia. A este ponto convém destacar algumas características do jogo de forças da política local.

O governador, como fiel caixa de repercussão das opiniões do presidente Bolsonaro, assume de forma pouco hesitante a posição do governo federal e age de modo a tratar como menores as consequências da infecção pela COVID-19. Se não temos elementos para afirmar categoricamente que sabota as medidas de isolamento, podemos contudo afirmar que toma medidas com uma lentidão e imprecisão que chamam a atenção, também se preocupando pouco em rebater acusações de omissão no combate ao vírus. É certo que em um primeiro momento o governador cedeu à comoção social e se declarou favorável ao isolamento social, tomado medidas como o adiantamento do décimo terceiro salário dos servidores públicos estaduais e a criação de um programa de assistência estadual que pretendeu abarcar 10 mil beneficiários. Porém, estas foram as medidas do primeiro momento e desde então ele tem feito afirmações como as de que as igrejas seriam as primeiras atividades a retornar, mesmo durante a pandemia, além de ter flexibilizado tanto a circulação de transporte coletivo quanto o funcionamento do comércio no estado, além da demora colossal na inauguração do hospital de campanha construído pelo exército brasileiro, a medida de saúde mais importante do governo até o momento.

Erguido no final de março e prometendo uma capacidade de até 1.200 leitos, por falta de aparelhos, profissionais e insumos — ou seja, praticamente só contava com as paredes de lona da tenda militar — o hospital levou três meses e teve seis adiamentos até sua inauguração no último 19 de junho. Hoje não passa de 80 leitos (sendo 10 de UTI e 70 de níveis 1 e 2). Mesmo após todo este tempo, o hospital opera com uma quantidade de insumos suficientes para somente um mês de funcionamento. Para não nos determos na troca de quatro secretários da saúde durante a pandemia e nas denúncias de compras irregulares de respiradores, citamos somente a situação caótica do Hospital Geral de Roraima. Com a capacidade máxima de internações por coronavírus esgotada desde o início de junho, o HGR, que tinha 138 leitos (sendo 33 de terapia intensiva), com a lotação passou a ter pacientes amontoados pelos corredores, constantes e severos alagamentos após o início do período de chuvas, reiteradas denúncias de falta de insumos e EPIs feitas pelos profissionais da saúde, corpos empilhados aguardando serviço funerário e até mesmo corpos espalhados pelos corredores do hospital.

Ao contrário do que se possa imaginar, essa posição faz todo sentido, tendo em vista que, na condição de autoproclamado escudeiro local do bolsonarismo, a base eleitoral do governador tende a se satisfazer com a adesão ao plano de seu chefe maior, que tem como pressuposto minimizar os efeitos da contaminação pelo coronavírus. Este cálculo tem se mostrado realista e eficiente até o momento, já que a disputa, ao invés de se focar na pressão contra o governo, foi transferida para a disputa entre os que são favoráveis ao salvamento de vidas e os favoráveis ao salvamento da economia, deixando uma margem de manobra confortável ao governo. Assim, à imagem, as maiores preocupações do governador têm sido duas. A primeira é a tentativa de ocultação dos números de contaminados no estado, algo que rendeu uma ameaça de ação por parte do Ministério Público estadual, considerando que o governo desejava não mais fazer a divulgação diária dos números. A segunda é a projeção dos feitos do exército brasileiro, já que, quando da inauguração do hospital de campanha, agiu pessoalmente no caso da tentativa de invasão do HGR pelo general Antônio Manoel de Barros (chefe da operação acolhida, que por sua vez é responsável pelo hospital de campanha), que buscava selecionar, sem embasamento em critérios médicos, quais pacientes seriam transferidos para os leitos recém-inaugurados. Escolhendo bem os transferidos, poderiam ser recuperados em um percentual maior, o que poderia sinalizar uma aparência de eficiência e eventualmente renderia bons cliques para os militares.

Por outro lado, Teresa Surita, prefeita da capital e filiada à facção de Romero Jucá do MDB, atua de forma muito mais dúbia, mas reproduzindo na prática o padrão de atuação do governo estadual, e sua atuação acaba tendo grande destaque, já que mais de 60% da população de Roraima vive na capital do estado. A base política da prefeita tem muito mais vinculações com uma posição de centro, flertando por meio de redes sociais com certo progressismo, ao assumir uma imagem cool de mãe cuidadora e preocupada pessoalmente com a cidade e seus cidadãos. É a prefeita twitteira, com sua comunicação toda pensada para passar uma imagem que agrada certa juventude política local, chegando a emular uma posição de combate ao governo do estado, seus lastros e heranças políticas, além da sua atuação no combate ao coronavírus. As malsinações contra o governo nas redes são constantes e a propaganda oficial do município chegou a acusar o estado de não fazer o repasse de testes e de comprimidos de cloroquina, o que, segundo a Prefeitura, a deixaria de mãos atadas. A Prefeitura agiu mais rapidamente que o estado no fechamento do comércio, escolas e repartições públicas do município. Tal como o governo, também adiantou décimo terceiro salário dos servidores e tem pagado os salários alguns dias antes do vencimento do mês. Chegou a reorganizar o funcionamento de unidades básicas de tratamento, sem no entanto cobrir adequadamente a demanda da população, além de inaugurar leitos de cuidado intensivo infantis que se mostram apesar disso insuficientes, como destacado no início do texto.

Contudo, também deixou o município, por mais de 15 dias no mês de junho, no que tem sido tratado localmente como o pico da infecção, sem nenhum tipo de teste para detecção do vírus na rede pública municipal. Depois de muito se esquivar da questão, atribuindo toda a culpa ao governo do estado, e na sequência de um forte ataque de vereadores e munícipes, a Prefeitura acabou adquirindo 50 mil testes rápidos, demonstrando que não fazer testes até aquele momento era somente um desejo de sua gestão, já que quando pressionada agiu sem maiores dificuldades. Apesar disso, logo na sequência apresentou um plano de reabertura das atividades econômicas do município, com a previsão de três fases que seriam aplicadas de 15 em 15 dias até a reabertura completa. Isto poderia ser interpretado muito mais como um desejo da prefeita, numa tentativa de afagar o público da outra ponta do espectro ideológico, já que a apresentação do plano declarou de forma um tanto vaga que estas medidas seriam aplicadas quando o número de casos de infecção e internações diminuíssem, sem apresentar estudos ou dados que avalizassem seus desejos.

E é assim que chegamos a este triste fim, com a prefeita negando suas responsabilidades e empurrando a conta para o governador, que por sua vez nega o problema e tenta esconder os números. As pessoas, por sua vez, engolindo os engodos e negando a situação do presente, projetando por negligência um futuro distópico. Roraima tinha vantagens que nenhum outro lugar do Brasil tinha, mas deixou tudo escapar e hoje está afogado em letargia, vendo o número de casos e mortos aumentar a cada dia.

O artigo foi ilustrado com obras de Käthe Kollwitz (1867-1945).

4 COMENTÁRIOS

  1. O texto ficou excelente e fundamental para entendermos esse espaço que está sendo mais central do que se imagina para as políticas levadas em curso no Brasil hoje. Parabéns!

  2. é um cenário realmente desastroso, especialmente considerando que a atualização científica parece indicar que a transmissão da covid-19 ocorre pelo ar em lugares fechados.
    Este texto, somado a quase tudo o mais que tenho lido sobre o que ocorre no Brasil, me gera muitas dificuldades para entender o que alguns companheiros tem chamado de “consenso sanitário”. Vejo posições em disputa, gente querendo agradar dois lados ao mesmo tempo, medidas tímidas, contraditórias, titubeantes, e um enorme boicote de parte do presidente do país.

  3. Vejo hoje nas redes sociais que já existe data para a ativação do plano da prefeitura de Boa Vista para reabertura completa de tudo. Com alegados 4% de queda na taxa de contaminação, a data escolhida para implementar a primeira fase foi 20 de julho, a segunda fase no 5 de agosto e a terceira em 20 de agosto. Manipularam o tempo todo a quantidade de testes para agora ter um argumento, mesmo que muitíssimo frágil, para voltar ao plano deixar todos morrerem e que se lixem.

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