Por Passa Palavra

Entrevistamos o coletivo Invisíveis, que junto de beneficiários e movimentos sociais, tem pautado a não redução do valor do Auxílio Emergencial.

O que o Auxílio Emergencial representa dentro das lutas sociais que ocorrem em meio à pandemia?

O projeto foi aprovado em meio à crise da pandemia para aliviar as tensões com trabalhadores desempregados e informais, que ficaram prejudicados diante da necessidade de isolamento social. A relutância do governo em aprovar um valor maior que 200 reais foi derrotada pela pressão popular e parlamentar que se instalou. Posteriormente, o presidente ampliou o valor para 600 reais, tentando trazer a popularidade do projeto para si. A recuperação econômica por meio de incentivo ao consumo, diante de um governo que prega austeridade e vive a queda de produtividade, foi o palco da disputa. E esta tem como centro a reprodução dos trabalhadores, que a nosso ver é o grande palco da luta de classes hoje. Então, é um conflito dentro das relações sociais de produção, tendo o peso que a vida de cada trabalhador exerce na circulação de mercadorias e garantia de que sua sobrevivência possa retornar como produtor de trabalho. É a disputa entre investimento na produção de capital X reprodução de si mesmo, que traz a importância da luta para manter o benefício e a sua extensão. O poder de barganha dessas pessoas está entre salvar a economia em crise ou o desastre dela, no caso da sua redução. A polítização dos beneficiários, percebendo a importância de se colocar como pobres e qualificados para receber, produz um processo de mobilização e divulgação sobre suas necessidades. Onde os seus relatos e explanações adquirem um papel importantíssimo. Nele, percebem a sua coletividade e a importância no processo econômico-social do Brasil. A radicalidade está ao perceber o caráter de extermínio no modelo de austeridade do governo, do discurso de corte de gastos públicos, vira a percepção do projeto de fome e contágio por COVID-19. Assim, esses candidatos ao benefício percebem o papel de sua luta como uma importante solução diante da barbárie atual.

Como os beneficiários têm buscado se mobilizar?

A mobilização se inicia a partir do primeiro mecanismo institucional de limitação no acesso ao auxílio: a inscrição virtual na Caixa Econômica e a avaliação da Dataprev. Os que foram negados ou ficaram em análise sabiam que estavam nos critérios para recebê-lo. Muitos usaram as redes sociais de Facebook ou Whatsapp para conversar com outros em situação semelhante, mostrando que são pobres e estão na situação de necessidade. Isso gerou uma série de investigações que gerou resultados, como em uma pesquisa do Data Favela, em que 37% dos moradores de favela não tiveram acesso ao auxílio enquanto houve casos em que funcionários públicos de alto escalão e militares receberam. Isso deixou claro que existem falhas no sistema de avaliação da Dataprev e que as colocações dos candidatos podem ser elementos de amostragem para análise de dados. Ou seja, cada pessoa que colocava seu caso, como faziam mães solteiras, desempregados sem seguro-desemprego, autônomos que estão sem receber auxílio, trazia à tona elementos de análise que a avaliação institucional deixou de fora. É possível dizer que os próprios beneficiários fizeram suas “enquetes operárias”, conhecendo sua situação e trocando entre si suas experiências. Cada postagem em facebook dizendo “sou mãe solo, recebi só 300 reais” gerava uns 120 comentários de outras pessoas relatando situações semelhantes.

A nivel local, temos o exemplo de Antonio, em Goiânia. Trabalhador autônomo, tendo ficado desempregado, estava cortado do Bolsa Família e ficou em análise, esperando aprovação no acesso ao Auxílio Emergencial. Pediu ajuda aos vizinhos, que tinham um movimento local. Isso virou uma mobilização que incluiu campanha de doação de cestas básicas com ajuda para beneficiários entrarem com pedidos na Caixa ou exigir sua inclusão no Bolsa Família via CRAS (Centro de Referência de Assistência Social). No Rio de Janeiro, essas campanhas foram fortes mobilizações, como a Escola Quilombista Dandara de Palmares no Complexo do Alemão, Frente Cavalcanti no bairro da zona norte, Campanha por Uma Vida Digna em Vila Isabel. São meios de interagir com pessoas que não têm acesso à internet. Essas redes de apoio servem como retaguarda e apoio. A pesquisa do Data favela mostrou que a maioria dos moradores participa de campanhas de doação e também a maioria usufrui delas. Isso mostra algo além da gestão por parte de instituições de caridade, que é a possibilidade de apoio mútuo entre trabalhadores.

Recentemente, essas pessoas têm realizado tentativas de manifestações, além da pressão midiática. Colocando em prática o contingente dessa mobilização. Elas têm girado em torno da redução do auxílio para 300 reais e exigem a discussão no Congresso sobre a Medida Provisória – MP 1000 – que reduziu o valor para incluir emendas que trazem o valor de 600 reais de volta. A urgência se dá pelo fato de que as pessoas já estão em desespero contra a redução e os deputados parecem estar procrastinando sobre colocar em pauta. Assim, também pode caducar ao passar do prazo para isso, que vai até novembro.

Como disse Mariana, uma das beneficiárias, que não recebeu a quinta parcela e está puxando manifestações:

“(…) o recado que eu tenho, [é que] cada um sabe onde o calo aperta. É só o começo, se a gente esperar … porque o caldo já entornou. O que eu não quero é que o barco afunde. Então nós não podemos esperar mais, nós temos que cobrar agora para não perder o mês de outubro, mas três meses de seiscentos reais é o mínimo que a gente quer para a gente poder se organizar e manter o controle pra quando for ano que vem a gente voltar ao normal.”

Qual o perfil médio desses beneficiários?

São trabalhadores informais e desempregados, como consta nos critérios da Dataprev. Mas o perfil dos presentes na mobilização parece mostrar mais sobre os negados, ou que ainda estão em análise, ou mesmo que tiveram parcelas não fornecidas. Há também mães solteiras, que deveriam receber dois benefícios ou mais. Uma pesquisa realizada com os beneficiários, mostrou que de 250 entrevistados pelo Brasil, 63% são de mães solteiras que recebem menos de dois benefícios. De acordo com pesquisa divulgada pela EAESP/FGV, 38 milhões dos beneficiários são trabalhadores informais que recebem até R$1.254,00 reais, têm a renda oscilante de acordo com os bicos que conseguem acessar a cada mês, e nunca tiveram acesso a nenhum tipo de benefício social. Estes são 61% dos que receberam o auxílio.

André Janones se destacou inicialmente por conta de seu apoio à greve de caminhoneiros, agora aparece como mobilizador pelo auxílio emergencial. A popularidade de Bolsonaro também tem ganhado fôlego devido ao auxílio. Em que medida isso pode abrir caminho para uma base popular à fascistização?

A base popular para a fascistização ocorreu quando, diante da crise econômica que se instalou no Brasil, prevaleceu uma direita revoltada com forte tom popular e atacando o desemprego, colocando como suposta solução a perda de direitos e a intensificação da carga horária com redução da renda ou do salário do trabalhador. Para isso, o medo do desemprego foi necessário para convencer boa parte da classe trabalhadora de que o culpado seria a “esquerda”, com as garantias de direitos que estariam provocando desde a corrupção até a redução dos empregos e renda, pois os direitos sociais seriam um desincentivo para os empresários. Isso mobilizou setores com vocações “empreendoristas”, como ocorreu com caminhoneiros diante da greve. Isso fez engrossar o contingente de um movimento trazendo anseios de setores médios, contra a resistência de trabalhadores por direitos sociais. Algo bem diferente ocorre com a mobilização pelo Auxílio Emergencial. Pois estes são trabalhadores desempregados ou informais, buscando seu sustento à revelia do processo de produção que os colocou na extrema pobreza.

Quando chegou a pandemia, o discurso do presidente Bolsonaro mudou de “escolhe: direito ou emprego?” para “economia ou vidas?”. Assim, dos trabalhadores que estavam lutando pela quarentena, ao se verem pressionados para trabalhar e se arriscar ao contágio, é possível entender que a concessão do programa do auxílio emergencial é a primeira derrota do governo Bolsonaro. Pois os desempregados e autônomos passaram a ter uma mínima retaguarda de reserva para não se jogar no extermínio que foi programado na violação da quarentena pelo Brasil inteiro. Ou seja, é uma resistência à fascistização, mesmo sendo concedida por um governo de extrema direita.

E se formos pensar em fascistização como a marcha conservadora em curso no Brasil, que tem como alvo a resistência dos trabalhadores, a luta para manter o auxílio é uma das trincheiras mais relevantes contra isso. Claro que isso se dá de forma contraditória. A pauta, ao ser atendida, gerou aumento de popularidade do governo Bolsonaro. Mas seu projeto encontra limites, ao considerar o programa como gasto e endividamento, por não estar vinculado ao aumento de produtividade. Mas isso não se dá por uma condição “natural” da economia, são escolhas políticas, que colocam o ganho de lucro em baixa produtividade contra o retorno econômico que a distribuição do benefício traz, que é o crescimento do PIB mesmo diante da crise econômica. Então, quem impõe é a classe trabalhadora que tem vivido a necessidade e experiências de mobilização, esbarrando nos limites desse projeto bolsonarista. Isso está colocado nas condições pela disputa em torno dos projetos de renda, como houve com o Renda Brasil, cujo financiamento cortando o seguro desemprego e o abono salarial para quem ganha dois salários mínimos levou a sua rejeição pelo presidente. E também no atual Renda Cidadã, onde Paulo Guedes não apoia o uso de precatórios e recursos do FUNDEB para financiamento. Nisso, Bolsonaro busca apoio de outros setores. Parece que a disputa está colocada sobre o projeto de austeridade, defendido por um setor de empresários contra outros setores que almejam um crescimento de produtividade mesmo com alguns gastos públicos. Nisso, abre-se uma brecha para conquistas, materializada em torno do Auxílio Emergencial. Caso a pauta se perca, aí sim pode ocorrer um avanço desse novo fascismo brasileiro.

É preciso notar também a ineficiência de um setor da esquerda em pautar o auxílio emergencial. Em vez de entender a importância e urgência dessa luta, trata como “fascistização” ou “pobretologia”. Essa seria uma avaliação dos trabalhadores mais pobres como passivos diante de projetos de renda básica, como se essa massa não pudesse ir além dos projetos de crescimento de produtividade, como foi avaliado nos tempos do Bolsa Família. Então, diante da fascistização já em curso, a esquerda participa desse processo ao desconsiderar esses trabalhadores como sujeitos ativos e conscientes do processo social em que estão envolvidos. Parece, inclusive, que parte dela busca manter seu status quo como estrato de trabalhadores qualificados e considera os demais, em posições mais empobrecidas, como ignorantes e passivos. Sem falar que aceita os termos do discurso “economia x vida”, como se não houvesse saída econômica a não ser aceitar a morte e fome de trabalhadores, algo que vai desde uma esquerda burocratizada até um “marxismo” ortodoxo preso ao deslumbre perante as forças produtivas. Esses costumam cair no mesmo desespero de liberais, que discursam sobre a austeridade como única solução para a economia. Esquecendo as variações e adaptações do capitalismo diante da resistência dos trabalhadores, como a própria política do auxílio faz.

De onde vem André Janones (AVANTE)? O que ele faz é transformar essas angústias em instrumento de mobilização, luta e retroalimentação de militância. Começou sua militância como advogado fazendo defesa do direito de cidadãos que estavam sendo cortados de seus direitos. Desde aquela época, ele usava a live do facebook como instrumento pedagógico de conscientização dos direitos (já que muita gente não sabe ler e não entende as leis, então necessita de um téte a téte explicando diretamente e verbalmente) mas também como forma de pressão e mobilização de quem não podia estar junto com ele na porta do hospital pressionando pela garantia da liminar (por exemplo) que ele havia conquistado para um cliente de uma cirurgia urgente. Ele transplantou esse modelo para a sua atuação como deputado, prometendo fazer um Big Brother do Congresso. Durante o auxílio emergencial, fez lives que ao mesmo tempo explicavam os direitos dos beneficiários, garantiam que se tratava apenas do retorno dos impostos deles e pressionavam os representantes da Caixa Econômica, Dataprev e governo federal. Essas lives, diárias e respondendo sempre a novas demandas, foram crescendo até ficarem entre os vídeos mais vistos do ocidente no facebook. Mas a fórmula básica é simples: didática (qual é o seu direito? por que você deve ir atrás e merece mesmo?), serviço (fique tranquilo que eu estou correndo atrás da tua angústia, o calendário de pagamento vai sair, a Caixa se comprometeu, o Dataprev falou que vai resolver, tenho gravado) e o discurso político (vocês merecem o benefício, ninguém pode tirar de vocês, a solução da economia são vocês e não os políticos, e por aí vai). Então não se trata de um outsider que veio das mobilizações dos caminhoneiros, nem de uma pessoa que promove o fascismo na sua forma de mobilização.

Quais têm sido os obstáculos de articulação entre os beneficiários?

Parece existir entre eles a dúvida sobre merecer ou não o auxílio. Muitos caem no discurso sobre a possibilidade de trabalhar. Citam nos grupos frases “quem quer, trabalha. Só vender bala”. Como se o “negacionismo” tivesse tido sucesso em naturalizar o fim do isolamento e prevalecesse a visão imediata de que o comércio reabriu, portanto haveria oferta para o trabalho autônomo. Aí sim, vemos reflexos da fascistização, que é aceitar o discurso de desespero e barbárie do governo Bolsonaro, que leva a aceitar o extermínio em curso. Isso leva a colocações sobre considerar que deveriam agradecer os 300 reais, como se houvesse uma boa vontade em tempos de crise. Mas o que parece reforçar isso é a prevalência do medo de se assumir pobre, como se fosse “vergonhoso” precisar do auxílio ou “aproveitar de uma renda direcionada aos mais pobres”. Muitos trabalhadores autônomos têm dúvidas sobre merecê-lo ou não. Ou se estão enquadrados de fato nos requisitos. Temem inclusive ser “detectados” e cortados do sistema da Dataprev. Isso mostra a verdadeira disputa que a luta pelo auxílio traz: se vai estar submetida aos limites da produtividade capitalista ou se a luta dos trabalhadores vai impor novas possibilidades. A consciência possível de perceber seu poder de barganha na economia é confrontada com essa “vergonha” de ser pobre. E também quem já recebe seu benefício, despreza quem está bloqueado ou em análise.

Existe a construção de laços de solidariedade entre os beneficiários? E com os demais trabalhadores?

A construção de solidariedade já foi atestada entre grupos de apoio, desde a doação e troca de ajudas, assim como a busca pela identificação destes e inclusão no Auxílio. Apesar das dificuldades, é possível perceber uma solidariedade crescente, como pessoas que recebem auxílio, além de doar ajuda para vizinhos, familiares e amigos. Vivem um engajamento com outros que estão necessitando do benefício. A perspectiva de manifestações tem intensificado essa vontade entres os que estão construindo essa militância. Com os demais trabalhadores, ela se dá de forma imediata entre antigos beneficiários e depois que conseguiram empregos. E também entre cancelados, bloqueados ou em análise. Esses continuam na luta pelo auxílio e ajudando seus companheiros.


As imagens deste artigo foram concedidas pelo coletivo entrevistado.

2 COMENTÁRIOS

  1. Na leitura do grupo entrevistado, fascistização e austeridade (ou seu efeito social, “barbárie”) se igualam? A renda básica (não menos neoliberal, sabemos, dinheiro invés de direitos etc.) é uma inflexão na política de austeridade da equipe econômica do Sr. Guedes, mas seu efeito não poderia ser um avanço na consolidação do fascismo tupiniquim? A começar pelo destaque obtido por uma figura como André Janones, deputado da área bolsonarista nas Minas Gerais, cuja bandeira dos R$600 não representa uma ruptura com o presidente. Há quem entenda mais do assunto para falar aqui, mas os fascismos históricos contavam com políticas de proteção aos povo (pra não ir longe, vide nosso pai dos pobres). Que o auxílio é central na conjuntura atual do Brasil e que responde a um sujeito social de existência latente, não tenho dúvidas, mas não teria o mesmo otimismo quanto às conclusões políticas.

  2. Facistização é a mobilização social defendendo políticas de controle dos trabalhadores contra sua resistencia. O elemento fascista do governo Bolsonaro é a mobilização em torno da aceitação da austeridade. Portanto não é igual ao “fascismo” original, que ligou concessão de direitos com gestão autoritária.
    O neofascismo personificado na mobilização Bolsonarista ja esta em curso, como está descrito na entrevista. Para combater isso, é preciso defender alguma base que não incorpore toda a exaltação individualista e de violência contra direitos da classe trabalhadora. Isso está ocorrendo com a mobilização social pelo auxílio. Esse processo que é mais forte do que qualquer simbologia que lembre aspectos conservadores (André janones no AVANTE, bandeiras do Brasil, etc). Resta a esquerda escolher se prefere ficar sendo seitas que só lidam com trabalhadores com sua política populista, para manter o “nojo de pobre” quando ela se subordina ao trabalho e defender o “salário pago justamente pelo tempo de trabalho”. Ou se vai dialogar com os elementos coletivistas e solidários desse povo desempregado e informal que ta lutando pelo auxílio.

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