Por Passa Palavra
Passa Palavra: A mídia tem informado que as manifestações ocorrem devido à má gestão do atual governo frente à pandemia no país. Existem outras pautas, e quais são as principais?
Agustín Barua: É preciso dizer que a grande mídia tem fortes interesses corporativos, responde a grupos econômicos fortes, alguns diretamente vinculados aos sujeitos da disputa como o bloco de mídia de Horacio Cartes, que é um dos sujeitos principais nesta disputa. Sim, há a questão da má gestão, o sistema de saúde paraguaio tem uma deficiência gigantesca, isso se atribui diretamente ao Partido Colorado, que por décadas o precarizou. Mas por outro lado é isso, existem múltiplas pautas, praticamente não existe um âmbito específico. São pautas como a condição das mulheres, a questão indígena, a questão das terras, habitação, alimentação, transporte, a questão do salário digno. Existe um espectro de questões que têm um atraso enorme, herdadas, sim, mas muito potencializadas por este governo, que é particularmente abandonador, dedicado à acumulação através da exploração do Estado para seus interesses pessoais.
PP: Além das manifestações de rua, tem havido também algum tipo de paralisação de trabalhadores ou manifestações em lugares de trabalho?
AB: Já temos pelos menos duas décadas de uma significativa desmobilização das organizações sindicais e de categorias. O impacto desta desmobilização na vida dos trabalhadores como sujeitos organizados é visível neste caso. O que se vê é muita, muita gente, principalmente gente jovem, menores de 30 anos, se mobilizando, mas não diretamente como uma identidade de trabalhadores.
PP: Os trabalhadores e trabalhadoras da saúde têm tido algum papel protagonista ou de articulação, nas mobilizações ou frente à crise sanitária?
AB: Por um lado, devido à pandemia, existe uma extenuação de muita gente que trabalha no âmbito sanitário. Por outro, muitas das organizações de trabalhadores da saúde estão cooptados pelos partidos conservadores. E também, a formação profissional gera profissionais que não tendem a pensar para além de seus interesses pessoais ou corporativos. Uma educação conservadora que teme “politizar”, teme o coletivo, o social, dá as costas a isso e se encontra assim muitas vezes sem capacidade de protestar. De todas formas, em muitos hospitais tem havido denúncias contra as deficiências no sistema, mas não se formou um movimento. O Círculo Paraguaio de Médicos e a Associação Paraguaia de Enfermaria, que são sindicatos que não têm relação com o Estado, são sindicatos mais autônomos, esses sim têm sido bastante críticos ao governo.
PP: Como tem sido até agora a repressão às manifestações, e como os manifestantes têm reagido a ela?
AB: A repressão tem sido bastante violenta, ainda mais considerando que em geral as manifestações têm sido pacíficas. Mas existe muitíssimo mal-estar acumulado, e então facilmente as pessoas que estão protestando terminam “escalando” a situação, o que de fato vem ocorrendo. Hoje é o quarto dia e as manifestações não diminuem, se estendem, se articulam. As redes sociais estão tendo um papel importantíssimo. Têm aparecido consignas que até então não tinham massividade, como “ANR nunca más”, que é o partido da ditadura [Trata-se do nome tradicional do Partido Colorado, Associação Nacional Republicana], que praticamente sem interrupção foi governo desde a saída de [Alfredo] Stroessner em 89. E isso tem cada vez mais consenso. É um partido que tem uma base eminentemente clientelista, que fundamenta a adesão de seus correligionários à possibilidade de conseguir trabalho no Estado, ou algum benefício econômico. E apesar disso, parece que agora está começando a ruir.
PP: Em muitos países ocorreram, e ainda ocorrem, manifestações contra medidas sanitárias, especialmente contra os lockdowns e as vacinas. Houve isso também no Paraguai?
AB: Não, esse tipo de manifestação praticamente não houve aqui. Talvez algo isolado, mas em geral não. As pessoas acataram fortemente as medidas sanitárias restritivas, que foram muito precoces, e ao menos no início tiveram muito êxito. Mas quando começou a disseminação comunitária do vírus e os casos graves, se pode ver por um lado a dívida histórica, que já se conhecia, da saúde, e por outro todas as denúncias de corrupção que houve em vários setores do Estado, obviamente vinculados a interesses privados e também setores mafiosos. E também diretamente no setor da saúde, que é o que as pessoas estão vivendo com maior indignação, que neste contexto se tenha endividado o país para ter um dinheiro para a urgência da pandemia, e se visibilizaram denúncias de corrupção muito fortes.
PP: Como estão reagindo as diferentes forças políticas do país? Estão apoiando as manifestações, guardando distância, apoiado o presidente?
AB: O panorama das forças político-partidárias, eu descreveria assim: o partido do governo, o Partido Colorado, está faccionado fortemente. Tem a facção que apoia o presidente Abdo [Mario Abdo Benítez], a facção que apoia o ex-presidente [Horacio Cartes], e não há maior diferença de fundo entre ambas linhas. São setores conservadores, plutocráticos, fortemente autoritários. Por outro lado, a oposição é heterogênea em seu espectro ideológico, a oposição mais liberal está contra [o governo], são quem impulsiona o impeachment. Também a Frente Guasu, um conglomerado de centro-esquerda, e outros partidos menores apoiam o impeachment, mas no momento eles não têm os votos necessários para fazê-lo. A possibilidade, e o sujeito fundamental, é que essa geração jovem que está nas ruas faça pressão, esse é o elemento desestabilizador do tabuleiro. Neste momento Horacio Cartes ainda tem os votos necessários para impedir o impeachment de Abdo. Nesse sentido também a pauta é heterogênea: impeachment do presidente, impeachment do presidente e do vice-presidente, saída de toda a linha sucessória, convocatória de novas eleições… [aqui toca o celular (telemóvel) do entrevistado]
PP: Essa juventude que está nas manifestações, como é que ela foi impactada pela pandemia? Houve aumento do desemprego? A condição de vida da juventude mudou muito, digamos, nos últimos 10 anos?
AB: É uma juventude muito heterogênea, muito trans-classe, é minha impressão. Mas sim, o impacto econômico é gigantesco, e já vinha de antes. A pandemia agudizou, quebrou uma grande quantidade de negócios da classe média.
PP: Como assim?
AB: Por um lado, é uma sociedade muito adultocêntrica, onde a voz dos jovens é desqualificada em geral. Por outro lado, os movimentos sociais mais sigificativos nos últimos 10 anos em Assunção são generacionais, pessoas jovens, estudantes secudaristas, universitários e feministas. Eu acredito que isso se soma bastante às reações que estamos vendo, que são muito massivas, pedindo o impeachment do presidente, do vice, a saída do Partido Colorado, que saiam todos [“que se vayan todos”], ou seja, tudo se somou ao mal-estar acumulado de uma sociedade fortemente tradicional e gerontocrática.
É bom saber que, ao contrário de outros países, no Paraguai as pessoas não estejam protestando contra as medidas sanitárias. Mas, por outro lado, é curioso que, tanto nas ilustrações desta entrevista quanto nas ilustrações do artigo publicado em 10 de março (https://passapalavra.info/2021/03/136655/), as fotos mostrem pessoas aglomeradas e sem máscara, ou descendo as máscaras até o queixo para espalhar gotículas contaminadas. Não será surpreendente se num futuro breve a situação da pandemia piorar no Paraguai…
A juventude ocupou escolas (secundarias) em 2019 pelo (não só) impeachtment do Abdo Benítez, fez manifestações enormes no movimento #UNAnotecalles sobre a corrupção da Universidad Nacional de Asunción. Em 2015, secundários ocuparam escolas e inclusive, sinalizaram apoio às ocupações no Brasil. Ainda em 2017, houve também, grande participação da juventude no episódio do fogo no congresso. Esta curiosa juventude, ao contrario dos movimentos sindicais dominados pelo aparelho Estatal, esteve durante estes ultimos anos nas ruas. Imagino eu que tem grande influencia o seguimentos destes fatos para o que está acontecendo agora.