Por Daniel Neri
A chegada de Jair Bolsonaro ao poder trouxe uma série de incertezas para o cenário ambiental brasileiro. A ausência de diretrizes no plano de governo de poucas linhas [1] do então candidato não retratava a ausência, apenas aparente, de uma política ambiental de seu futuro governo. O anúncio de um réu [2] em crime ambiental como ministro do meio ambiente revelava, desde o início do mandato, propósitos de uma agenda, confirmados em viva voz por Ricardo Salles na fatídica reunião ministerial de abril de 2020 [3]:
“Nós temos a possibilidade nesse (sic) momento que (sic) a atenção da imprensa está voltada exclusiva, quase que exclusivamente pro (sic) COVID, e daqui a pouco para a Amazônia, o General Mourão tem feito aí os trabalhos preparatórios para que a gente possa entrar nesse assunto da Amazônia um pouco mais calçado (sic), mas não é isso que eu quero falar.”
”Esse assunto da Amazônia“ já havia sido objeto de comentário de Bolsonaro em discurso no Planalto, seis meses antes do encontro ministerial, quando se dirigia a garimpeiros no Planalto:
“O interesse na Amazônia não é no índio, nem na porra da árvore. É no minério! […] Como é que pode um país rico como o nosso, que tem toda tabela periódica embaixo da terra e (sic) continuar vendo vocês aqui sofridos?” [4].
“Vocês aqui sofridos” se referia a representantes de garimpeiros de ouro da Amazônia, os mesmos que recorrentemente aparecem nos telejornais, invadindo territórios indígenas, especialmente os pertencentes ao povo Yanomami.
Essas manifestações, comuns a membros da cúpula do executivo, ilustram claramente a política ambiental: ao contrário da prerrogativa que respeita a Constituição, de proteger e garantir o direito ao “meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações” [5], Ricardo Salles atua abertamente como um lobista pró-desmatamento, enfraquecendo os órgãos oficiais de controle, tendo sido recentemente acusado pelo STF de criar dificuldades à fiscalização ambiental num caso de apreensão de 226 mil metros cúbicos de madeira extraída ilegalmente na divisa dos estados do Pará com o Amazonas, correspondente a cerca de 65 mil árvores nativas do bioma amazônico [6], no valor de 129 milhões de reais [7].
Em meio a essas graves distorções das funções e práticas que se esperam das pessoas no alto comando do governo, os portais de notícias inundam as redes com análises que associam tais práticas a um tipo de neofascismo representado pelo bolsonarismo, com suas associações a milícias militares e paramilitares de norte a sul e, especialmente, sua suposta e permanente atitude de promoção de uma espécie de contra-revolução preventiva: por meio de grupos de apoiadores, o presidente, seus filhos, ministros e outras pessoas próximas ao mandatário ameaçam insistentemente a ordem institucional e o Estado Democrático de Direito [8].
Neste momento, ante um flagrante enfraquecimento das instituições que deveriam, em tese, atuar em defesa das pessoas, do meio ambiente, dos bens e recursos comuns, assistimos, entre incrédulos e indignados, aos desdobramentos da CPI da COVID, que revela traços de crueldade manifesta num tipo de experimento macabro, em que toda a sociedade foi exposta ao vírus na busca de uma suposta imunidade de rebanho [9], cujo resultado foi, até agora, a morte de mais de meio milhão de brasileiros.
Parte do cenário, Minas Gerais atravessa um momento de semelhança análoga, ou mesmo de reprodução dos avanços da política de desmonte da política ambiental observada na gestão de Ricardo Salles frente ao Ministério do Meio Ambiente, tendo como protagonista, desde a gestão de Germano Vieira frente à Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável a partir de 2016. Enquanto o falso mestre por Yale [10] atua de forma exemplar como uma raposa dentro do galinheiro no âmbito do executivo federal, em Minas as corporações ligadas à mineração conseguiram criar mecanismos de aparelhamento estatal em prol de seus interesses em outro seguimento: o Poder Judiciário.
Não que se trate de uma novidade. A história recente mostra casos em que as relações entre juízes e empresas mineradoras em Minas Gerais são bastante benéficas para as corporações e seus gestores, como a relação espúria do Juiz Mário de Paula e a Fundação Renova [11], ou o fato de ninguém ter sido condenado pelos crimes dos rompimentos das barragens de rejeitos do Fundão, em Mariana (2015) [12] e do Córrego do Feijão, em Brumadinho (2019) [13], o que revela o poder das corporações mineradoras sobre os juízes e seus tribunais. Nessa relação, tão antiga quanto o próprio Estado burguês, ganhou destaque, recentemente, por meio de sua atuação nos casos envolvendo mineração no Estado de Minas, um ator ainda mais inusitado: o Ministério Público.
O órgão, que constitucionalmente deveria “atuar em defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis” [14], vem operando, de forma crescente, em situações de explícito conflito socioambiental, na defesa dos interesses das corporações. A ação, que aparece de forma escamoteada há mais de uma década dentro da política de resolução negociada de conflitos ambientais em Minas Gerais, assume um caráter cada vez mais explícito de defesa e proteção antecipada das garantias de instalação e ampliação dos negócios minerários em Minas Gerais.
A prática é resultado direto de um deslocamento das funções originais do Ministério Público brasileiro, promovido, particularmente a partir de 2010 por meio da Resolução no 125/2010 do Conselho Nacional de Justiça, que persegue o objetivo estratégico de ampliar a atuação extrajudicial como forma de pacificação dos conflitos e melhoria da efetividade da Instituição.
”[…] o Estado Democrático de Direito abrange, principiologicamente, a democracia participativa e a democracia deliberativa, que impõem, sempre que possível, o diálogo e a busca do consenso. Essas diretrizes do diálogo e do consenso devem traçar também a atuação das instituições do acesso à justiça, especialmente o Ministério Público, como uma das principais instituições do Estado Democrático de Direito e com natureza institucional de garantia fundamental de acesso à justiça da sociedade“ [15].
A citação se apresenta no “Manual de Negociação e Mediação para Membros do Ministério Público”, um texto de 2015 que faz um exercício retórico para justificar a transição da entidade da função constitucional de defesa dos interesses das pessoas sem o devido acesso à justiça. Prossegue o texto:
“Quando a Constituição determina que incumbe ao Ministério Público a defesa dos interesses sociais e individuais indisponíveis, esse dever constitucional deve ser interpretado para conduzir a instituição a uma metodologia de atuação que humanize a resolução das controvérsias e conflitos. A resolução pelo diálogo e pelo consenso é a via legítima que deve ser priorizada pela instituição” [16].
Como se vê, o exercício proposto pelo manual é fazer com que, na atuação jurisdicional ou extra-jurisdicional, seja dever dos órgãos do Ministério Público privilegiar a “solução de controvérsias e conflitos” pela busca do consenso.
Nesse contexto, Minas Gerais foi o palco onde se enredou um dos capítulos mais perversos da trama. Em 2010, o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) trouxe para o Brasil o chamado ”Mecanismo Independente de Consulta e Investigação“, um aperfeiçoamento de políticas anteriores que visavam “aumentar a transparência, responsabilidade institucional e efetividade” do Banco, a uma forma de o Banco ‘transferir know-how de conciliação de conflitos para o Brasil [17].
A fim de atender aos imperativos de governança empregados pelo BID e pelo Banco Mundial no controle de seus próprios investimentos, foram implementadas medidas de “fortalecimento institucional” do Ministério Público do Estado de Minas Gerais (MPMG). Neste sentido, já em 2009, o Ministério Público do Estado havia firmado um acordo com o Banco Mundial, na forma de um Termo de Cooperação Técnica (TCT), com o objetivo de promover esse “fortalecimento institucional” do MPMG. Uma Resolução da Procuradoria Geral de Justiça do Estado de Minas Gerais, publicada no Diário Oficial do Estado em 2010, aprovou e fez entrar em vigor o “Manual Operativo do Projeto de Fortalecimento Institucional do Ministério Público do Estado de Minas Gerais”, elaborado em conjunto com o Banco Mundial, a Secretaria de Estado de Desenvolvimento Econômico — SEDE — e a Secretaria de Estado de Fazenda — SEF — em consonância com o termo de Acordo de Cooperação Técnica, celebrado na data de 19 de janeiro de 2010 e financiado pela “Doação TF 95718”, com um aporte de U$ 399.300,00, provenientes do Fundo de Desenvolvimento Institucional do Banco Mundial [18]. Alberto Ninio, representante do banco, justificou o projeto, destacando, entre outros aspectos, que o Ministério Público deve garantir a assistência técnica para gerenciar
“novas metodologias e técnicas para a quantificação de danos ambientais e a capacitação dos promotores para oferecer mediação fora dos tribunais e das cortes da justiça com o objetivo de resolver as insuficiências da legislação e regulação estadual e a proteção dos direitos difusos constitucionais” [19].
Desde então, avança em Minas Gerais a política de governança baseada na resolução negociada de conflitos. Tendo as ações civis públicas (ACP) e os termos de ajuste de conduta (TACS) como carros-chefes da antecipação à judicialização dos conflitos, o Ministério Público Estadual vem assumindo, regularmente, um papel que não é seu: atuando na regulação e normatização de processos que são de competência do poder executivo, por meio de suas câmaras técnicas, conselhos e secretarias ligados à área ambiental.
De modo crescente se observa como essa atuação fragiliza — ou, nas palavras de governantes e empreendedores, destrava o licenciamento ambiental. Um trágico caso exemplar dessa atuação deturpada é o modo como a entidade agiu no caso do rompimento da Barragem de Fundão, em 2015. Àquela altura da década de 2010, o Conselho Estadual de Política Ambiental do Estado de Minas Gerais (COPAM), já vivia um processo adiantado de cristalização de formas muito assimétricas de representação dos diferentes atores sociais, com crescente dificuldade de manifestação, por exemplo, de atores atingidos. Nesse “processo da oligarquização do poder entre os conselheiros com regras do jogo bastante consolidadas” [20], o COPAM já havia se transformado em um fórum por meio do qual os interesses de empresas se sobrepunham aos demais interesses das sociedade civil e, em especial, às demandas das populações impactadas pelos empreendimentos, principalmente os minerários: com uma composição, em 2013, de 21 representantes ligados ao Estado ou às empresas em oposição a apenas seis entidades desvinculadas (a princípio) dos interesses das corporações [21].
Sob essa conformação do COPAM, foi permitida a sequência de licenciamentos (tabela abaixo) cujo resultado é o trágico rompimento da barragem de Fundão, causador do maior desastre ambiental da história.
Ano | Fases Processuais |
2005 | Apresentação do EIA-RIMA para construção da Barragem do Fundão – Consultoria Brandt Meio Ambiente |
2008 | Concedida a Licença de Operação da Barragem do Fundão |
2011 | Abertura de Procedimento para Renovação de Licença de Operação |
2011 | Obtenção da Prorrogação da Licença de Operação até 2013 |
2012 | Apresentação de EIA-RIMA da Otimização da Barragem do Fundão – Consultora Sete Soluções e Tecnologia Ambiental – para Licença Prévia/Instalação |
2013 | Apresentação de EIA-RIMA para Unificação e Alteamento das Barragens do Fundão e Germano – Consultora Sete Soluções e Tecnologia Ambiental – para Licença Prévia/Instalação |
2013 | Pedido de Renovação da Licença da Operação da Barragem do Fundão — em Análise |
2014 | Concedida a Licença Prévia e de Instalação para Unificação do Fundão e Germano |
Fonte: SIAM (SEMAD, 2015) Sequência do licenciamento da Barragem de Fundão, disponível em https://www.ufjf.br/poemas/files/2016/11/Livro-Completo-com-capa.pdf
Todas essas licenças, aprovadas em ritmo acelerado pelo COPAM, formam uma cadeia de elementos cujo resultado todos conhecem. A denúncia oferecida pela Força Tarefa Rio Doce do MPF [22] retrata assim o conjunto de crimes cometidos no caso de Fundão:
“Por que tanto descaso com a segurança, mesmo sabendo dos riscos de um desastre? Contra toda recomendação técnica e, talvez por não encontrar um profissional externo minimamente responsável para fazê-lo, talvez por economia, improvisa internamente um projeto, valendo-se de um empregado recentemente contratado. Contra a indicação desse mesmo empregado e do ITRB, alteia-se o recuo em pelo menos 38 metros, como se construísse um prédio de mais de 12 (doze) andares sobre lama escorregadia. Por quê? Por economia, pela volúpia de incremento da produção a qualquer preço, mesmo de vidas humanas”.
Porém, a magnitude da tragédia não produziu um efeito positivo sobre a política ambiental em Minas Gerais, tampouco significou um posicionamento firme dos agentes estatais — entre eles, particularmente, o MPMG —- frente às violações promovidas pelas empresas criminosas. Pelo contrário: a sequência de eventos que transcorrem após Fundão não só reforça a política de solução negociada de conflitos como serve de esteio para justificar outras modificações retrógradas e nocivas à garantia da salvaguarda social e ambiental nos territórios atingidos pela atividade minerária.
Tomem-se dois exemplos a título de ilustração: as profundas alterações no SISEMA — Sistema Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos —, por meio da Lei 21.972, de Janeiro de 2016, teve como um de seus desdobramentos a criação da SUPPRI — Superintendência de Projetos Prioritários —, estabelecida por decreto em setembro do mesmo ano, e a criação da Fundação Renova, por meio do TTAC — Termo de Transação e Ajuste de Conduta, pelo qual a fundação, comandada pelas empresas criminosas (Vale e BHP Billiton) se torna a responsável pela gestão da reparação dos danos causados pelo rompimento.
Enquanto a SUPPRI agiliza a aceleração dos licenciamentos em diversos processos denunciados por movimentos sociais e grupos de pesquisa [23], a Renova segue promovendo o modo clássico da governança ambiental privada: violações de direitos [24], o não reassentamento das famílias expulsas pela lama [25], diversas denúncias de fraude financeira [26], além da escandalosa relação com o Juiz Mário de Paula Franco Júnior, cujo afastamento do caso Samarco foi pedido em carta por mais de 100 juristas, pesquisadores e políticos em abril último, em função dos vídeos que mostram o juiz “orientando advogados, advogadas e segmentos das comunidades atingidas em como atuar no caso, a fim de que adotassem o modelo indenizatório sugerido pelas empresas” [27]. Não obstante as evidências, a Desembargadora Daniele Maranhão Costa, do TRF-1, decidiu não afastar o juiz do processo, alegando não estar convencida de que o magistrado se mostre suspeito para conduzir o processo” [28].
Todo esse contexto forma o pano de fundo da trama mórbida que se desenrola em Minas Gerais neste momento: em maio foi anunciado um termo de compromisso referente a estudos para a viabilização do chamado Bloco 8, empreendimento de mineração previsto para o Norte do Estado, com investimentos iniciais da ordem de 2 bilhões de dólares, entre a mineradora Sul Americana de Metais (SAM), subsidiária da chinesa Honbridge Holdings, e o Ministério Público do Estado de Minas Gerais (MPMG). Diversas situações inusitadas seriam consideradas absurdas, não fosse o contexto da governança ambiental em Minas Gerais, a começar pelo inédito sigilo imposto ao acordo de forma completamente irregular, sem qualquer justificativa legal. Também pela condução do processo: as tratativas foram conduzidas pelo Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Defesa do Meio Ambiente, do Patrimônio Histórico e Cultural e da Habitação e Urbanismo (Caoma), promotor de Justiça Carlos Eduardo Ferreira Pinto; pelo coordenador Estadual de Meio Ambiente e Mineração do MPMG (Cema), promotor Felipe Faria; pelo coordenador regional das Promotorias de Justiça do Meio Ambiente das Bacias dos Rios Verde Grande e Pardo, Daniel Piovanelli Ardisson, e ainda pelo promotor da Comarca de Grão Mogol, região do empreendimento. Ou seja, o MPMG mobilizou o seu melhor estafe disponível para construir uma peça que juridicamente não existe dentro das funções do Ministério Público. Na prática, o MP, assumidamente, toma o lugar dos órgãos ambientais no processo de licenciamento ao efetuar, conforme palavras do promotor coordenador do CAOMA:
“o MPMG fará uma análise aprofundada dos estudos apresentados pela empresa a fim de verificar a segurança para a sociedade mineira, caso o projeto seja implementado. O termo busca, através do diálogo e do conhecimento técnico imparcial, a concretização do desenvolvimento sustentável, de modo a compatibilizar o crescimento econômico e a preservação dos recursos naturais, sobretudo numa região tão carente de desenvolvimento humano” [29].
Beira o cinismo tal afirmação.
Primeiramente, porque não é função do Ministério Público proceder dessa forma, que mais se parece com o papel de um consultor do que defensor da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis; em segundo lugar, o acordo, sigiloso, não contou com a participação de nenhuma das diversas comunidades que serão impactadas pelo empreendimento, que encontra dificuldades de licenciamento desde seu início, em 2010.
Como destaca o Jornal Valor Econômico,
“A Sul- Americana Metais (SAM Metais), empresa do grupo chinês Honbridge Holdings, conseguiu destravar o licenciamento ambiental do projeto de mineração localizado na cidade de Grão Mogol, no Norte de Minas, de US$ 2,1 bilhões (negrito nosso)” [30].
A trava mencionada na reportagem se refere ao fato de a Diretoria de Licenciamento Ambiental (DILIC) do Ibama ter rejeitado, em 2016, o projeto Vale do Rio Pardo, apresentado pela mineradora Sul Americana de Metais (SAM), por inviabilidade ambiental [31]. Entre os pontos problemáticos do projeto, está a construção de três barragens de rejeitos com volume total da ordem de 2,4 bilhões de m3 de rejeitos, ou o equivalente a cinquenta barragens de Fundão, em Mariana, ou duzentas de Córrego do Feijão, em Brumadinho. As tratativas, iniciadas em 2013, foram definitivamente encerradas pelo órgão em 2015, dada sua total inviabilidade relativa ao uso de recursos hídricos, problema que já assola há décadas o Vale do Rio Pardo e do Vale das Cancelas, no município de Grão Mogol, no norte de Minas Gerais.
Observe-se que a região, que já sofre com problemas de apropriação privada de terras públicas de uso de comunidades locais — os chamados Geraizeiros [32] — por empresas de reflorestamento (Norflor, Floresta Minas e Rio Rancho, além de empresas de mineração e energia), será duramente impactada caso o chamado Projeto 8 da Sul Americana de Metais (SAM) siga adiante.
Toda essa trama se desenvolve num momento em que a população de Minas Gerais assiste atônita, à total leniência do poder público em frear o avanço na mineração predatória em Minas Gerais. Hoje há milhares de famílias removidas de suas casas ou em vias de remoção em função dos riscos (que não se tem certeza se são reais, visto que algumas estão em “iminente” risco há mais de dois anos e várias tem seus níveis alterados ora para mais ora para menos) associados às barragens de rejeito, como em Barão de Cocais, Nova Lima, Ouro Preto, Itatiaiuçu e Itabira. Sobre esse mesmo pano de fundo, o Conselho Estadual de Política Ambiental (COPAM) segue liberando novos empreendimentos, inclusive alteamentos de barragens de rejeitos com comunidades na chamada Zona se Autossalvamento, que estão vedados desde 25 de janeiro de 2019 pela Lei 23.291, conhecida como Mar de Lama Nunca Mais, sem que se respeite minimamente o princípio da precaução e os procedimentos técnicos necessários à garantia aos direitos humanos e à preservação do meio ambiente. São inúmeras as denúncias sobre os processos de licenciamento que tramitam na Câmara de Atividades Minerárias (CMI) do COPAM. Um dos casos recentes mais emblemáticos nessa seara de processos de licenciamento de mineração é o do Complexo Minerário da Serra do Taquaril, que nada mais é do que a reinvestida na abertura de lavra na Serra do Curral, entre Belo Horizonte, Sabará e Nova Lima [33], um projeto que visivelmente usufrui da tática de licenciamento fracionado, que é o modo que empresas encontraram para saltar as etapas necessárias ao licenciamento, numa área que pode comprometer severa e definitivamente a frágil segurança hídrica da Região Metropolitana de Belo Horizonte.
Por fim, resta a pergunta: a quem denunciar tais abusos se Estado, Judiciário e até Ministério Público se prestam a servir os interesses minerários? O recente acordo firmado entre Vale e o estado de Minas Gerais para encerrar o processo de reparação pelo crime de Brumadinho nos aponta para um caminho árduo. Com um robusto ‘desconto’ de 17 bilhões de reais (de 54 bilhões previstos inicialmente para 37 bilhões) [34], o termo prevê investimentos que claramente se reverterão para benefício da própria Vale, como a construção do Rodoanel, que pode impactar o abastecimento de água na região [35], que foi costurado entre a empresa, o MPMG e o governo Zema sem qualquer participação do grupos e atores sociais atingidos. Ao que parece, esse modelo de arranjo de cima para baixo tende a ser seguido também no caso do rompimento em Mariana, após reuniões recentes entre o governador de Minas Gerais, Romeu Zema, e o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Luiz Fux. O encontro, solicitado pelo Juiz Mário de Paula — o mesmo acusado de suspeição no caso — não contou com a participação de nenhum representante dos atingidos [36].
Por fim, enquanto esse texto é produzido, chega mais uma informação de desmonte na política ambiental do Estado: o governo Zema, em decreto que dispõe sobre o Conselho Estadual de Recursos Hídricos (CNRH) [37], entre outras alterações, estabelece que os conselheiros (titular, primeiro e segundo suplentes) representantes dos municípios, dos usuários de recursos hídricos e de entidades da sociedade civil serão escolhidos pelo Secretário de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável a partir de uma lista tríplice a ser apresentada pelos segmentos, quando até hoje a escolha era realizada por cada segmento. Mais um retrocesso que ilustra claramente o cenário pseudo-participativo e autocrático de associação espúria entre os agentes estatais e as corporações do setor minerário no Brasil e, especialmente, em Minas Gerais.
As fotografias que ilustram este artigo são da autoria de Munro Studio.
Notas
[1] O Caminho da Prosperidade Proposta de Plano de Governo. Disponível em https://divulgacandcontas.tse.jus.br/candidaturas/oficial/2018/BR/BR/2022802018/280000614517/proposta_1534284632231.pdf.
[2] Futuro ministro, Ricardo Salles é condenado em ação de improbidade. Disponível em https://noticias.uol.com.br/meio-ambiente/ultimas-noticias/redacao/2018/12/19/futuro-ministro-ricardo-salles-e-condenado-em-acao-de-improbidade.htm.
[3] Ministro do Meio Ambiente defende passar ‘a boiada’ e ‘mudar’ regras enquanto atenção da mídia está voltada para a Covid-19. Disponível em https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/05/22/ministro-do-meio-ambiente-defende-passar-a-boiada-e-mudar-regramento-e-simplificar-normas.ghtml.
[4] Bolsonaro diz que pode atender garimpeiros e mandar Forças Armadas à Serra Pelada. Disponível em https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/brasil/2019/10/01/interna-brasil,793053/bolsonaro-diz-que-pode-atender-garimpeiros-e-mandar-forcas-armadas-a-s.shtml, 05/09/2019.
[5] Constituição Federal, Capítulo VI, Artigo 225 (BRASIL, 1988).
[6] Disponível em: https://www.dw.com/pt-br/fraudes-grotescas-diz-delegado-sobre-madeira-ilegal-que-salles-quer-liberar/a-57391991.
[7] Entenda investigação contra Ricardo Salles autorizada pelo STF que apura suspeita de atrapalhar PF. 3 junho 2021. https://www.bbc.com/portuguese/brasil-57346129.
[8] Entenda o que é o inquérito dos atos antidemocráticos. 04 de Dezembro de 2020 https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,entenda-o-que-e-o-inquerito-dos-atos-antidemocraticos,700035393030.
[9] CPI da Covid: como ‘imunidade de rebanho’ pode virar arma contra Bolsonaro. 6 maio 2021 https://www.bbc.com/portuguese/brasil-57004708.
[10] Quem inventou a mentira de que o ministro Ricardo Salles estudou em Yale? https://theintercept.com/2019/02/23/ricardo-salles-yale-mentira/.
[11]Juristas pedem o afastamento imediato do juiz Mário de Paula Franco Júnior do Caso Samarco. https://observatoriodamineracao.com.br/juristas-pedem-o-afastamento-imediato-do-juiz-mario-de-paula-franco-junior-do-caso-samarco/.
[12] Cinco anos depois da maior tragédia ambiental do país, que matou 19 pessoas em Mariana, ninguém foi punido. https://g1.globo.com/mg/minas-gerais/noticia/2020/10/29/cinco-anos-depois-da-maior-tragedia-ambiental-do-pais-que-matou-19-pessoas-em-mariana-ninguem-foi-punido.ghtml.
[13] Processo criminal sobre tragédia de Brumadinho está parado na Justiça há mais de um mês. https://g1.globo.com/mg/minas-gerais/noticia/2021/01/25/processo-criminal-sobre-tragedia-de-brumadinho-esta-parado-na-justica-ha-mais-de-um-mes.ghtml.
[14] CONSTITUIÇÃO FEDERAL, Art. 127. https://www.senado.leg.br/atividade/const/con1988/CON1988_05.10.1988/art_127_.asp.
[15] Manual de negociação e mediação para membros do Ministério Público / Conselho Nacional do Ministério Público. 2. ed. Brasília: CNMP, 2015. p. 99.
[16] Idem, p. 100 (negritos nossos).
[17] O banco mantém um site atualizado e bastante completo sobre esse mecanismo. Cf. https://www.iadb.org/pt/mici/mici-mecanismo-independente-de-consulta-e-investigacao.
[18] RESOLUÇÃO PGJ Nº 28, DE 12 DE ABRIL DE 2010, publicada no Diário Oficial do Estado de Minas Gerais na edição de 14 de abril de 2010.
[19] Laschefski, K. Governança, neodesenvolvimentismo e autoritarismo difuso. In Andréa Zhouri e Norma Valencio (Orgs) Formas de matar, de morrer e de resistir limites da resolução negociada de conflitos ambientais – Belo Horizonte. Editora UFMG. 2013, p. 190. (negritos nossos).
[20] Idem, p. 191.
[21] Em 2013, o Conselho era composto por 10 secretários de Estado, pelo chefe do Estado maior da Polícia Militar, representando diretamente o governo do Estado; além desses, o Superintendente do IBAMA em Minhas Gerais, o presidente da comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Assembleia Legislativa, e o presidente da Associação Mineira de Municípios. Da sociedade civil enviavam representantes a Associação Comercial, Federação da Agricultura, Federação das Indústrias, Sebrae, Instituto Brasileiro de Mineração, Câmara do Comércio Imobiliário. Ainda, entidades de classe: Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental, Crea (com dois representantes) e Associação do Engenheiros de Minas Gerais somavam 21 membros ligados às empresas ou ao Estado. Por outro lado, Federação dos Trabalhadores na Agricultura, somado a dois representantes de entidades ambientalistas e três representantes de entidades de pesquisa e ensino totalizavam apenas seis conselheiros não ligados diretamente aos interesses das empresas.
[22] http://www.mpf.mp.br/mg/sala-de-imprensa/docs/denuncia-samarco.
[23] SUPPRI e COPAM utilizam estratégias arbitrárias para beneficiar mega-mineradoras que colocam em risco população e meio ambiente. Disponível em https://conflitosambientaismg.lcc.ufmg.br/noticias/suppri-e-copam-utilizam-estrategias-arbitrarias-para-beneficiar-mega-mineradoras-que-colocam-em-risco-populacao-e-meio-ambiente/05/12/2018.
[24] MPs expedem recomendação para frear abusos da Fundação Renova. Disponível em https://mpt.jusbrasil.com.br/noticias/563839667/mps-expedem-recomendacao-para-frear-abusos-da-fundacao-renova. Junho 2018
[25] Tragédia sem fim: cinco anos depois, Renova atrasa outra vez entrega de casas em Mariana. Disponível em: https://manuelzao.ufmg.br/tragedia-sem-fim-cinco-anos-depois-renova-atrasa-outra-vez-entrega-de-casas-em-mariana/04/02/2021.
[26] Ministério Público pede extinção da Fundação Renova. Disponível em: https://m.cbn.globoradio.globo.com/media/audio/332927/ministerio-publico-pede-extincao-da-fundacao-renov.htm. 25/02/2021.
[27] Juristas pedem o afastamento imediato do juiz Mário de Paula Franco Júnior do Caso Samarco: https://observatoriodamineracao.com.br/juristas-pedem-o-afastamento-imediato-do-juiz-mario-de-paula-franco-junior-do-caso-samarco/.
[28] TRF-1 recebe arguição de suspeição e nega afastamento de juiz do caso Samarco. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-mai-25/trf-recebe-suspeicao-nega-afastamento-juiz-samarco. 25/05/2021.
[29] MPMG e mineradora assinam Termo de Compromisso que prevê a exploração de minério de ferro no Norte de Minas. https://www.mpmg.mp.br/areas-de-atuacao/defesa-do-cidadao/meio-ambiente/noticias/mpmg-e-mineradora-assinam-termo-de-compromisso-que-preve-a-exploracao-de-minerio-de-ferro-no-norte-de-minas.htm. 24/05/2021.
[30] SAM Metais destrava processo ambiental. Disponível em: https://valor.globo.com/empresas/noticia/2021/05/26/sam-metais-destrava-processo-ambiental.ghtml. 26/05/2021.
[31] Ibama rejeita projeto de mineração em MG que teria maior barragem do país. Disponível em: http://www.ibama.gov.br/noticias/58-2016/150-ibama-rejeita-projeto-de-mineracao-em-mg-que-teria-maior-barragem-do-pais. 01/04/2016.
[32] Geraizeiros do Vale Das Cancelas — Famílias que viviam nas chamadas “terras livres” lutam para retomar áreas que foram judicialmente apropriadas por fazendas. Disponível em: https://reporterbrasil.org.br/comunidadestradicionais/geraizeiros-do-vale-das-cancelas/27/01/2018.
[33] Moldura de Belo Horizonte, Serra do Curral pode perder mais terreno para a mineração. Disponível em: https://manuelzao.ufmg.br/moldura-de-belo-horizonte-serra-do-curral-pode-perder-mais-terreno-para-a-mineracao/19/03/2021.
[34] Poder Público garante início imediato de Medidas de Reparação dos danos causados por rompimento de barragem em Brumadinho. Disponível em: http://www.agenciaminas.mg.gov.br/noticia/poder-publico-garante-inicio-imediato-de-medidas-de-reparacao-dos-danos-causados-por-rompimento-de-barragem-em-brumadinho. 04/02/2021.
[35] Rodoanel pode impactar abastecimento de água da Região Metropolitana de BH. Disponível em: https://www.brasildefatomg.com.br/2021/03/10/rodoanel-pode-impactar-abastecimento-de-agua-da-regiao-metropolitana-de-bh. 10/03/2021.
[36] Zema, Fux e autoridades tentam costurar acordo sobre tragédia de Mariana. Disponível em: https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2021/06/01/interna_gerais,1272657/zema-fux-e-autoridades-tentam-costurar-acordo-sobre-tragedia-de-mariana.shtml. 01/06/2021.
[37] DECRETO 48209, de 18/06/2021. Disponível em: https://www.almg.gov.br/consulte/legislacao/completa/completa.html?tipo=DEC&num=48209&ano=2021.
O brilhante artigo do professor Daniel Neri exprime com perfeição o sistema absurdo de chancela da imposição de empreendimentos danosos aos interesse e direitos metaindividuais.
Como bem destacado, Minas Gerais figura como polo dos arbítios e ilegalidades, começando pelas malfadadas Declarações de Conformidade assinadas pelos prefeitos, em grande parte sem minima leitura ( ou até sob inexistência) de estudos de impacto de vizinhança e de compatibilidade do empreendimentos com o ordenamento territórial e o respeito mínimo a que já habitava os territórios devastados.
Guiada por interesses espúrios, ganância arrecadatória sem limites e busca absurda pelo lucro fácil e rápido, a terra de Tiradentes virou não um território sem lei, mas um lugar onde a segurança jurídica se presta mais à proteção de benesses econômicas doadas aos ‘parças’, que os genuínos direitos de uma sociedade que se pretende civilizada.
José, de Carlos Drummond de Andrade
E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?
Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?
E agora, José?
Sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio – e agora?
Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?
Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse…
Mas você não morre,
você é duro, José!
Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
José, para onde?