Não é de se estranhar que durante o levantamento do Maio francês de 1968 alguém escrevesse nas paredes da cidade que um fim de semana de paz capitalista era infinitamente mais sangrento que um mês de revolução absoluta. Por José Antonio Gutiérrez D.
Nunca fui muito bom em matemática, mas o seguinte cálculo é bastante exato. Somam-se 10.000 tropas novas no Afeganistão, violações sistemáticas nas ocupações deste país e do Iraque, silêncio cúmplice diante de dois genocídios, um em Gaza e outro no Sri Lanka (onde ainda há 300.000 seres humanos em campos de concentração), um golpe de Estado em Honduras em que a participação norte-americana foi algo que todos sabiam – mas que ninguém quis denunciar diretamente (ainda que o tiro tenha saído pela culatra) –, sete novas bases militares na Colômbia, e o que temos de resultado? Um prêmio Nobel da “Paz” para o presidente dos E.U.A., Barack Obama.
Na realidade, não me tira o sono o que fazem ou deixam de fazer com um prêmio que vale bem pouco, e que o único mérito que se conta para obtê-lo é a estratégia política. É verdade que este prêmio foi recebido por pessoas de incontestável valor como Pérez Esquivel, Rigoberta Menchú, Martin Luther King ou Desmond Tutu. Mas estes casos são, na verdade, bem excepcionais. Na lista encontramos gente como Theodore Roosevelt (1906), que popularizou a fórmula de “dar com uma mão e bater com a outra” ao se referir às relações internacionais dos E.U.A. no início de sua fase imperialista, aplaudiu o assassinato judicial dos Mártires de Chicago em 1886 (pois se atreveram a lutar pela jornada de oito horas) e que se caracterizou pelo tratamento brutal ao movimento operário de sua época.
Woodrow Wilson, outro presidente norte-americano, também recebeu o Nobel da Paz em 1919. Seus méritos? Ter participado da criação da Liga das Nações. Certamente não se levou em consideração os seguintes “detalhes”: foi o presidente que declarou os E.U.A. em guerra durante a Primeira Guerra Mundial, invadiu, durante seu governo, o México de Zapata, Cuba, Haiti, República Dominicana, Nicarágua e o Panamá. Como se isso fosse pouco, foi abertamente racista e defensor das virtudes da escravidão; opôs-se abertamente ao direito dos negros serem estudantes e negou que o sul dos E.U.A. pudesse ter direito a voto. Além disso, se opunha ao direito de votar dos negros em qualquer parte da “terra da liberdade” e estabeleceu nos departamentos federais, sob mando de seu governo, a segregação racial. Não é de se estranhar que, como corroboração ao seu racismo, fez também apologia ao Ku Klux Klan.
Outro dos premiados com o Nobel da “Paz” é ninguém mais ninguém menos que Henry Kissinger (1973) que, como cruel paradoxo, recebeu este prêmio precisamente no mesmo ano em que, como Secretário de Estado dos E.U.A., maquinou a queda de Allende e a ascensão ao poder de Pinochet, que durante 17 anos semeou a morte e o terror em todo o Chile. O prêmio lhe foi outorgado por haver negociado a retirada das tropas yanquis que haviam invadido o Vietnam. Que um personagem sinistro como Kissinger receba o prêmio Nobel da “Paz” é realmente tragicômico e revela o escasso valor deste prêmio: seu prontuário inclui bombardeios massivos no Camboja e no Vietnam, onde milhares de seres humanos foram carbonizados com NAPALM, apoio irrestrito à ditadura de Suharto na Indonésia e apoio militar à sua invasão genocida no Timor Leste, apoio a grupos paramilitares em Angola (UNITA) e Moçambique (RENAMO), alimentando suas ações criminosas que custaram a vida de mais de um milhão de pessoas, apoio ativo às ditaduras do Cone Sul da América Latina e o seu “Plano Condor”, que selou o assassinato covarde, a tortura e o desaparecimento de milhares de militantes de esquerda no Chile, na Argentina, na Bolívia, no Uruguai, no Paraguai e no Brasil. Isso sem mencionar sua assessoria a George W. Bush antes da invasão do Iraque em 2003.
Bem, agora, qual é a razão para dar esse reconhecimento a Sua Majestade Obama? Parece que é seu suposto papel para melhorar a cooperação no mundo ou algo assim. Suponho que perdi alguma coisa, já que as benditas bases militares na Colômbia quase nos armam uma área de conflito na América do Sul e avivaram “os ventos de guerra” que sopram entre os Andes e o Amazonas, e nos meteu em uma corrida armamentista que é por demais preocupante. Obama, com essas bases, avivou o fogo do regime de ultra-direita de Uribe, que se encontra manchado pelos seus vínculos com o paramilitarismo genocida. Sua atitude permissiva ante as violações sistemáticas de Israel ao povo palestino tem sido uma constante, e hoje recebemos a notícia que seu governo se opôs ativamente ao informe Goldstone sobre crimes de guerra realizados por Israel na ofensiva de janeiro contra Gaza, realizando numerosas manobras diplomáticas para influir no voto dos membros do Conselho de Direitos Humanos da ONU. Entretanto, essa pressão fracassou e é provável que continue boicotando o estabelecimento da verdade e de alguma medida de reparação a este povo faminto e bombardeado, no Conselho de Segurança da ONU ou em outras instâncias superiores. Que serviço à paz! É necessário falar sobre a sua decisão de continuar com a política de guerra e sua seqüela de violações intermináveis e de danos colaterais contra a população afegã. Se o prêmio é para esforços de “Paz”, há algo que não se enquadra…
Não é por nada que Eyad Bornat, dirigente palestino do Comitê Popular B’ilin [1], que durante anos se opôs à ocupação israelense e à construção do muro do “Apartheid” que divide suas comunidades e as executa como animais, escreveu as seguintes palavras do fundo de seu coração, com dor e ironia:
“Os E.U.A ainda estão no Afeganistão e no Iraque e a Palestina continua sob a ocupação (…), não vimos nenhuma mudança. Por que o comitê não deu esse prêmio para o Bush? Lembro que há nove anos Bush pronunciou um excelente discurso sobre o estabelecimento de um Estado palestino para 2005. Logo após esse discurso, Sharon invadiu a mesquita de Al Aqsa e os E.U.A. invadiram o Iraque. Por que então não deram a esse homem o prêmio, e no lugar disso, a única coisa que recebeu foi uma sapatada? Isto é uma injustiça!
Eu lamento senhor Bush. Você trabalhou duro, durante oito anos, assassinando crianças, lançando guerras e apoiando a ocupação, e ainda assim deram o prêmio a outro homem.”
Somando e subtraindo, parece, o único mérito que restou a esse “bravo pacificador” foi seu discurso grandioso e eloqüente sobre um mundo “sem armas nucleares…” Seja dito de passagem que, até hoje, os E.U.A. não deram o passo de desmantelar nem sequer uma das inumeráveis ogivas nucleares que possuem, as quais no total somam um poder bélico capaz de destruir oito vezes o planeta Terra…
Já não há mais espaço para a vergonha, ainda que Obama, respondendo com as mesmas palavras de Kissinger, recebeu o prêmio com “humildade”. Como a velha canção camponesa “El Diablo en el Paraíso”, que celebrava o “mundo ao inverso”, agora são os senhores da guerra, os imperialistas e os que violam sistematicamente os direitos humanos em nome dos argumentos elásticos da segurança nacional e de guerra contra o terror, os que são confundidos com pombas de paz… As coisas que têm de se ver! Se esta é a paz sistemática capitalista, não é de se estranhar que os compadres parisienses, durante o levantamento do Maio Francês de 1968, escreveram nas paredes de sua cidade que um fim de semana de paz capitalista era infinitamente mais sangrento que um mês de revolução absoluta. Hoje essa afirmação tem mais lucidez e verdade do que nunca.
Nota
[1] http://www.bilin-ffj.org/index.php?option=com_content&t…mid=1
17 de Outubro de 2009.
Tradução: Bruno Domingos Azevedo