Edgar Degas (

Por Arthur Moura [1]

Resumo

Proponho um debate amplo, sobretudo, das dificuldades, dilemas e processos da arte independente em se afirmar não como mercadoria, mas como expressão necessária ao avanço dos trabalhadores na luta contra o capitalismo. Para isso me auxilio em pensadores como Marx e Lukács a partir da leitura de alguns comentadores como Celso Frederico. São problemas centrais a mercantilização das produções artísticas e as múltiplas formas de organização dos mais variados setores da arte hodierna. Em outras palavras, trazer questões polêmicas comuns aos artistas em geral e que ao mesmo tempo permanecem pouco esclarecidas. É preciso também compreender as contradições no interior das relações entre os artistas assim como as principais contradições do sistema capitalista e sua relação com a produção artística. O recorte específico, então, é a arte independente, que não se resume a produções viabilizadas com baixo orçamento. É claro que esse problema perpassa a condição de classe da maioria dos produtores, mas a categoria independente propõe um enfrentamento, a despeito da sua precariedade. É independente neste caso a um certo estado de coisas contrapondo-se a este. Pressupõe algum nível de articulação e superação de um determinado conjunto de valores, regras e imposições de várias ordens.

A dialética exige que se tome como ponto de partida o universal.
Celso Frederico

Nada permanece inalterado até o fim.
Sérgio Sampaio

Meu irmão, o negócio é o seguinte
É pura briga de foice
Um jogo de empurra empurra
Facão, tiro, chute, murro
Chamam mãe de palavrão
Itamar Assumpção

Até os alternativos debandam para o outro lado
E você vai continuar fazendo música?
Rogério Skylab

As citações que abrem este breve artigo trazem algumas questões comuns. Sérgio Sampaio foi bastante assertivo com relação a imprimir a sua leitura sobre o esquema da produção fonográfica e a indústria na década de 1960 e 1970. A letra de Ninguém Vive por Mim resume bem essa batalha. Mesmo tendo talento notório (que o colocava ao lado de nomes como Roberto Carlos e Nara Leão), o que certamente fora percebido por parte da sociedade, naquele momento não conseguiu avançar muitas vezes no sentido da sua própria sobrevivência material. Quando saiu de Cachoeiro de Itapemerim foi morar num alojamento estudantil e chegou a passar necessidades básicas após sair do local, tendo por sorte sido ajudado por um parente que estava no Rio de Janeiro. Ao mesmo tempo em que se via a ascensão de determinados artistas e músicos, como muitos da Tropicália, se produzia também o apagamento de determinados nomes que certamente tinham contribuições importantes para a arte em geral. A vida de Itamar Assumpção também não foi muito diferente no sentido das dificuldades e problemas gerais para consumar sua proposta estética e musical, muito rica por sinal. O próprio nome de uma de suas bandas “Isca de Polícia” é também uma espécie de denúncia contra a repressão que sofria por ser negro e pobre, sendo criminalizado pelas forças do Estado burguês. Mas nem por isso Itamar fez por menos. Muitos diziam ao próprio que sua obra era póstuma e veja que hoje artistas como Sérgio Sampaio e Itamar Assumpção, Arrigo Barnabé, Lula Côrtes, Kátia de França, Ave Sangria passam a ser redescobertos e consequentemente influenciar a produção hodierna. Essa produção, no entanto, continua mergulhada em contradições muito parecidas com as do passado. É preciso, portanto, que compreendamos a natureza dessa contradição que atravessa variados tempos históricos complexificando, sobretudo, a superação desse estado de coisas.

A produção artística, ou simplesmente a produção cultural, tem importância fundamental para as sociedades de uma forma geral. Isso está fora de questionamento. Para nós, interessa pensar a relação da arte, sobretudo alguns campos como o cinema e a música, ou da cultura, como a comunicação, com o contexto sócio-histórico do período moderno e o contemporâneo, muitas vezes entendido como pós-moderno, que guarda algumas peculiaridades, mas que não foge aos elementos constitutivos centrais da modernidade como a era do capital.

A modernidade compreende o período a partir do século XVII, quando as antigas formas de sociabilidade (do regime feudal), economia, política e poder são radicalmente modificados, dando lugar a uma nova classe (a burguesia), que passa a comandar os principais processos sociais, interessada, sobretudo, na obtenção do lucro por meio da dominação de classe. Podemos dizer que neste sentido a hegemonia passou a ser burguesa. De maneira simplificada, hegemonia é a capacidade de uma classe ou fração de classe dirigir seus aliados e dominar os inimigos/subalternos. Para Gramsci, hegemonia é a combinação da força e do consenso. Trata-se de uma racionalidade de classe (visão de mundo), que se faz história e não apenas como uma estratégia de poder; é o processo de universalização de interesses restritos a uma esfera maior da sociedade, convencendo outros segmentos a seguir numa determinada direção. A hegemonia se relaciona ao Estado e quando falamos de Estado falamos de força, política, economia, poder e dominação. Em última instância, a modernidade está intimamente relacionada à hegemonia do capitalismo como modelo sócio-econômico, tendo como classe dominante a burguesia e suas classes auxiliares, como a burocracia, como bem aponta Maurício Tragtenberg em seu livro Burocracia e Ideologia e José Chasin em diversos escritos.

O Estado tem papel central nesse processo, servindo como estrutura sem o qual o regime de acumulação não seria possível. Sem o Estado também não haveria regulação das relações de exploração do capital em benefício de suas estruturas e formas de poder. É na modernidade também que nasce o que entendemos por classe trabalhadora e seus processos de luta, que envolve a cultura como elemento fundamental. Engels, em sua obra clássica A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra faz uma das mais importantes análises da época sobre o proletariado nascente. Ele aponta para o alastramento sem precedentes de técnicas industriais que desligaram os trabalhadores do campo e de suas atividades, jogando-os para as fileiras do nascente proletariado. Se antes os trabalhadores não mantinham relação de forte dependência com seus superiores, agora eles não se veem mais fora das relações de exploração contumaz da sua força de trabalho, indispensável. A superexploração do trabalho se dá apesar dos avanços científicos em diversos campos como a química, física e tecnologias em geral, o que gerou o aceleramento da produção do ferro, que consequentemente diminuiu distâncias construindo pontes, locomotivas e máquinas cada vez mais avançadas.

Sobre a natureza do capital, Virgínia Fontes, em Notas para o estudo do imperialismo contemporâneo: Marx, capital monetário e capital funcionante, afirma que o capital é muito mais do que o dinheiro. Trata-se de um dinheiro especial, que, segundo Virgínia, “se transforma em algo que produz mais dinheiro, ou seja, em capital.” A conversão de dinheiro em capital engloba toda a vida social onde a base fundamental é a exploração do trabalho. Uma das tarefas do que também denomina Meszáros como sociometabolismo do capital é destruir as formas de solidariedade entre os trabalhadores por meio de comportamentos e valores egoístas e competitivos.

Edgar Degas (Dançarinas no palco, 1889)

A modernidade é o período que empreende a transformação das relações de trabalho por meio da Revolução Industrial. Marx faz importante observação sobre este contexto em Manuscritos Econômico-Filosóficos em 1844, apontando para os baixos salários pagos pelos industriais aos trabalhadores, permitindo somente a reprodução da força de trabalho. Na Inglaterra, o salário era compatível com a existência de um animal, como apontava Smith. Poderíamos dizer que o mesmo acontece na década de 1930 no Brasil, com a implementação do salário mínimo, como ressalta Chico de Oliveira em Crítica à Razão Dualista, sendo as leis trabalhistas “um conjunto de medidas destinadas a instaurar um novo modo de acumulação”. Esse período, notadamente marcado pelas revoluções burguesas, fundamenta as bases do capitalismo, assim como sua jurisdição, como destaca Décio Saes em A Formação do Estado Burguês no Brasil, apontando para o elo da jurisdição burguesa ao funcionamento das relações de dominação capitalista. Em As Peculiaridades dos Ingleses, Thompson afirma que a industrialização fora fruto das luta de classes. A industrialização é uma condição da luta de classes. A modernidade, portanto, é o período em que a burguesia se afirma como classe hegemônica, defendendo os seus interesses, construindo suas instituições e aparatos de poder.

Dentro desse longo panorama histórico, questiona Raymond Williams: “quais são as relações entre arte e sociedade?” Ou poderíamos dizer entre cultura e sociedade. Para Williams, a cultura é o comum. Trata-se de uma práxis interativa. O lugar da cultura é a história, é o processo social, produção material entre os homens. Todo processo cultural é um processo político, logo é um processo comunicacional. A arte tem lugar central na dinâmica do capital que pressupõe a reprodução do sociometabolismo do capital. A cultura entra aí como elemento imprescindível à reprodução de determinados valores que, neste caso obedecendo aos valores do capital, tende quase sempre a sofrer uma série de modificações, adaptações, flexibilidades e por vezes regressão e conservadorismo. Por isso, como ressalta Williams: “Qualquer abordagem moderna para uma teoria marxista da cultura deve iniciar-se considerando a proposição de uma base determinante e de uma superestrutura determinada.”

Por mais que haja obviamente dinâmicas que escapam a um determinismo da organização econômica da sociedade burguesa, temos ainda como pressuposto a consciência forjada num determinado espaço temporal, onde se encontram determinada forma de relação de trabalho e sociabilidade que transcende a existência individual. Sobrepõe-se ao indivíduo todo um acúmulo social e histórico, que é determinante independentemente das vontades individuais. A produção artística se relaciona, portanto, de forma contraditória e dialética, ora avança, ora recua, no que diz respeito à sua, digamos, natureza enquanto expressão humana que possui um caráter notadamente questionador e independente, tema abordado também por Celso Frederico.

A cultura também se comporta de maneira distinta, pelo menos no que diz respeito à sua relação com a indústria cultural, em países de economias centrais e países de capitalismo dependente. Isso ocorre porque as diretrizes centrais da indústria cultural obedece à capacidade lucrativa de determinada produção e nesse caso sabemos que a valorização de determinadas produções são submetidas aos valores centrais do capital e suas economias centrais. As economias de capitalismo periférico estão historicamente atreladas a relações de dependência. Ruy Mauro Marini aponta, por exemplo, a superexploração do trabalho como força gritante aos interesses empreendidos pelo capital imperialista, o que também se relaciona intimamente com os golpes de Estado perpetrados em boa parte em países latino-americanos, o que encerrou o avanço nacional-democrático, relacionando os países ao desenvolvimento do capital estrangeiro. Ruy Mauro afirma que, no caso do estado contrainsurgente (1950), “o movimento revolucionário é visto como um vírus, um agente infiltrado de forma que provoca no organismo social um tumor, um câncer, que deve ser extirpado, eliminado, suprimido, aniquilado. Também se assemelha à doutrina fascista.”

Ele está pensando um momento histórico complicado, de intensas disputas entre dois blocos econômicos hegemônicos e com orientações políticas conflitantes, apesar de já neste momento do pós-guerra o chamado comunismo não representar uma ameaça ao capitalismo. Em notável contribuição, Francisco de Oliveira explica a diferença marcante entre as burguesias dos países imperialistas e das de economia dependente. Chico, em Crítica à Razão Dualista, explica que por razões estruturais não haverá no Brasil o rompimento total com o sistema, como se deu com a burguesia europeia nos períodos das revoluções burguesas, onde a ruptura se deu em todos os níveis e em todos os planos.

Aqui, as classes proprietárias rurais são parcialmente hegemônicas, no sentido de manter o controle das relações externas da economia, que lhes propiciava a manutenção do padrão de reprodução do capital adequado para o tipo de economia primário-exportadora. Com o colapso das relações externas, essa hegemonia desemboca no vácuo. (OLIVEIRA, 1981)

Nesse sentido, não seria nenhuma novidade pensar que as expressões culturais refletem no seu interior as mesmas contradições imperantes no campo social, notadamente cindido entre classes antagônicas. O cinema, a música, o teatro, etc., para além de expressar determinadas leituras por meio de uma expressão figurativa da realidade, como afirma Nildo Viana, reflete a defesa de um determinado conjunto de interesses, associando-se, portanto, a um determinado projeto de sociedade, quer queira, quer não. Celso Frederico, em seu livro Marx, Lukács: A Arte na Perspectiva Ontológica, promove este debate, começando por Hegel. Segundo o importante filósofo alemão, a arte tem um fundamento ontológico. Trata-se de uma manifestação que torna o Espírito consciente de seus interesses, diferenciando o homem da natureza. Para Feuerbach, a arte fornece a essência (o universal) e o sensível (o particular), possibilitando uma visão desalienada. Marx entende a arte como um desdobramento do trabalho, sendo trabalho e arte objetivações materiais e não-materiais que permitiram ao homem separar-se da natureza, aproveitando-a para os seus interesses vitais. No entanto, a arte possui leis próprias, precisando também de um aparato teórico específico para uma análise correta.

Em períodos de contradição extrema do capital há toda uma mobilização em torno da produção cultural, assim como no seu ataque, legitimando determinadas expressões enquanto outras são combatidas de forma veemente por meio da jurisdição e da criminalização generalizada. Esse é um fenômeno próprio das lutas de classes, que neste caso se reflete ou se reproduz no âmbito cultural. O cinema, por exemplo, como produção cultural significativa, virou alvo de acusações das mais diversas por apoiadores do governo federal e pelo próprio governo Bolsonaro, que fez questão de cortar verbas como forma primária de neutralizar determinadas produções enquanto, por outro lado, filmes com viés notadamente conservador foram alçados ao patamar do novo, do belo e do relevante, em contraposição ao cinema dito de esquerda (que na maioria das vezes não possui nenhuma qualidade revolucionária, mas que serve como uma espécie de espantalho que legitima o cinema conservador). Uma das tragédias resultantes desse projeto foi o incêndio da Cinemateca Brasileira em São Paulo.

Figuras como Josias Teófilo, que num passado recente não faria qualquer diferença na produção cinematográfica, transformam-se incrivelmente em importantes nomes do cinema. Na música temos também um fenômeno parecido. Se analisarmos expressões de resistência como é o caso do rap, notamos fundamentais transformações no que diz respeito às suas expressões e até mesmo valores. Os processos de mercantilização da cultura Hip Hop teve no rap sua expressão mais notável, a ponto também de surgir o rap conservador de direita, algo impensável antes. Essa adaptação, somente a título de exemplo, pode ser observada na recente entrevista que Mano Brown fez com o vereador da extrema-direita Fernando Holliday, do Partido Novo. Escrevi um breve texto sobre isso que está disponível aqui no Passa Palavra.

O caráter regressivo da arte dos últimos vinte anos diz respeito ao seu imobilismo frente à resolução de antigos problemas, já que em todo o período da modernidade ela esteve submetida a uma racionalidade instrumentalizada para o mercado, principalmente quando do advento e desenvolvimento da indústria cultural. Esses antigos problemas ao longo do processo de expansão do capital, da revolução tecnológica e da concentração de riqueza complexificaram-se, fazendo muitas vezes com que a reprodução das mesmas práticas com novas roupagens fosse a única tônica para os artistas e produtores em geral, fazendo apenas alguns ascender socialmente.

Edgar Degas (A cantora de luvas, 1878)

O caminho para a emancipação das produções artísticas deve ser pautado por práticas, concepções e teorias antagônicas às já desgastadas concepções liberais ou neoliberais, como as correntes reformistas e pós-modernas. Este é um problema que não está somente na ordem teórica. Apesar de ser imprescindível uma orientação estética e política coerente com as liberdades coletivas e individuais, há no interior das artes um contrassenso com relação a isso. Uma coisa são as contradições internas inerentes a toda e qualquer gregariedade ou experiência mútua; outra coisa é falsificar a teoria política como parte de uma estratégia perversa para a construção de carreiras meteóricas, que também nos serve como premissa básica para a totalidade das reflexões necessárias a uma arte que participe dos processos sociais ativa e propositivamente.

Por outro lado, são muitos os descaminhos da arte hodierna como, por exemplo, o ultraindividualismo dos produtores (ainda que por vezes contenha certa dose de uma proposta coletiva), a abissal alienação desses mesmos produtores com relação aos problemas sociais, os pequenos golpes resultados de uma perspectiva concorrencial, o ódio à crítica, a institucionalização das produções que muitas vezes resulta do cansaço, dos parcos resultados em meio a uma arte independente e em última instância a completa falência dos produtores que caem no esquecimento, acumulando problemas de todas as ordens. A morte desse amplo espectro da arte serve como manutenção de um status quo, tornando a arte uma expressão meramente conservadora.

A arte independente não é somente a arte precarizada, produzida com baixo orçamento. Se assim fosse, bastariam condições materiais adequadas como única condição para sua emancipação. Pelo contrário. O problema dessa arte está na ordem do dia, que por sua vez não se descola dos processos históricos. Ela é, portanto, uma arte engajada. Verdadeiramente engajada! Se se perde o seu norte, podemos simplesmente subtrair essa arte a uma questão meramente material, abrindo portas para apropriações e cooptações variadas. Os exemplos são tão vastos e conhecidos que nem precisaríamos elencá-los aqui.

Mas este imobilismo não se resume, obviamente, grosso modo, a uma espécie de preguiça dos músicos, atores, diretores, escritores e produtores em geral. Se assim fosse, não precisaríamos gastar tantos parágrafos sobre este assunto. Pode ser sim que haja uma falta de perspectiva que também não se resume somente aos artistas, mas a boa parte dos trabalhadores; mas isso é uma consequência nefasta de um sistema completamente despótico, alienante e altamente impositivo. Ele de certa forma ordena as produções e as demais expressões humanas de acordo com os seus próprios critérios, estabelecendo o que merece ou não ser visto como forma de controlar e extorquir dessa arte todo o seu potencial, transformando-a em mercadoria. Por isso, o imobilismo faz parte de um processo de má compreensão dessas relações que, mesmo tendo se tornado flexíveis, faz curvar ao desejo do capital tudo que é vivo, transformando o trabalho vivo em trabalho morto. Nessas condições, a emancipação da arte e do produtor é também um processo pedagógico que confronta a si próprio e ao outro, abrindo caminhos para sua liberdade.

É claro que neste caldo também há segmentos que pensam a superação do estado de coisas, não se conformando com a mera reforma do sistema, e tais produtores, seja de que campo for, da cultura ou da arte, também atuam como intelectuais que influenciam diretamente as disputas políticas de uma forma geral, pois há aí o fator mobilização ou, nos termos atuais, engajamento em torno de uma determinada causa. É importante ressaltar que todo grupo social têm categorias de intelectuais. Todos os homens são intelectuais, mas nem todos ocupam esta função na sociedade.

Compreender a função da cultura de uma forma geral está ligado a compreender as relações das expressões culturais com o contexto socioeconômico, assim como a construção de suas alternativas concretas diante do contraditório campo social notadamente demarcado por cisões e fissuras, que muitas vezes causam o distanciamento das mesmas expressões culturais a uma superação com relação ao conjunto de práticas dominantes. Nesse sentido é importante ressaltar a afirmação categórica de Thompson:

Classes não existem como categorias abstratas — platônicas —, mas apenas à medida que os homens vêm a desempenhar papéis determinados por objetivos de classe, sentindo-se pertencentes a classes, definindo seus interesses tanto entre si mesmos como contra outras classes.

De uma forma geral, produzir arte está relacionado normalmente ao entretenimento. A relação da arte como mercadoria fecha todo um circuito de aproveitamento do capital de toda e qualquer expressão humana, sem nunca tergiversar os seus objetivos. A arte como mercadoria funciona como uma espécie de propaganda de todo o sociometabolismo do capital, naturalizando essas relações, inclusive no campo psicológico, forjando uma psicologia social das massas favorável à corroboração de um determinado estado de coisas. Tem sido tão rápido esse processo de cooptação que boa parte das produções são gestadas sob uma determinada ética comum ao mundo mercantil. São mercadorias desde o nível primário da produção. Não podemos excluir, por isso, veicular todo o conjunto das produções artísticas ao amplo público que só pode ser alcançado mediante determinados critérios, como o uso de determinadas ferramentas ou acesso a determinados meios. Como coloca Coelho (2006), “a uma realidade nova devem corresponder meios de expressá-la.” Isso, no final das contas, qualifica ou não uma determinada produção ser, por exemplo, reconhecida.

A arte, no entanto, não se resume, obviamente, somente a distrair as pessoas das mazelas da vida cotidiana. Ela é trabalho, portanto demanda tempo, acúmulo, experiência, suprindo a sociedade não só dos meios materiais para se produzir a vida, mas também forja o espírito do campo social, integrando, convergindo e estimulando as sociabilidades, portanto fazendo-as avançar. O caráter festivo está também composto nesse movimento histórico e social que inclusive está relacionado aos processos emancipatórios. Ainda assim responde às contradições e virtudes do seu tempo.

Poucas são as formas de sobreviver no capitalismo. Para aquele que não possui acúmulo financeiro não resta outra opção a não ser vender a sua força de trabalho, ainda assim sob o risco de não conseguir fazê-lo, haja vista a enorme abundância de trabalhadores na sociedade mercantil. Com relação à arte não é diferente. O sujeito busca e é também (por que não?) convencido de que para sua sobrevivência lhe resta vender sua arte, entregando muitas vezes a sua própria alma. A arte então passa por todo um processo de coisificação. Ela é destituída do seu valor originário. Não que não sobre mais nada de uma determinada produção quando esta é reificada. Mas a partir desse novo lugar ela passa a servir também a outros interesses. Mora talvez aí uma das maiores questões a ser enfrentada com frieza: de que forma se relacionar com o mercado? Se se abstém totalmente o sujeito, praticamente inexiste. Por outro lado sabemos que tal relação (dependendo do caráter vendável de uma determinada produção) é na maioria das vezes determinante para a completa degradação de uma determinada produção. Com relação a isso o que não falta é exemplos. Mas talvez esse suposto equilíbrio seja uma falsa questão, já que o artista é um trabalhador e necessariamente está submetido a um determinado nível de exploração, sendo, portanto, necessário algum tipo de organização.

Esse é um controle funcional ao aparato mercadológico, muito por conta da sua necessidade de vender e reiterar os seus próprios parâmetros. É nesse ponto que a questão central se complexifica, pois o que está colocado aí é justamente a construção de um modo de produção e distribuição antagônico ao que está colocado historicamente pelo mercado da produção cultural. E isso, por outro lado, não exclui algum tipo de relação com o mercado. É claro que nesse ponto há inserções que se tornam inviáveis, até porque existem determinados espaços que só o fato de ocuparmos já estamos afirmando um determinado posicionamento político. Ir a qualquer programa da Jovem Pan, por exemplo, atesta um descomprometimento com a verdade. Para que nos darmos ao desprazer de ocupar um ninho de cobras?

A construção de um modelo antagônico (e não somente “alternativo”) certamente conflitará com o mercado e é justamente essa a sua função. Não só a ausência de competitividade estará colocada, mas a expansão da própria produção artística, fazendo com que a arte ocupe um lugar muito mais amplo na sociedade de uma forma geral, pois ela não servirá como mero entretenimento banal para que se esqueçam os problemas do dia a dia. A arte tem um papel muito mais amplo na vida dos seres humanos. O capitalismo dispensa boa parte dessas atribuições por não ser interessante ao seu modo de funcionamento.

Edgar Degas (A aula de dança, 1874)

A questão da arte no contemporâneo tem desdobramentos outros, como a mudança significativa nos meios de produção e distribuição dessa arte, seja musical, teatral, cinematográfica ou literária, influenciando, portanto, decisivamente nos rumos das produções. Devemos, em primeiro lugar, analisar esmiuçadamente a validade do discurso da democratização dos acessos aos novos meios de produção da arte, pois tudo isso está intimamente relacionado com as novas dinâmicas do sistema capitalista, que de forma alguma deixou de operar contra sua natureza altamente eficaz e exploratória. No caso mais específico da indústria cultural, esta que antes formava grandes monopólios, quando entra em crise já nos idos da década de 90, começa a esboçar também novos contornos, nunca deixando de existir. A apropriação de velhos métodos e teorias, notadamente práticas liberais, consumaram-se fundamentalmente na arte independente, underground. Os empresários não se resumem mais aos grandes capitalistas da arte. São agora os próprios artistas que desempenham essa função.

Essa nova função dos artistas em geral foi desencadeada por diversos fatores compreensíveis. Por um lado, a precariedade permanente da maioria desses setores os obriga a um sem número de concessões a priori, questões rejeitadas manifestas nas produções. Isso quer dizer que muitas vezes há uma prática e um discurso em conflito, aparentemente resolvidos com a concretização de alguns poucos a uma ascensão social. O discurso da liberdade, crítica reiterada ao sistema, livre associação e até mesmo autogestão são presentes, em contraste com a prática que é centralizadora, portanto altamente arbitrária, punitiva e que desencadeia diversas formas de dominação. Assim, pode-se, por exemplo, se produzir um projeto de teatro sobre a Comuna de Paris, empenhando métodos completamente avessos daquilo mesmo que se propõe abordar, esvaziando e instrumentalizando todo o sentido histórico e social daquilo que se fala. Ou pode-se forjar um grupo de rap com pautas identitárias, mas que não fere em nada os princípios do capital, criando novas formas de assujeitamento.

Por outro lado, a busca pela resolução da precariedade como questão central aos produtores da arte perpassou obrigatoriamente muito mais a conformação com relação às estruturas normativas de dominação do que com o seu rompimento, obnubilando os anseios verdadeiros da arte enquanto prática social de resistência e transformação acoplada às lutas revolucionárias. É claro que esse processo se deu também pelo abandono das lutas radicais com pretensões revolucionárias que, por sua vez, passam por intenso processo de criminalização e cooptação das lutas. Se não se tem um referencial à altura, a arte passa a andar a reboque de pretensões alheias às suas aspirações desde sua gênese.

O que observamos nesse longo processo é a complexificação da mercantilização da arte, elemento ainda bastante mal compreendido, o que acabou por cimentar a relação alienante entre o capital e a arte produzida no contemporâneo. Essa relação tornou-se o novo elemento sine qua non à produção artística, influenciando diretamente na relação entre os artistas que se distinguem entre aqueles que têm mais popularidade e inserção em determinados âmbitos sociais e os invisíveis que por sua vez anseiam desesperadamente algum tipo de reconhecimento e acabam por se submeter aos primeiros sob o título de promessas e ilusões. O artista que tem mais know-how não necessariamente é o mais rico, mas sim o que automaticamente se submete às relações majoritárias, contemplando o mercado e sua dinâmica prometendo novas almas ao seu calabouço. Há evidentemente os que de fato angariam recursos e prestígio, que acabam por se consumar definitivamente no hall das celebridades e principais referenciais da arte. Estes, por sua vez, são altamente seletivos em suas relações, sendo tudo meticulosamente pensado. Há, nessa lógica, os autorizados e desautorizados. Uma espécie de ideologia da competência.

Por mais que haja evidente imposição da lógica capitalista sobre as produções artísticas, existe também o alheamento desses produtores com questões sociais e históricas, do ponto de vista do comprometimento dessa arte produzida com o social. Então também falamos de escolhas e condutas arquitetadas para a reprodução em diferentes escalas do bom funcionamento das redes de mercado e dominação de classe. Por mais que o produtor busque evidenciar aspectos positivos da luta contra todo um conjunto de opressões, escapa aos artistas algo fundamental, que é a sua autonomia, convertendo essa liberdade em liberdade de mercado. Essa flexibilidade acaba por contemplar tanto o capital (na verdade, este é o maior beneficiado) quanto as pautas de uma cena independente. A flexibilidade, não podemos deixar de salientar, é elemento fundamental para a própria sobrevivência do capital.

Há um debate muito pouco profícuo sobre a valia do termo artista. Para alguns seria algo demasiadamente amplo, não definindo nada em especial. Um termo puramente genérico. E afinal de contas qualquer um pode ser artista, bastando de autoproclamar como tal. Numa sociedade organizada em distinções hierárquicas há músicos, poetas, cineastas, pintores, etc., e mesmo dentro dessas categorias há ainda mais subdivisões específicas sobre cada campo. O artista, portanto, tornou-se dispensável. A modernidade criou os profissionais da arte que funcionam a partir da divisão social do trabalho. Neste processo tudo é mercadoria. Tudo é espetáculo. A produção artística está pautada na competitividade do mercado. É resultado desse processo produções enviesadas ao consumo rápido, banalizado e flexível. Desaparecem neste processo também as distinções entre mainstream e underground, já que ambos aspiram ao sucesso imediato da indústria, que se integrou ao nível primário da produção. A forma perfeita de cooptação é conservar a identidade do produto que passa a ser especulado como forma de agregar ainda mais valor, criando os novos espantalhos e caricaturas da produção artística, seja musical, teatral, literária, cinematográfica, etc.

O paradoxo da nova arte caricata é que ela resguarda alguns elementos de “revolta contra o sistema”, sem o qual jamais levantaria qualquer interesse do capital. Os nichos de mercado, a revolta domesticada e inofensiva, a identidade e a indistinção com outras forças sociais (pretende-se sempre agradar aos mais variados espectros políticos) estruturam boa parte das produções, notadamente obras pensadas a partir desse conjunto de determinações inculcadas por músicos, produtores, atores, diretores, etc. Essa é a base da arte no contemporâneo.

O termo “artista” não seria meramente uma escapatória para se propor algo diferente da nossa óbvia observação sobre as produções artísticas mercantilizadas. Ele traz, por exemplo, a ideia de um conjunto de todos esses campos espalhados que possuem questões comuns. Não é um retorno ao idílico onde em algum tempo tudo fazia mais sentido, sendo para nós uma tarefa desesperada de negar o presente, torcendo o pescoço ao passado. A arte de um modo geral é força de expressão, linguagem, criação, comunicação e expansividade. Ela cria o que denominamos cultura, que é o resultado de múltiplas expressões subjetivas e sociais. Nesse sentido o artista integra a sociedade, sendo parte constitutiva do contexto social geral. A arte e o artista são uma necessidade social. Para Frederico (2006), “o caráter atemporal da filosofia, e também da arte, explica-se pelo fato de que em tais atividades se exprimem os grandes problemas que envolvem o homem, suas relações com outros homens e com o mundo exterior.”

O estágio primário da arte é a sua expressão subjetiva, que pulsa de todas as formas com várias intensidades e direções. Esse é o primeiro despertar da produção, da expressão humana viva, presente. O desenvolvimento de toda e qualquer expressão depende disso e se integra ao contexto social geral; na verdade toda expressão artística só pode existir como tal porque relaciona dialeticamente o subjetivo e a vida material concreta. É impossível, portanto, uma arte meramente subjetiva que não guarde qualquer relação com o meio social. Isso nos leva a pensar dois pontos sobre a arte (que certamente se desdobrará em muitos outros): a arte como linguagem humana resultado da mais pura necessidade de se expressar e a arte como elemento social, força necessária aos processos emancipatórios ao longo da história. É claro que nesses processos há a arte como regressão, como é o caso da arte nazista e outras vertentes conservadoras. Pensemos, no entanto, a arte engajada, componente dos processos de luta contra o Estado e o capital.

Em primeiro lugar, toda expressão artística está sujeita às relações capitalistas. O indivíduo ou grupo que se propõe a materializar suas produções artísticas, seja produzindo uma peça de teatro ou um espetáculo musical, precisará de muito mais que força de vontade ou organização. É preciso ter acesso a um sem número de bens materiais, e, sobretudo, dinheiro. Isso por si só funciona como mecanismo eficaz de exclusão de uma gama de produtores que ou não conseguem se adaptar a essa dinâmica ou produzem para nichos muito específicos, muitas vezes por um período curto de tempo. Isso de forma alguma quer dizer que o capitalismo é insuperável.

Estar imerso às relações de mercado não atesta por si só a nossa escravidão. Por outro lado, essa relação é determinante para a arte e, obviamente, para o produtor que, dependendo do seu acúmulo, status e condição material consegue maior popularidade. No que diz respeito a inevitabilidade das relações de mercado (o que consequentemente expõe a arte a tais relações) é mais que necessário a compreensão crítica do meio social, influenciando também sobre a arte. Essa compreensão mais acertada do sistema capitalista fincará a arte diante do seu maior inimigo. Em resumo, mesmo indivíduos, coletivos, organizações e movimentos com uma orientação revolucionária em alguma medida se relacionam com o mercado. O diferencial destes é que tal relação (inevitável) não é determinante para sua degeneração.

Edgar Degas (Duas dançarinas no banco, 1900)

Como o capitalismo interfere na arte? Para responder a esta questão, temos que primeiro nos esclarecer, ainda que em linhas gerais, sobre a natureza do capitalismo e que seu caráter predatório é tão voraz contra a arte como é contra a vitalidade do trabalho humano sob qualquer esfera. Para além de mera expressão subjetiva, arte é trabalho, é resultado de elaborações, do manuseio e técnicas e que naturalmente requer empenho e tempo. Requer, como já foi colocado, condições materiais. Dessa forma tem-se o desenvolvimento da arte e suas múltiplas expressões. Como expressão precisa e determinante ao meio social, a arte sofre (das mais variadas formas) interferência desse meio. No capitalismo as relações são intermediadas pelas trocas mercantis, pelo dinheiro, o que determina a inclusão ou exclusão de determinadas frações sociais.

O mundo artístico é regido pela mesma dinâmica do meio social, reproduzindo no seu interior as mesmas contradições da sociedade burguesa. A arte como expressão transgressora, apesar de diferenciar-se enormemente das mesquinharias do mundo dos negócios e cifras incomuns, acaba por forjar relações que reiteram aquilo que artistas projetam no campo das ideias, como valores e práticas a ser rejeitados. O meio artístico é multifacetado; há muitas variantes e campos. No entanto, o que atravessa cada campo ou gregariedade artística (ou “cena”) são forças anti-artísticas, como a burocracia, o status, know-how, popularidade exacerbada, o que formam celebridades. As celebridades são produtos da arte espetaculosa, que centra toda atenção em pequenas lideranças artísticas que na maioria das vezes não guardam qualquer valor singular ou de genialidade (essa é uma qualidade muito reivindicada, apesar de ser uma bobagem). Ainda que sejam talentosos, na medida em que se criam líderes e celebridades, esvai-se pela tangente um batalhão de experiências desconhecidas e valorosas. As celebridades, portanto, só podem existir em detrimento de toda uma gama de novos artistas, coletivos e indivíduos, que certamente contribuem muito mais para o desenvolvimento das produções, mas que permanecem no anonimato. Lembremos o caso dos músicos citados no início. Não se trata aqui de especular sobre algo demasiadamente vago, mas de abrir os olhos para o que acontece ao nosso redor, que de tão banal tornou-se invisível.

Ao passo que existe um sem número de indivíduos e coletivos que pensam as relações livres das imposições do mercado, e consequentemente das relações capitalistas, há enorme dificuldade e desesperança no que diz respeito a garantir a manutenção dessa luta por contradições internas ou pela irrefreável ofensiva dos valores burgueses. O que se projeta como consequência desse jogo desleal é a banalização da arte, assim como a banalização das relações entre os artistas. A hegemonia, por sua vez, tem muitas vezes novas caras, já que as máscaras desgastadas do passado já foram demasiadamente exploradas, tornando-se uma espécie de totem, de figuras supra-humanas, onipresentes, inquestionáveis, inteligentes, excepcionais, notáveis. Em outras palavras: autoridades que fazem parte de uma espécie de santuário dos deuses da música, da televisão, cinema, etc. Passa por eles a aprovação ou sentenciamento daquele que pretende ascender na hierarquia artística. Esse, portanto, é o papel das celebridades, que servem basicamente para controlar, cercear e garantir a manutenção do status quo e a consequente estagnação da arte.

Caberia ressaltar aqui a cena da música de Niterói, mais especificamente, genericamente dizendo, a MPB ou o lado B dessa MPB. Músicos, cantores ou produtores estão envolvidos em seus projetos muitos há mais de uma década, o que de alguma forma ajuda a afirmar o artista e o seu trabalho, claro. A dificuldade que encontram são sempre as mesmas: falta de lugar para apresentações, sobretudo com remuneração, falta de organização, precariedade na gravação, produção e distribuição e uma falta de perspectiva generalizada. Niterói é conhecida por seus grandes talentos na música. De tempos em tempos a prefeitura libera algum recurso bastante limitado e, quando há alguma remuneração, esta demora meses até chegar ao artista. Nos espaços que antes movimentavam alguma cena como o antigo espaço da Cantareira, UFF com eventos, festas e saraus organizados pelos estudantes e o Convés, ou não se produz mais nada ou há apenas festas para arrecadar dinheiro para os organizadores. Os espaços públicos como a Cantareira muito raramente acontece algo. A principal praça de Niterói se resume a apenas um espaço de encontros e curtição casual. A batalha de rima é o único evento que acontece regularmente. Há pouquíssimas organizações e coletividades. Os que existem passam por questões como a falta de recursos e a fragilidade de sua organização interna. Os músicos buscam se associar de alguma forma na busca por burlar essas condições que os fragilizam: a falta de organização e precariedade acaba gerando uma completa falta de perspectiva apesar do sobretrabalho comum, o que muitas vezes é compensado pelo uso inescrupuloso de drogas como o álcool, tabaco, maconha, cocaína e ácidos. Muitos músicos infelizmente estão nesse buraco e acabam por se afundar coletivamente também. Criticar esse aspecto decadente muitas vezes é visto como “moralismo”.

Os que possuem alguma outra fonte de renda conseguem burlar a desilusão, colocando a música em segundo plano, priorizando suas vidas burocráticas, pois o exemplo dos colegas desencoraja-os ainda mais. Mas o principal problema é a falta de perspectiva que os afunda num individualismo improdutivo e mesquinho que funciona como mecanismo de sobrevivência em meio a tanta escassez. O individualismo neste caso não é algo assim tão deliberado até porque a falta de um esclarecimento social entre os músicos é notória. A falta de escolaridade é gritante; isso os leva a crer que somente a música resolverá suas questões, o que não passa de um mito ou simplesmente ingenuidade. Dessa forma qualquer organização programática ou debate no campo das ideias está impossibilitado.

Em meio a esse caldo, alguns pouquíssimos conseguem algum tipo de visibilidade, construindo artificialmente nomes destacados na cena da música. Estes passam a não mais se relacionar com a base da cena musical, a não ser de forma bastante utilitária e profissional, construindo a ideia de que os que têm mais know-how são os que dão “oportunidade” aos desconhecidos, solidificando assim o status do primeiro. De uma forma geral, a perspectiva mais comum é o carreirismo. Investe-se nas carreiras e não nas coletividades, gerando para alguns poucos a possibilidade de lucro. São o que denominamos “micro-celebridades”, que passam a acreditar na possibilidade da fama como alternativa factível, ainda que isso não passe de mera alucinação. A péssima compreensão da realidade aliada a um individualismo endêmico reproduz de forma indefinida os fetiches da sociedade burguesa, suas banalidades e ilusões, o que gera profundo esvaziamento da arte. Por isso o que se percebe na cena musical é o sentimento de competição, ainda que dissimulado.

As relações, portanto, possuem pouca ou nenhuma verdade, se resumindo a relações instrumentalizadas. É bastante comum e perceptível também a completa falta de disposição para enfrentar todo esse conjunto de contradições, imperando a recusa ao debate, resultado da falta de escolaridade, como já ressaltado, mas também da defesa intransigente e apaixonada de interesses próprios. Por exemplo, se se discorda e se expõe determinadas contradições, as relações são facilmente comprometidas. A disposição aos embates é zero. Aquele que é criticado geralmente não admite o questionamento pelo fato de se expor a vergonha alheia, transformando aquele que critica em ameaça e potencial inimigo. Isso é mais comum do que podemos imaginar ou relatar aqui. Essa é a norma nas relações no meio artístico. A crítica é absolutamente mal vista e evitada como forma de manter as relações de dominação intocáveis. Não se trata meramente de “ego inflado”, como se costuma dizer, mas sim de um projeto muito bem urdido. Ou seja, se o meio artístico torna-se refém das relações fetichizadas, abandona-se por completo toda e qualquer tentativa de dar novos rumos (ou rumos antagônicos) à produção artística e às relações entre os produtores. Dessa forma se reverencia o mesmo, ocultando o novo como forma de corroborar o status quo da arte caricata, reproduzindo-se, por exemplo, o compadrismo, o espírito altamente corporativo, a instrumentalização das relações, o individualismo exacerbado, reiterando a defesa intransigente de interesses particulares, a competição e consequente anulação do outro, a bajulação de qualquer hegemonia, ainda que absolutamente torpe e limitada, a sabotagem e consequente eliminação do outro, notadamente uma ameaça nas disputas de mercado.

Nota

[1] Cineasta, graduado em História (UFF), mestre em educação (FFP-UERJ).

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