Por Peter Guest
Em julho passado, Singh estava em uma corrida tarde da noite, correndo através de Mumbai para entregar um bolo de mousse de chocolate a 7 quilômetros de distância, quando um motorista bêbado em uma scooter o atingiu por trás. Ele safou-se apenas com alguns arranhões e torções, mas a sua moto acabou destruída. O custo para consertá-la – 14.000 rúpias ($189) – é quase o que ele leva para casa em um mês trabalhando para a Zomato, um aplicativo indiano de comida e compras de supermercado. No último mês, ele tem feito um conserto de cada vez, sempre que consegue juntar algum dinheiro.
Singh, na faixa dos 40 anos, fala frases longas e fluidas repletas de referências literárias e humor fatalista. Ele começou a fazer entregas na Zomato em 2020, depois de lutar para encontrar um emprego no reduzido mercado de trabalho da Índia. “Pesquisei no Google ‘empregos que consigo encontrar hoje’”, disse ao Rest of World. “E a entrega de comida apareceu…. Foi o trabalho mais fácil que já consegui na minha vida.”
Uma hora depois de se inscrever, ele já estava entregando pedidos. Nas primeiras semanas, parecia dinheiro fácil — ele estava rumando para ganhar cerca de 350 dólares em um mês, dentro do que havia sido prometido pelo app e cerca do dobro do salário médio mensal na Índia.
Mas aí os pedidos começaram a diminuir. Os entregadores eram direcionados para “zonas vermelhas” – áreas onde deveria haver um monte de pedidos – mas não havia nenhum trabalho lá. Eles então seriam enviados para outra zona vermelha, gastando tempo e combustível por conta própria. Singh tinha que trabalhar mais e mais tempo para ganhar dinheiro suficiente, muitas vezes pedalando por 12 horas ou mais por dia, e a tecnologia que o levava de um trabalho para o outro parecia cada vez mais intrusiva.
Sempre que o aplicativo decidia que ele estava atrasado, seu telefone tocava, e uma voz automática lhe dizia para ir mais rápido ou então sofreria uma penalidade. Para compensar o tempo, ele arriscava-se subindo uma rua de sentido único ou furando um sinal vermelho. Durante os momentos mais parados, o aplicativo mostrava vídeos dizendo como agradar os clientes sorrindo e curvando-se. Às vezes, esses vídeos avisavam aos entregadores para não falar com a mídia, e é por isso que Singh pediu para ser identificado apenas por seu sobrenome, por medo de ser banido do aplicativo.
“Você é um número, quer goste ou não”, disse Singh, descrevendo a exaustão e ansiedade que vêm ao trabalhar para um algoritmo cujas decisões — quem recebe cada trabalho, quem é suspenso, quem é multado ou recompensado — muitas vezes parecem arbitrárias. “Você é um número, você é uma identificação, você é um ícone em um scooter que se move em torno de um mapa… O aplicativo não te conhece. O aplicativo não te ouve.”
A Zomato não respondeu a um pedido por comentários.
Com sua moto atualmente em péssimo estado, Singh estava na lona durante o último mês. Isto lhe deu tempo para refletir sobre a sua situação e a dos seus colegas. Ele já tinha criado uma conta no Twitter, @DeliveryBhoy, para registrar suas experiências na estrada. A partir de agosto, ele começou a compartilhar imagens de dentro do aplicativo da Zomato, mostrando os pagamentos pequenos, metas inatingíveis, e as deduções arbitrárias com que os entregadores têm que lidar. Sua mensagem — de que o trabalho de plataforma é duro, inseguro, mal pago e não valorizado – ressoou, não apenas entre os companheiros de entrega na Índia, mas também entre os trabalhadores de plataforma em todo o mundo.
Sua conta tem apenas cerca de 4.600 seguidores, mas já foi citada por jornais, acadêmicos e ativistas em todo o mundo. Em agosto, Singh ligou-se ao Gig Workers Collective, que faz campanhas pelos direitos dos trabalhadores de plataformas, principalmente nos Estados Unidos. Através do coletivo, Singh falou ao telefone com Willy Solis, um “comprador” da Shipt no Texas, uma empresa de entrega de compras de supermercado, e uma figura proeminente no movimento dos trabalhadores da plataforma nos EUA. “Ao falar com ele, ouvi a nossa história”, disse Solis ao Rest of World.
Para entender como o trabalho de plataforma é vivenciado em todo o mundo, Rest of World, em parceria com a empresa de pesquisa Premise, entrevistou mais de 4.900 trabalhadores de plataformas em 15 países. Combinamos suas respostas com dados compilados por agências globais sobre trabalho e pesquisadores acadêmicos, juntamente com entrevistas aprofundadas com trabalhadores de plataforma na África, América Latina, Ásia e Europa Oriental. Também nos aproximamos de seis das maiores empresas de plataforma operando globalmente, nenhuma das quais concordou em dar entrevistas. Os dados mostram que, enquanto a experiência do trabalho em plataforma é muito local e assume características das sociedades e economias em que opera, ela também é universal. Os trabalhadores de plataforma, estejam eles nos EUA ou Nigéria, Indonésia ou Etiópia, estão todos lutando contra um conjunto comum de desafios: insegurança, ansiedade, baixos salários e altos custos.
Enquanto a natureza do trabalho de plataforma significa que a força de trabalho é atomizada e dividida – e as empresas de plataforma muitas vezes se recusam a reconhecer os grupos de trabalhadores e os sindicatos — a experiência comum de trabalho precário e muitas vezes perigoso ajudou a criar um movimento genuíno e global que está enfrentando as empresas de tecnologia.
“Há tanta comunalidade, e isso transcende culturas e transcende línguas”, disse Solis. “Estamos todos tentando descobrir uma forma de lutar coletivamente.”
Após sair do exército ucraniano em 2019, Pavlo, que pediu para ser identificado apenas pelo seu primeiro nome, passou os meses de inverno na Polônia trabalhando em armazéns e fazendo entregas para a Uber Eats em seu tempo livre. À medida em que a pandemia piorou, ele voltou para casa, mas teve dificuldades para encontrar trabalho. Acabou indo parar na capital, Kiev, e, por precisar de dinheiro, inscreveu-se na Uber Eats novamente. Afinal de contas, ele pensou, já tinha pago a bag de entregas mesmo. Quando a Uber Eats se retirou repentinamente do mercado ucraniano em junho de 2020, ele foi trabalhar para a sua empresa rival, Bolt.
Muitos ex-soldados ucranianos acabam entregando para as plataformas, disse Pavlo ao Rest of World, porque não pagam o transporte público. Isso significa que eles podem se inscrever para entregar a pé, sem ter que comprar ou alugar uma moto, e, em seguida, ir de ônibus em vez disso. E como a maioria das empresas de plataformas não reporta às autoridades quem trabalha para elas, os veteranos também podem continuar recebendo seguro-desemprego.
As plataformas de entrega prosperaram na informalidade pay-to-play da economia ucraniana. Quando Pavlo precisou de um certificado de saúde para trabalhar na Bolt, os centros de saúde estavam fechados devido à pandemia. Então ele comprou um online. As plataformas, disse ele, raramente pedem documentos, e se o fazem, é fácil obter falsificações. Alguns entregadores não têm carteira de motorista, e Rest of World ouviu de vários motoristas que é comum as contas serem negociadas por aí, de modo que pessoas sem documentação, menores de idade, e entregadores que foram banidos das plataformas possam continuar trabalhando. “Devia ser contra a lei”, disse Pavlo. “Mas com a nossa terrível situação econômica, as pessoas estão basicamente sobrevivendo graças ao trabalho para as plataformas, então o que você pode fazer?”.
Um porta-voz da Bolt disse: “A Bolt verifica a identificação e a capacidade legal de conduzir de todos os entregadores da Bolt. Qualquer caso confirmado de um condutor que permita que outras pessoas utilizem a sua conta acarreta um bloqueio permanente da sua conta e pode levar a uma ação judicial.”
O trabalho em plataformas, que muitas vezes é caracterizado como trabalho em tempo parcial, flexível, está cada vez mais preenchendo as lacunas deixadas por um trabalho mais estável. Dos trabalhadores de plataformas entrevistados globalmente por Rest of World, mais da metade disse que trabalhar para as plataformas compõe a maioria, ou a totalidade, de sua renda.
O trabalho pode ser exigente. Na Ucrânia, Pavlo, que usa uma bicicleta ao invés de uma moto, tem que lidar com as colinas íngremes de Kiev. A Bolt compensa os entregadores pelas distâncias que percorrem, ao contrário de suas concorrentes, mas não leva em conta a inclinação. “O aplicativo acha que você está sempre pronto para ir, que não está cansado”, disse ele. Os turnos de trabalho de onze ou doze horas são comuns, e alguns entregadores foram descobertos usando anfetaminas, possivelmente para ficarem acordados. Acidentes de trânsito envolvendo entregadores são comuns, e [por isso] aconteceram várias mortes. Durante a primeira onda de Covid-19 na Ucrânia, as plataformas ofereceram máscaras para os pilotos. No entanto, eles tiveram que ir até a sede das empresas para buscá-las, e houveram poucos exames de saúde. Pavlo foi infectado pelo vírus no verão de 2020 e passou duas semanas em isolamento autoimposto. Outros continuaram a fazer entregas. “A única coisa que nos ajudava era uma máscara e talvez xarope para a tosse”, disse ele.
O governo ucraniano vem lutando para regular as empresas de plataforma. Desde 2014, a agitação política, a anexação da Crimeia pela Rússia, uma guerra em curso com separatistas apoiados pela Rússia no leste, e a pandemia devastaram a economia do país. Apesar da precaridade que está no âmago do trabalho em plataformas, ele é visto como uma forma de milhares de pessoas obterem pelo menos algum rendimento em um momento em que os empregadores tradicionais não estão contratando. “Eu diria que essas empresas realmente se beneficiaram dessa vulnerabilidade, e dessa instabilidade que tem sido parte do mercado de trabalho na Ucrânia, especialmente quando a pandemia atingiu”, disse Svitlana Iukhymovych, uma ativista do Labor Initiatives, um grupo que defende os direitos dos trabalhadores.
Globalmente, as plataformas de transporte e de entrega de alimentos e compras estão bem adaptadas ao stress social. Quando elas se estabelecem em um mercado, seu modelo permite que elas ampliem quase infinitamente sua força de trabalho sem aumentar drasticamente os custos. Os trabalhadores pagam por seus veículos, dados movéis, combustível, e muitas vezes seguro também. Eles normalmente não são pagos quando não estão ativamente carregando um passageiro ou pacote. Enquanto as empresas investiram bilhões em tecnologia e em subsídios para trazer os usuários para suas plataformas, são seus entregadores e motoristas que na verdade estão pagando para fazê-las crescer nas ruas – e carregando muitos riscos se a demanda não corresponde à oferta.
Também é do interesse das empresas de plataforma criar uma oferta excessiva de entregadores ou motoristas. Ter mais entregadores garante às plataformas mais poder em relação aos preços, reduzindo os custos para os consumidores. Com uma abundância de trabalhadores, as plataformas podem manipular a oferta e a procura em um nível granular, inundando uma área — as zonas vermelhas de que Singh falou na Índia — com entregadores ou motoristas, criando com precisão escassez para seus parceiros, obrigando-os a fazer trabalhos não rentáveis por algoritmos que os penalizam se não o fizerem. É este excesso de oferta que permite que as plataformas façam promessas cada vez mais ambiciosas aos clientes.
Na Índia, por exemplo, os principais serviços de entrega de compras estão envolvidos em uma corrida para reduzir ao máximo os prazos de entrega, com as principais plataformas agora prometendo itens essenciais nas portas dos consumidores em menos de 30 minutos. Isso é, em parte, permitido pela tecnologia – seus dados permitem antecipar a demanda e colocar produtos populares em centros de atendimento próximos aos clientes -, mas é possível somente com uma grande força de trabalho ociosa que pode ser posicionado com antecedência e obrigada a aceitar qualquer trabalho que aparecer. RedSeer, uma empresa indiana de pesquisa de economia da internet, prevê que o mercado de “comércio rápido” do país poderia crescer 15 vezes para chegar a 5 bilhões de dólares em 2025.
Esta dinâmica também explica porque, nos primeiros dias após a entrada de uma plataforma no mercado, a situação parece boa para todos. Um pequeno número de trabalhadores pode escolher seus trabalhos. Tarifas e taxas são subsidiadas pelas empresas, que estão dispostas a queimar o capital dos investidores para adentrar no mercado e construir sua base de usuários. À medida em que absorve mais e mais trabalho, o algoritmo tem mais peças para mover ao redor do tabuleiro. Pode tornar-se mais exigente com os seus trabalhadores. Os tempos de espera entre os pedidos crescem. Dado que muitos motoristas e entregadores alugam seus veículos, ou fizeram empréstimos para comprá-los, eles têm que trabalhar turnos cada vez mais longos.
Rest of World conversou com entregadores e motoristas na Ucrânia, África do Sul, Nigéria, Singapura e Índia e todos disseram o mesmo: eles tinham que estar online mais de 12 horas por dia, simplesmente para pagarem a dívida que contraíram para poder trabalhar para as plataformas. Eles não eram a maioria — nossa pesquisa mostra que muitos trabalham menos de oito horas por dia — mas em relação a uma hora de trabalho, 42% dos trabalhadores pesquisados ganharam menos do que o salário mínimo legal para aquele local.
Os trabalhadores muitas vezes têm dificuldade em questionar as empresas de plataforma sobre o seu salário. Os ganhos que elas prometem são teoricamente alcançáveis se eles puderem atingir metas específicas — um certo número de entregas, por exemplo —, mas essas metas são muitas vezes dependentes de fatores que estão fora do controle dos trabalhadores.
É difícil saber se as decisões do algoritmo são injustas ou não, mas é fácil para a plataforma dizer que os baixos ganhos de um trabalhador são sua própria culpa, porque eles não conseguiram alcançar alvos arbitrários, ou porque os clientes não os recompensaram através de classificações mais altas ou gorjetas. (51% dos entrevistados por Rest of World disse que ganha mais de metade dos seus pagamentos através de gratificações — dê gorjeta ao seu entregador.)
Rest of World encontrou um entregador ucraniano, Serhii, que apoiava ativamente o gerenciamento algorítmico e que foi inflexível ao dizer que aqueles que não conseguiam faturar nas plataformas eram simplesmente preguiçosos. Ele pilota por Kiev durante 12 horas por dia numa moto alugada, sem ter carteira de motorista.
Todo mundo que Pavlo conhecia que se queixava às plataformas sobre o seu salário e as suas condições recebeu a mesma resposta, “Você tem que estar grato por ter emprego quando outras pessoas perderam o seu devido à pandemia e ficar feliz pelo que você tem.”.
A pesquisa feita por Rest of World mostra que os sentimentos dos trabalhadores sobre as plataformas são complexos. Muitos — mais de 60% – disseram que estavam financeiramente satisfeitos. Mas, ao mesmo tempo, 62% disseram também que estavam frequentemente ansiosos e assustados no trabalho, com medo de acidentes, agressões, doenças, ou simplesmente de não ganharem dinheiro suficiente para cobrir seus custos. Mais de dois terços dos trabalhadores entrevistados por Rest of World disseram que querem sair em até um ano. Mais de um quarto disse estar planejando desistir dentro de um mês.
As tensões individuais e a insegurança enfrentada pelos trabalhadores podem ter um impacto social mais amplo à medida que o trabalho de plataforma se torna mais profundamente incorporado pelas economias. Enquanto o rótulo “a Uber de…” se tornou uma paródia, “plataformização” é uma característica padrão da tecnologia financiada pelos fundos de investimento. Enquanto isso, os pioneiros da indústria continuam a se expandir para novos setores — desde transporte até entrega de alimentos, de entrega de alimentos a compras de supermercado e logística – enquanto procuram maneiras de ampliar seu modelo.
Sem controle, é provável que tenham sucesso. As plataformas conseguiram superar adversários em indústrias que estão tentando transformar porque têm dinheiro em caixa e não estão limitadas pelas mesmas regras. Elas estão em uma posição diferente, alimentando-se dos mercados sem as obrigações sociais e regulatórias que constrangem o crescimento das empresas tradicionais. Crescem como a figueira mata pau, que se prende ao exterior das árvores, matando-as de fome e substituindo as raízes e galhos pelos seus.
Entretanto, as próprias facetas do trabalho que essas plataformas transformam – salários base, direitos dos trabalhadores — importam. “O emprego normal, que é um contrato entre uma empresa e um trabalhador, também resulta em um bem coletivo, pois contribui para a estabilidade global do consumo na economia, e também proporciona estabilidade para a vida das pessoas, de modo que elas são menos propensas a ter necessidade de apoio social”, o sociólogo Colin Crouch, professor emérito da Universidade de Warwick, que estudou as relações de trabalho por mais de meio século, disse para Rest of World. “Quando as empresas se mudam para o trabalho de plataforma, elas estão, na verdade, jogando os custos do que fazem para o público em geral… De certa forma, as empresas de plataforma são parasitárias.”.
A sociedade absorve os custos de maneiras diferentes, algumas muito visíveis, outras mais difíceis de se ver. Na Ucrânia, os salários que as plataformas pagam aos ex-soldados estão sendo silenciosamente subsidiados pelo seguro-desemprego fornecido pelo Estado e pelo transporte público. Na Índia, a Zomato e a sua plataforma de entrega rival, Swiggy, juntamente das empresas de transporte Uber e Ola, apelaram ao público para apoiar o financiamento coletivo pelo bem-estar dos seus trabalhadores durante os primeiros dias da pandemia.
Fugir das obrigações que a sociedade coloca sobre os empregadores também permite às plataformas evitar as políticas progressivas postas em prática para reduzir as desigualdades sistêmicas. Leis básicas anti-discriminação, como licença-maternidade e outras medidas criadas para reduzir a desigualdade, muitas vezes não se aplicam ao trabalho em plataformas. Algoritmos e sistemas opacos que dependem de classificações de clientes para determinar valores podem codificar e amplificar a desigualdade de raça, classe, e particularmente, de gênero.
Um relatório recente da Organização Internacional do Trabalho pesquisou trabalhadores de plataformas em diferentes locais em 2019 e 2020, e descobriu que, em cerca de uma dúzia de países, cerca de 9% dos entregadores e 5% dos motoristas são do sexo feminino, mostrando que existem inúmeras barreiras à entrada das mulheres. Cerca de um quarto dos entrevistados por Rest of World eram mulheres. Descobrimos que elas eram menos propensas a trabalhar em formas mais bem pagas do trabalho em plataformas, ganhavam menos globalmente do que seus colegas pelo mesmo trabalho, e estavam menos satisfeitas financeiramente.
“Ninguém pode esperar que os mercados de trabalho sejam justos para as pessoas, porque eles nunca foram”, disse Bama Athreya, pesquisadora da Fundação Laudes especializada em gênero, desigualdade e trabalho, para Rest of World. No entanto, ela disse, com as plataformas orientadas pela tecnologia, a discriminação “está sendo excessiva, e isso irá então resultar no que parecem ser formas de exploração qualitativamente novas.”
Isso pode, segundo Athreya e outros especialistas, ser mais agudo no Sul Global, onde muitas vezes as instituições e proteções para trabalhadores e minorias são mais fracos. Mesmo em mercados mais ricos as plataformas estão desfazendo progressos já alcançados. Peritos no mundo do trabalho que falaram com Rest of World foram unânimes em sua avaliação do trabalho de plataforma em sua manifestação atual: ao invés de uma reimaginação radical e progressiva do trabalho, possibilitada por novas tecnologias e enormes quantidades de dados, na verdade, há uma erosão de proteções e direitos sociais duramente conquistados durante décadas.
“A noção é de que este é o futuro”, disse Crouch. “Mas na verdade é um método muito antigo de trabalho. É só porque usa a internet que dá a impressão de que é sempre tão moderno.”
Para Zweli Ngwenya, uma mudança de política da Uber lhe custou seu carro. Ele dirige para o aplicativo em Joanesburgo há cinco anos e pegou dinheiro emprestado para comprar um sedan e poder dirigir como UberX, o serviço principal do app. Mas este ano, a Uber anunciou a expansão nacional da Uber Go, uma nova categoria mais barata. Os seus ganhos caíram. “Você nunca é consultado. Um dia você acorda e há algo novo… Você recebe uma mensagem no aplicativo ou um e-mail dizendo que essa coisa vai ser introduzida no início deste dia”, Ngwenya disse para Rest of World.
A mudança significava que ele não conseguia ganhar o suficiente para pagar o empréstimo do carro, gasolina, e dados móveis. No final, o carro foi tomado pelo banco. “Falando abertamente, muitos motoristas estão perdendo os carros”, disse ele. Ele agora está alugando um veículo para continuar dirigindo para a plataforma.
A África do Sul é um lugar difícil para ser um motorista da Uber. Os trabalhadores de lá contam inúmeras histórias sobre roubo de carros, assassinato, ataques com ácido. Alguns deles foram alvo de ataques pelas “máfias de taxistas” do país, outros são apenas um sintoma do rescaldo da violência urbana. Os motoristas acusaram a Uber de não conseguir protegê-los, colocando-os em perigo, pressionando-os para fazer mais corridas, e sendo lenta para ajudar a polícia no rastreio dos agressores. Quando as coisas dão errado, “a Uber não está em lugar nenhum”, disse Teresa Munchik, que dirige para a Uber e é uma organizadora de trabalhadores para O Movimento, um grupo de motoristas, de que Ngwenya também faz parte.
O movimento vem pressionando a empresa através de greves e protestos, mas tem sido difícil. “A Uber recusa-se absolutamente a reconhecer um grupo, especialmente qualquer tipo de associação. Não temos nenhum poder de negociação.” Muitos motoristas também são trabalhadores migrantes, que se sentem vulneráveis ou carecem de documentação adequada, deixando-os nervosos sobre a adesão aos protestos, acrescentou.
Como em outros lugares, a Uber disse aos motoristas que não negocia com grupos, apenas com indivíduos. “Mas, como indivíduo, sempre lhe será dito que se você não está feliz, pode sempre sair da plataforma”, disse Ngwenya.
Os motoristas ganharam algumas concessões – Ngwenya disse que o aplicativo agora permite que eles recusem corridas que achem inseguras, sem penalidade, e diz-lhes com antecedência se o usuário vai pagar em dinheiro ou cartão. “A maioria dos motoristas que eu conheço tentam evitar viagens [em dinheiro] vindas de áreas duvidosas… porque acreditamos que é difícil rastrear uma viagem em dinheiro, certo?” Ngwenya disse. Mas os ganhos ainda são baixos e imprevisíveis. Quando falou com Rest of World em agosto, Ngwenya estava dirigindo por sete horas e tinha feito apenas 200 rand ($13) até aquela hora.
No outro extremo do continente, em Lagos, o motorista da Uber Ayoade Ibrahim descreveu uma situação quase idêntica. Os motoristas rotineiramente são vítimas de roubos e assaltos. Muitos estão lutando para conseguir pagar as contas devido à diminuição das tarifas e aumento dos custos. Como na África do Sul, muitos motoristas nigerianos alugam seus veículos ou os compram em locação-venda, mas mesmo aqueles que possuem seus próprios veículos estão lutando para conseguirem pagar a gasolina e manutenção, obrigando-os a trabalhar mais horas e a assumir riscos maiores. “Como as pessoas não estão ganhando dinheiro suficiente, elas ficam sobrecarregadas e se envolvem em acidentes todos os dias.”
Ibrahim é um dos cofundadores do Sindicato Nacional de Profissionais de Transportes em Aplicativos [National Union of Professional App-Based Transport Workers] (NUPABW), que conta com cerca de 10 mil motoristas que trabalham para as empresas Uber e Bolt na Nigéria. Dez dos seus membros morreram nas estradas nos últimos meses, disse ele.
No final de agosto, a NUPABW ajudou a organizar três dias de manifestações em frente ao Parlamento nigeriano em Abuja, com um memorial para seus membros mortos. No entanto, fazer o governo ouvir suas preocupações é uma luta, disse Ibrahim. As empresas têm lobistas, relações-públicas e equipes de marketing. Na Nigéria, assim como na África do Sul, os grupos de motoristas estão preocupados com infiltrações por fura-greves e informantes corporativos.
A Uber não respondeu aos pedidos de comentário.
Os grupos de motoristas que falaram com Rest of World disseram que eles, assim como os próprios motoristas, estão com os bolsos vazios e que dinheiro tem muita influência na política. “Olha o que aconteceu na Califórnia. Eles gastaram 200 milhões de dólares para prender os motoristas com a Proposta 22”, disse Ibrahim, referindo-se a uma medida votada nesse estado dos EUA que isentava as empresas de aplicativos de transporte e entrega de ter que classificar seus trabalhadores como empregados. O projeto foi apoiado pelas empresas de tecnologia, incluindo Uber, Lyft e DoorDash. Trabalhadores e grupos trabalhistas disseram que, desde que a Proposta 22 passou em novembro de 2020, os ganhos dos trabalhadores de plataforma californianos caíram.
Mesmo que a Proposta 22 tenha sido mais tarde declarada inconstitucional, ela foi sentida como uma derrota para os trabalhadores de plataforma em todo o mundo. Não são os únicos. Na Ucrânia, o país onde o governo se autodefiniu como “favorável à tecnologia”, uma nova lei que efetivamente permite que as empresas se definam como plataformas tecnológicas e definam seus trabalhadores como prestadores de serviço foi aprovada. “Temos uma estranha mitologia na Ucrânia de que só o setor de Tecnologia da Informação (TI) pode trazer dinheiro”, disse George Sandul, diretor legal do Labor Initiatives.
A atomização da força de trabalho global sob as empresas de plataforma tornou difícil para os trabalhadores resistirem. A maioria das empresas insiste que sua relação é sempre com indivíduos — a força de trabalho não é um único organismo, mas um mercado aberto de prestadores de serviço independentes — e que eles não vão negociar com organizações que falam em nome dos trabalhadores. Entretanto, à medida que as condições pioram, os trabalhadores das plataformas estão cada vez mais organizados. Entre os trabalhadores entrevistados por Rest of World, 48% disseram que fazem agora parte de um grupo formal ou sindicato; 49% disseram que participaram de greves ou outras ações. Entre os trabalhadores de entregas, o número sobe para 59%.
Mais importante, eles estão se organizando além das fronteiras nacionais. Assim como as empresas que possuem e investem nas plataformas são criaturas da globalização, capazes de mover seu capital e modelos de negócios de um lugar para o outro, o movimento dos trabalhadores também o é. Ele usa a infraestrutura de comunicação globalizada para organizar, se reúne em grupos internacionais do WhatsApp e canais do Telegram para compartilhar experiências, expressar solidariedade e coordenar suas ações. O movimento se tornou cada vez mais formal, e cada vez mais focado, trabalhando junto para encontrar brechas nas defesas das empresas de plataforma. Cada vitória local contra os gigantes aproxima mais da mudança sistêmica.
Na Nigéria e na África do Sul, Ibrahim e Ngwenya estão, separadamente, mas em paralelo, preparando casos contra a Uber e Bolt, graças em grande parte a um grupo de motoristas da Uber a milhares de quilômetros de distância, em Londres.
Yaseen Aslam começou dirigindo para a Uber cerca de um ano após o lançamento da empresa no Reino Unido, em 2012. No final de 2014, ele ajudou a criar uma associação de motoristas de aplicativos, enfrentando a resistência dos sindicatos tradicionais dos trabalhadores dos transportes, que estavam mais interessados em fazer lobby para que os aplicativos fossem banidos completamente. Eles contactaram grupos de motoristas em São Francisco e Nova York. “O que descobrimos muito rapidamente é que o que a Uber estava fazendo em São Francisco se aplicaria à Nova York, e então, de Nova York, seria aplicado a outros lugares como Londres”, disse ele, pelo telefone no Reino Unido, onde acabara de sair de um turno da noite. A rede cresceu, ainda que informalmente, através de grupos de WhatsApp e Facebook. Em 2019, organizaram uma greve internacional de motoristas devido à oferta pública inicial [IPO] da Uber em Nova York.
Pouco tempo depois, Aslam foi abordado pela Open Society Foundations, que se ofereceu para apoiá-lo para construir uma coalizão internacional mais formal. Em janeiro de 2020, a nova Aliança Internacional de Trabalhadores de Transporte em Aplicativos [Alliance of App-Based Transport Workers] (IAATW) realizou seu evento inaugural em Oxford, com delegados de 23 países. Eles criaram um manifesto que exige salários justos, transparência nas decisões algorítmicas de gestão, e um limite ao número de motoristas permitidos nas plataformas.
A associação, cujas afiliadas incluem o Sindicatos dos Motoristas e Entregadores de Plataformas no Reino Unido [App Drivers & Couriers Union] (ADCU), da qual Aslam é presidente, e O Movimento na África do Sul, se reúne mensalmente. Ibrahim faz parte do Conselho de Administração. Aslam disse que “Ser capaz de trocar experiências é empoderador. Não esqueça que estamos lutando contra gigantes. E todo o modelo [das plataformas] é baseado em isolar as pessoas.”
No entanto, o apoio mútuo da IAATW vai muito além de solidariedade. Em 2016, Aslam e outro motorista da Uber, James Farrar, levaram a Uber para um Tribunal da Justiça do Trabalho, argumentando que eles devem ser classificados como “trabalhadores” para a Uber, ao invés de “parceiros”, ou prestadores de serviço. Os trabalhadores, segundo a lei no Reino Unido, não são necessariamente empregados, mas eles têm acesso a muitos dos mesmos direitos, incluindo um salário mínimo. Eles ganharam esse caso e mais dois recursos, antes do caso acabar no Supremo Tribunal do Reino Unido. Em fevereiro de 2021, sete juízes, decidiram, por unanimidade, a favor dos motoristas, afirmando que sob a lei, eles estão trabalhando para a Uber desde o momento do login no aplicativo e devem ser pagos o salário mínimo para todas as horas que estão disponíveis para corridas.
É uma vitória limitada. A decisão não cobre os entregadores da Uber Eats ou de outras plataformas. A Uber continua a resistir ao julgamento. Em junho, a empresa assinou um acordo diferente com outro sindicato no Reino Unido, o GMB, que não permite a negociação coletiva em relação aos salários. Nem todos os países têm a categoria legal de “trabalhador”, tornando difícil replicar essa situação em jurisdições que não possuem enquadramentos legais semelhantes. É possível vencer os gigantes e acabar com os seus argumentos, um país de cada vez.
“Nos faz mais fortes, porque se ganharmos algo num país, é uma vitória para todos nós.”
A decisão impulsionou os membros da IAATW. Na África do Sul, os motoristas já haviam perdido em um julgamento semelhante, mas a vitória em Londres levou-os a reabrir o caso, com a ajuda do escritório Leigh Day, que representa os motoristas da Uber no Reino Unido. Ngwenya juntou-se ao processo. Na Nigéria, Ibrahim e o NUPABW estão prestes a avançar com seu próprio processo de classe, exigindo serem reconhecidos como trabalhadores.
Há um poder na simplicidade no argumento de Aslam, Ibrahim, Ngwenya e outros: o trabalho em plataformas é trabalho, então ele precisa ser pago de forma justa. Fazer isso colar é a chave para evitar que as plataformas manipulem a oferta e a demanda, obrigando os trabalhadores a correr riscos e a endividar-se.
“Para mim isso é ganhar, porque sei então que se eu estiver online, estou no trabalho, e estou recebendo algo”, disse Ngwenya. (Na Índia, Singh colocou de um jeito mais colorido: “Se você quer me foder, me foda”, disse ele. “Mas pelo menos me pague por isso.”)
Lutadores da campanha disseram que, mesmo que a batalha pelos direitos dos trabalhadores das plataformas seja muitas vezes retratada como uma questão existencial para as empresas de tecnologia, não precisa ser. “Elas ganham dinheiro suficiente para dar garantias mínimas. E elas podem fazer isso muito facilmente, basta… limitarem o número de pessoas que podem trabalhar para eles”, Matthew Cole, um pesquisador de pós-doutorado da Fundação Fairwork, que estuda plataforma de trabalho ao redor do mundo, disse para Rest of World. Se eles não podem pagar salários decentes e permanecer no negócio, ele acrescentou, então talvez elas simplesmente não sejam viáveis. “São modelos de negócio capitalista. Se você não consegue ganhar dinheiro, o mercado vai te expulsar, certo? Você não tem a garantia de ser um negócio de sucesso.”
Aslam, Ibrahim, Munchik e Ngwenya insistem no trabalho em plataformas porque eles têm certeza de que ele pode ser melhor, apesar das muitas falhas no modelo. Na Ucrânia, Pavlo desistiu, arriscando-se no mercado de trabalho em vez de correr pelas colinas de Kiev. Em Mumbai, Singh está perto de consertar sua moto. Ele manteve a carga nas redes sociais, mas em breve voltará às ruas.
“Sinto-me muito assustado, estou muito intimidado”, disse ele. Ainda está na época das monções, e as estradas em Mumbai são muitas vezes inundadas durante a chuva pesada. Ele está preocupado de que o próximo acidente possa ser muito pior. “Isto pode voltar a acontecer. Foi uma espécie de sinal: ‘ouve, mano, se continuar a fazer isto, da próxima vez você vai morrer’”, disse ele. “Mas tenho dois meses de contas para pagar ao meu senhorio… Não tenho dinheiro para viver, comer ou fazer nada disso. Então, aí não tenho escolha, mano. O medo não é uma opção.”
Traduzido para o português por Marco Tulio. Veja o texto original aqui.
Na legenda da 4a foto, ficou faltando algumas palavras, acho que o correto seria Entregadores da Glovo e Rocket passam em frete uns aos outros em Kiev, Ucrânia, em agosto de 2021.
Caro Marco Túlio,
Agradecemos pelo aviso. Foi corrigido.
Cordialmente,
Coletivo Passa Palavra.