Por Hector Orellana [*]
Se depois do estallido social no chile alguém houvesse perguntado quem seria o próximo presidente da República, ninguém haveria respondido que seria Gabriel Boric. Nem sequer o próprio Gabriel Boric. Inclusive, até antes do 18 de Julho de 2021, o favorito nas enquetes era o comunista Daniel Jadue. Além disso, no primeiro turno presidencial, a força eleitoral de Boric foi questionada, posto que ele estava atrás do candidato de extrema-direita José Antonio Kast.
Não se pode ignorar o triunfo histórico de um candidato muito jovem, de 35 anos, a idade mínima para ser presidente no Chile. Boric é de Punta Arenas, no extremo sul do continente, descendente de croatas que migraram para o país no final do século XIX. Foi líder do movimento estudantil universitário que lutou pela gratuidade da educação, graduou-se em Direito na Universidade do Chile e, atualmente, é deputado de Magallanes. Em seu tempo de universitário, militou na Esquerda Autônoma, em 2016 fundou o Movimento Autonomista e hoje é militante do Convergência Social. Ademais, se trata do candidato à presidência mais votado em toda a história do Chile e carrega uma nova aliança política da esquerda no poder, deixando para traz anos de governos da antiga Concertación e do Chile Vamos.
Mas realmente foi uma vitória do Boric e do Apruebo Dignidad?
Em primeiro lugar, e à luz dos números, para se alçar o Apruebo Dignidad (bloco formado pelos partidos da Frente Ampla e pelo Partido Comunista) enquanto vencedor, esse teve que recorrer a votos que não eram de seu setor. Assim, o triunfo de Boric foi sinônimo de várias maneiras de se interpretar a esquerda, tanto a partir de posições mais centrais, quanto a partir de posições mais extremistas, onde entram em convergência a rua, a política tradicional e a visão dos independentes.
Ressalto que os independentes que não necessariamente são aqueles que aderem a ideologias, mas sim os que pensam de forma mais concreta (como os apoiadores de Franco Parisi e o surpreendente – em termos eleitorais – Partido Popular). Um outro grupo de independentes viu em Boric uma maneira de avançar no modelo mais inclusivo, menos patriarcal e mais tolerante com as minorias. Para alguns grupos politizados mais aos extremos, tanto do centro quanto da esquerda, Boric é considerado o “mal menor”, seja porque prefeririam a democrata cristã Yasna Provoste, ou o progressista Marco Enríquez-Ominami, ou o professor Eduardo Artés, da União Patriota, assim, seu voto foi contra as ideias e o projeto que Kast representava. Também não é inferior que uns 45% dos cadernos eleitorais não tenham votado.
Por outro lado, apesar do quão atomizada a esquerda se encontra nesse momento, a esquerda (ou as esquerdas) percebeu que a democracia estava em um perigo iminente no Chile. Uma vitória hipotética de Kast não seria nada mais que o retorno às trevas dos anos 80, onde o pinochetismo renasceria com o discurso de ódio de chilenos contra chilenos, com a criminalização dos protestos, com um sistema de privilégios para poucos e em prol das empresas. Sem dúvidas, não se explicaria a explosão social de 18 de Outubro de 2019, os olhos de centenas de chilenos sendo mutilados, a injustiça vivida pelos presos políticos da revolta, e se falaria de um povo que não possui clareza a respeito de seu futuro.
Ao mesmo tempo, triunfou o olhar sobre o Chile após a transição democrática para uma nova Constituição Política, que instala uma democracia purificada e livre dos laços com a Constituição de 1980. Evidentemente, Kast não dava garantias ao vigor da Convenção Constitucional, já que ele atuou abertamente para sua rejeição. Nesse sentido, o Chile estava atrasado em matéria constitucional, uma vez que, por exemplo, Brasil e Espanha, países que viveram longas ditaduras, redigiram novas constituições como uma forma de redesenhar seus modelos políticos, incitando a transição à democracia. Por isso é importante o sinal que Boric deu de, no momento em que foi eleito, ir à sede onde se redige a nova Constituição e se reunir com Elisa Loncon, a líder mapuche que lidera o órgão constitucional, e dar apoio ao trabalho ali realizado.
Não se pode ignorar que Boric recebeu muitas críticas de seu setor ao participar da “Cocina”, assinando o “Acordo Pela Paz” e a Nova Constituição de 15 de Novembro de 2019 junto a outros congressistas, o que foi uma saída institucional para se resgatar o presidente Sebastián Piñera de um eventual desastre em seu governo. Entretanto, enquanto jogada política, ele ficou com uma imagem de republicano capaz de fazer negociações com a esquerda, o centro e a direita. Isso sem dúvidas não agradou a todos, posto que haviam setores que buscavam mudanças radicais e reestruturais através de uma Assembleia Constituinte de caráter popular e sem a ação da classe política congressista. De certa maneira isso se concretizou, não tanto na forma, mas na essência.
Além disso, com esta eleição de 19 de Dezembro, houve uma mudança geracional onde venceram os jovens, aqueles que protestavam pela Alameda e em províncias, os movimentos sociais que saíram nas ruas para expressar seu descontentamento com o modelo instalado pelos Chicago Boys no Chile, e que se expressam ativamente nas redes sociais. Aqui estão inclusos movimentos que vão desde a Revolução Pingüina, o movimento universitário que demandava uma educação gratuita e que qualidade, “No + AFP”, até chegar ao movimento de protesto massivo que perdura desde o estalido.
Deve-se destacar que esses jovens constituem uma nova geração que não apenas vive sob o respaldo de autores clássicos e da imprensa nacional, como também formam sua ideologia através da internet, que tem a capacidade de se autogerir coletivamente através de redes sociais que vivem em paralelo com a rua enquanto sociedade digital, e é certamente por isso que eles vêm interpretando de um modo mais certeiro os fenômenos que exigem um novo olhar no mundo, onde as demandas já não são as mesmas de uma década atrás.
Por outro lado, a vitória de Boric e do Apruebo Dignidad foi influenciada por três fatores decisivos
O primeiro deles é a incapacidade do presidente Piñera e sua equipe de assessores de se sintonizar com a cidadania, à qual, inclusive, declararam guerra, chamando-a de “inimigo forte e poderoso”. Eles nunca entenderam que administrar um país é diferente de obter rentabilidade com empresas que têm como fim o lucro, porque seus colaboradores possuem uma mentalidade que pode ser aplaudida em Harvard ou na London School of Economics, mas não em La Pintana, Cerro Navia, Alto Hospicio ou Chiguayante, para mencionar alguns setores mais empobrecidos.
Houve falta de empatia. Eles jamais se puseram à altura de compreender conceitos tão básicos, como as pessoas não serem pobres porque querem ou por serem preguiçosas, mas sim por falta de oportunidades e serviços sociais dignos, em um país onde a desigualdade é a base de como se sustenta esse sistema. Ainda acreditam que a educação é um bem de consumo e não um direito. Nem lhes pesa a consciência que existam famílias que tenham que fazer bingos beneficentes para pagar gastos médicos de doenças que não são incorporados ao sistema de saúde. E, como agravante, se criminaliza e aplica todo o rigor da lei ao manifestante, mas o roubo dos engravatados na trama econômica é punido com aulas de ética em uma universidade de elite.
Como segundo fator, se faz evidente que o esgotamento da direita tradicional no Chile, que não conta com um discurso potente, mas se tornou algo obsoleto (uma constante de luta contra a delinquência e o narcotráfico, mais empregos e crescimento econômico). Não se possui cifras que movam as massas, nem que despertem seu interesse político. Na realidade, Joaquín Lavín, o eterno candidato da União Democrática Independente, pensava nesta oportunidade que seria o vencedor das primárias que o levariam a competir pela cadeira presidencial no La Moneda, mas ele foi vencido inesperadamente por um candidato independente, Sebastián Sichel, um convertido da centro-esquerda para a centro-direita. Por outro lado, a nova direita chilena, aquela que vai mais ao extremo como uma forma de purismo doutrinário, tem ganhado maior força e tem quebrado as lideranças pré-estabelecidas pelas cúpulas de poder dos partidos, tornando o turbulento Kast um de seus rostos.
O último fator foi a decadência da antiga Concertación e, em especial, da Democracia Cristã, que apenas possui um representante na Convenção. Se não é pelo triunfo para a Região Metropolitana de Claudio Orrego na eleição de governadores, e a proclamação presidencial da senadora Provoste, poderíamos estar falando de um Partido Radical de esplêndido passado, mas com um presente abatido. No entanto, o slogan da centro-esquerda nos últimos 30 anos no poder foi mudar a estrutura, mas sem atacar suas bases: as Administradoras de Fundos de Pensão (AFP), as Isapres, a educação privada e a Constituição de 1980.
Por isso se pode argumentar que a chave do governo de Boric se sustenta em três grandes fatores, tanto em plano nacional quanto internacional: a) se definir como um presidente reformador ou refundador; b) o papel que será atribuído ao Partido Comunista no poder; e c) o posicionamento dentro da órbita da esquerda latino-americana.
Na linha de refundação, as mudanças que seu governo pretende instalar vão desde o aumento do salário mínimo mensal progressivamente a 500 mil pesos chilenos (R$ 3.300, aproximadamente), até a diminuição da jornada semanal de trabalho de 45h para 40h. Propõe-se também o fim das Isapres e a instalação de um sistema único de saúde, assim como o fim às AFP e a implementação de um novo sistema previdenciário; há, simultaneamente, o ponto de reformular a polícia em seu papel de combate ao crime e ao narcotráfico, além de pensar como definir sua política migratória, dentre outros pontos. O discurso do candidato Boric na campanha de primeiro turno foi muito mais drástico em termos de seu programa de governo, mas, no segundo turno, ele tomou um tom mais próximo ao centro, já que deveria cativar esse eleitorado. Fica então uma dúvida a respeito da profundidade de seu plano de governo, ainda mais tendo em vista que as forças de esquerda contarão com uma leve maioria na Câmara de Deputados e que direita e esquerda estarão empatadas no Senado.
Em relação às cotas de poder, ele já afirmou que utilizará a lógica de paridade para a nomeação de seus ministros e ministras, priorizando a igualdade de gênero e dando espaço a pessoas de outras regiões, não atuando na lógica de cotas de partidos políticos. Neste último aspecto, muitos dos fantasmas que levantaram a direita e o centro se relacionavam com o papel que o PC do Chile assumirá no governo de Boric, ocultando que esse partido já fazia parte da segunda administração de Bachelet. Uma opção é conceder-lhes ministérios fora da órbita majoritariamente política para reprimir medos ou co-governar com seus aliados políticos sem o freio da crítica, mostrando que a governamentalidade de um país é uma tarefa complexa, mas que requer decisões firmes que não são do agrado de todos.
Do ponto de vista latino-americano, estamos em um cenário onde há uma guinada para a esquerda, tal como já aconteceu na Argentina, no Peru e na Bolívia. Nesse sentido, haverão grandes mudanças na relação com os países vizinhos, em especial com a Bolívia e sua reivindicação para uma saída ao mar. Após a judicialização dessa polêmica na Corte Interacional de Justiça, Boric prosseguirá com a política de Estado que já se mantém há décadas, ainda que possa ser uma relação menos hostil, tendo em mente que ainda se encontra em pendência a disputa pelas águas do rio Silala. Com certeza, depois das eleições no Brasil, caso o resultado seja uma vitória de Lula, poderia haver a construção de um bloco progressista, que incluiria o México e as Honduras. No entanto, algo que se pode assegurar é que Boric não irá buscar conselhos em Cuba, na Venezuela ou em Nicarágua. Embora seja simpático à ideia de conceder uma importância histórica ao legado de Fidel Castro e da revolução cubana, ele condena abertamente a violação aos direitos humanos nesses países, se mostrando contrário à repressão exercida nas manifestações de 11 de Julho em Cuba, à maneira com a qual Maduro lida com a crise política e migratória venezuelana, e à reeleição do líder sandista.
Como vem se desenvolvendo, parece que a vitória eleitoral de Boric possui grandes méritos por si mesma, mas não é assim. Isso marca um antes e depois da política do sul do continente, com uma liderança jovem, renovadora e com uma mística especial em sua campanha em relação à dos últimos candidatos da esquerda chilena, por se tratar de um político real, e não um mero tecnocrata (ao menos até agora), com intenções de mudanças reais. Por isso se pode destacar que estamos frente a um novo paradigma na configuração da(s) esquerda(s), tanto no Chile, quanto na América Latina, mas que enfrentará uma prova de fogo no poder.
Em plano local, a partir do 11 de Março de 2022, Boric vai assumir o cargo em relação à Nova Constituição Política, e caberá a ele potencializar sua legitimidade para possibilitar a implementação das grandes mudanças fundacionais que o Chile requer sempre que é imposta sua visão do primeiro programa de governo. Também terá que se estabelecer um novo acordo com o movimento de protesto, o que inclui o perdão aos prisioneiros das revoltas e a redefinição do uso urbano da Plaza de la Dignidad, o epicentro dos protestos em Santiago. Em suas mãos encontra-se o destino de um país onde seus direitos humanos foram feridos pelas mãos das tropas do Estado e que requer, urgentemente, a justiça, a verdade, a reparação e a certeza de que isso não se repetirá. Na economia seu trabalho não é menor, já que este setor deve ser reerguido após a grave crise deixada pela COVID-19, que ainda não cessou.
Por fim, em termos de relações internacionais, ele deverá escolher seus aliados e reconstituir laços que se romperam no momento de direitização da América do Sul. Sem dúvidas Boric é uma cara nova na política, então ele certamente se dedicará a elevar a esquerda latino-americana em bases ideológicas, mas por meio de uma agenda que inclua novos tópicos. Como põe seu programa de governo, na política exterior será desenvolvido um modelo multilateral, empresarial, feminista e contra a crise climática e ecológica, e as agendas de proteção e administração do oceano.
[*] Héctor Orellana é jornalista e mestre em Direitos Fundamentais pela Universidade de Granada, Espanha.
As artes que ilustram o artigo são da autoria de Nemesio Antúnez (1918-1993).
Ou seja, o autor do artigo em questão evidencia o quanto Boric tem todo um caminho incrível pela frente para, diante da “complexidade da situação”, se tornar ainda mais um gestor de grande performance. Após Boric negociar os anseios de uma revolta popular com as portas fechadas para as decisões coletivas dos manifestantes e abertas para outros gestores, agora ele poderá implementar a tal “essência” que é distante da “forma” – qual será o significado dessa formulação?
Enquanto isso, as reivindicações anticapitalistas, as relações de solidariedade a partir das práticas de autogestão nos locais de moradia e trabalho e a reconstrução coletiva de mecanismos de decisão para além das dinâmicas institucionais são, vejam só, aspirações de setores “extremistas” da esquerda.
Depois essa esquerda “emirsaderana” ainda se pergunta porque o Lula se alia ao que ele sempre se aliou (ou nem se pergunta mais, só justifica com a luta “contra o fascismo” e todo mundo vale nessa luta), o que será que aconteceu com a Bolívia “maravilhosa” de Evo Morales que sofreu um golpe do nada (quase sem resistência popular) e tantos outros exemplos mais. Ah, sim, claro: colocar essas questões é coisa de gente “extremista”, que não entende o “avanço da extrema direita” e a “tarefa complexa” do poder.
Autogestão é muito mais complicada e difícil – por esse motivo é tão raro que os exemplos perdurem e se frutifiquem – do que ser gestor (líder estudantil, deputado, presidente) da exploração do tempo de trabalho dos outros. Ops, falamos de trabalho e exploração – mas, claro, os governantes de esquerda não fazem isso, só os “empresários das elites contra a pátria”.
Acho que é melhor para por aqui. Desculpem-me, mas que chocante ter de ouvir pela enésima vez a esquerda gestora gostar de governar com o seu verniz politicamente ajustado.
Boric é um autonomista de resultados…
Amei esta parte: No entanto, algo que se pode assegurar é que Boric não irá buscar conselhos em Cuba, na Venezuela ou em Nicarágua. Embora seja simpático à ideia de conceder uma importância histórica ao legado de Fidel Castro e da revolução cubana, ele condena abertamente a violação aos direitos humanos nesses países, se mostrando contrário à repressão exercida nas manifestações de 11 de Julho em Cuba, à maneira com a qual Maduro lida com a crise política e migratória venezuelana, e à reeleição do líder sandista.
Boric tem um grande futuro pelas costas, como epígono farsesco de Allende.
Avaliar Boric? Ele é a seção da tarde no estilo PT nos seus três governos,a diferença é que Boric é em Full HD.
Um comentário de Loren Goldner viria bem a propósito.