Por Thiago Canettieri
É curioso o atual cenário político-eleitoral brasileiro: denuncia-se, dia sim e outro também, o risco de ruptura institucional com o atual ocupante do Planalto. Ao mesmo tempo, e a despeito desse diagnóstico, a campanha eleitoral desse ano já está a pleno vapor. O objetivo: ocupar as instituições, novamente. Talvez essa condição revele algo de verdade sobre a política contemporânea: mesmo sem o chão sob os pés, continua-se a fazer mais do mesmo, como de costume. Tal qual o velho coiote do velho desenho animado – até olhar para o precipício e, finalmente, perceber que não há nada sobre seus pés.
Seria essa uma inspiração pascalina para a política? Sabe-se que essa fórmula pode funcionar para a religião, mas haveria de funcionar na política?
Como é de se esperar, independente da situação de colapso que se vive, resultado do desenvolvimento histórico de um processo de crise absoluta que se intensifica cada vez mais, a reação de esquerda não indica nada de novo. Contraria-se a máxima brechtiana: estamos às voltas com o velho ruim.
Mais curioso ainda é como o movimento de esquerda tem se portado nessas condições. O que as esquerdas podem oferecer? Não muito. Nada que vá além de uma vaga promessa de reinstituir – sabe-se lá como – o padrão do regime de acumulação fordista, no qual consolidou o imaginário positivo da sociedade do trabalho. Muito aquém do que a esquerda já prometeu uma vez. Agora é ela o agente “conservador” da política, que deseja restituir o mundo tal qual ele era (basta ver a última campanha eleitoral: a promessa da esquerda brasileira hegemônica foi prometer um “Brasil feliz de novo”, voltando-se para o passado. A extrema-direita radicalizada, por outro lado, prometia uma “Nova Era”. No mesmo diapasão, o aquecimento para a campanha de 2022 já revela a palavra de ordem: “fazer o Brasil 2003 novamente”).
Sair da crise e manter o “bussiness as usual”: eis o oxímoro que domina a racionalidade política de esquerda (em todos os seus espectros, ainda que alguns consigam ser piores do que outros).
E aqui seria possível notar uma convergência surpreendente se não fosse o fato de estarem todos achatados sob o insustentável peso das formas sociais decadentes do capital. Da esquerda institucional que até anteontem ocupava o governo federal à assim catalogada esquerda radical, passando, é claro, pelos nanicos partidos, internacionalistas ou nacionalistas, e até quem tenta escavar uma competitividade eleitoral no miolo do espectro político: todos esses agentes só conseguem organizar politicamente uma demanda unidimensional: mais trabalho.
Torcem para ser possível regressar ao “bom capitalismo”, aquele que tinha crescimento, emprego e mercadoria – oxalá um Estado de bem-estar social – e era possível existir alguma distribuição de rendimento. Nada mais irrealista que isso – as contradições do capitalismo se desenvolvem. O neoliberalismo não é um desvio de rota, senão o desdobramento lógico dessas contradições. A crise absoluta do capital não é superada, tão somente adiada e, ao mesmo tempo, agravada.
Tal sonho de restauração se desfaz em fumaça quando se perceber que a história não faz meia-volta: os critérios de produtividade são definidos globalmente na busca por maior remuneração e são dados pelos capitais que buscam permanentemente a autovalorização. O que significa a adoção da forma relativa do mais-valor, aumentando a produtividade do trabalho e eliminando trabalho vivo das esferas produtivas. O trabalho, enquanto forma social de mediação social historicamente constituída, se tornou anacrônico. O fetichismo dessa promessa está em achar que será possível alcançar o pleno emprego, disseminar a cidadania pelo trabalho e colocar as instituições novamente para funcionar. Esse breve interregno da história brasileira já terminou.
Nesse processo, encantados pela miragem da refundação da sociedade do trabalho, não percebem que adoram um deus morto. Na celebração de um culto sansrêve et sansmerci, toda forma de barbárie é percebida como promessa: o trabalho precário, o autoempreendimento concorrencial, a sorte jogada no capitalismo de cassino, as políticas públicas focalizadas (e cada vez mais minguantes) e até as virações coletivas aparecem como expiações necessárias no caminho da redenção pelo trabalho.
Tal transcendência decaída faz ressuscitar, de um lado, o keynesianismo e, de outro, o leninismo de caserna. Se a crítica das formas sociais fosse mais recorrente entre as esquerdas, não ficariam tão surpresos por essa situação. Ambas são apostas que o Estado pode ressuscitar o trabalho, resposta recorrente para aqueles acossados pela crise. Espera-se que o Leviatã possa salvar alguma coisa – mas já não pode.
O corpo do Leviatã está deformado pelas bolhas especulativas. Apesar da fisionomia, são exatamente as bolhas que ainda permitem ao sistema uma ilusória sensação de sobrevida. Quando estourarem, não sobrará muita coisa por debaixo delas.
Essas duas imagens, um deus morto e um corpo putrefato, são as verdadeiras faces das estrelas-guias das promessas de campanha. Não que sejam promessas ruins: são apenas essas que cabem no buraco de agulha dessa forma-social decadente. É claro que podem vir acompanhadas do espetáculo que for, mas a mais celebratória pirotecnia não muda em nada o caráter catastrófico da situação. Quando muito, o que se passa por tal retórica é tão somente a luta desesperada pela distribuição do restolho necessário para reproduzir os corpos economicamente supérfluos.
Basta deslocar a visão do retrovisor para ver o que temos pela frente: o sonho de fazer o Brasil feliz de novo se converteu em pesadelo. A sociedade da mobilização total começa a falhar. Já não há boom das commodities para sustentar o fluxo de caixa de um Estado minimamente inclusivo – se existir será tão frágil quanto bolhas de sabão. Esse é o máximo de expectativa nessa era declinante; e o Brasil voltar a ocupar o lugar de celeiro do mundo, distribuindo soja, madeira e minério de ferro e de alumínio – quiçá até nióbio – para as indústrias globais. Os efeitos destrutivos do complexo agrominerador não vão diminuir – pelo contrário, a tendência é agravar ainda mais o cenário socioambiental crítico.
Seja como for, vivemos a sociedade do fim do trabalho sem que isso signifique a entrada no reino idílico das liberdades: ao contrário, é a disseminação generalizada de precariedades tremendas.
Esse derretimento das expectativas, no entanto, é negligenciado. Trata-se de um campo cego. Acredita-se que mais cidadania pré-moldada é possível, mas não é. O dia depois da posse não vai ser outra coisa senão mais gestão securitária do colapso administrado. Como foi nos últimos 20 anos – claro, há formas melhores do que outras; há formas péssimas. Por mais bem intencionados que sejam – e há algum mérito nessa postura, afinal, os bunkers são escassos, as ilhas privativas são exclusivas, e as viagens interplanetárias são ainda apenas ficção científica – a promessa do trabalho não encontra referente na sociedade encalacrada que vivemos.
Talvez seja tarde demais quando se perceber que não é possível continuar como de costume.
As obras que ilustram o artigo são da autoria de Odd Nerdrum (1944-).
Me lembrou o Duayer dizendo (com Postone) dizendo que as esquerdas não conseguem fazer a crítica ao trabalho no capitalismo e à centralidade que o trabalho tem nessa sociedade sem criar um altar pra proclamar “o bom trabalho” e colocar isso como meta de sociedade
Mas também é legal ver que mesmo um pessoal mais mainstream da vida (na economia) tipo os Stiglitz da vida tem pipocado cada vez mais pra dizer que a coisa tá ficando insustentável. Geralmente a gente vê que as propostas se resumem a tentar fazer o capitalismo regredir ao período que você comentou, como se desse pra usar a mesma camisa de força do passado num bicho que cresceu e ficou mais monstruoso
Se eu não me engano eu já vi seu nome em algum lugar? Uma palestra do Paulo Arantes sobre o livro da ideologia francesa?
Abraços