Por Outra Guerra
Traduzimos uma entrevista com um militante anticapitalista do coletivo Une autre guerre, sobre a invasão russa em seu país. “A.”, remete ao pseudônimo escolhido pelo entrevistado.
Como tem sido o cotidiano desde que a guerra começou?
Sou originário de Kharkiv, mas estudo em Lviv há alguns anos. Tive de deixar Lviv para me juntar à minha família que estava deixando Kharkiv, mas estou de volta aos territórios desocupados da Ucrânia ocidental, e dependo principalmente dos “relatos” dos meus amigos e familiares que ainda se encontram no leste, alguns deles em milícias ou no exército, bem como da vasta gama de informação pública nas redes, etc., para compreender o que está acontecendo mais perto da linha de frente.
As cidades e povoados que foram tomados até agora foram capturados durante os primeiros dias da “blitzkrieg” russa, o que causou uma espécie de “despertar em um país diferente”. Conheço muitas pessoas que acordaram tarde demais e não tiveram tempo de fugir, e que agora não podem sair: seja porque as cidades ainda são lugares de combate ou bombardeio, seja porque a linha de frente se moveu mais profundamente e a evacuação significaria atravessar essa linha, o que é muito perigoso — as fotos e vídeos de dezenas ou talvez centenas de carros civis destruídos e atacados nas estradas confirmam isso, como se fosse necessário…
A situação em Kherson e no seu entorno ainda está evoluindo. Embora o exército ucraniano tenha tido de deixar essas cidades muito cedo (Kherson foi imediatamente abandonada em favor de uma melhor posição defensiva em Mikolayev), a população se mobilizou e houve várias manifestações pró-ucranianas “pacifistas” (apenas slogans e bandeiras por enquanto) nas cidades ocupadas. Mesmo depois da chegada de mais policiais da tropa de choque da Rússia, estes protestos não foram extintos. Mas infelizmente os tiros de advertência que os soldados dispararam no ar se transformaram em verdadeira violência. Várias pessoas já foram mortas e dezenas foram feridas em muitas cidades. Não tenho certeza de como essas ações poderiam se desenvolver a longo prazo, especialmente levando em conta que o exército russo está se deslocando para Kherson e fazendo dali uma base para futuros ataques para o oeste, para Odessa, para o norte e para Zaporijia. As ações em massa de civis, que foram capazes de retardar o avanço russo, foram claramente temporárias e frequentemente limitadas ao primeiro dia de confronto (Enerhodar, Balakliya, etc.), e o exército russo mostrou sua intenção fascista ao não ter medo de atirar no meio da multidão.
Estamos interessados na pilhagem, que para nós é uma certa marca de conflitos de classe, especialmente em tempos de guerra. Ouvimos falar da repressão aos saques por parte das milícias e também pelo Estado. Você pode nos dizer mais sobre isso?
Não houve saques em massa antes da invasão russa. Pior ainda, o saque não foi uma característica importante do movimento Maïdan em 2014. Esse movimento foi relativamente “civilizado” e os únicos saques ocorreram em Kiev (nos edifícios que os manifestantes usaram como hospitais ou abrigos) e na Ucrânia ocidental após uma dura repressão. Delegacias de polícia foram saqueadas, carros foram queimados, etc., mas não houve um saque generalizado nas ruas comerciais.
Nos primeiros dias da invasão de Donbass em 2014, houve alguns saques, e a maioria ocorreu nos territórios que a Ucrânia não controlava mais, o que serviu como uma boa desculpa para os propagandistas mostrarem fotos de supermercados destruídos e vazios bem ao lado das prateleiras cheias, de lojas ucranianas “civilizadas” e “européias”. Como resultado, saques e pilhagens têm sido relacionados à imagem dos “bárbaros” pró-russos. Eles são vistos como um sinal da chegada da “horda” do mundo russo. Atualmente, vemos uma continuação da tendência de 2014: os saqueadores são vistos como o equivalente dos soldados russos.
Ouvi falar de saques nas primeiras horas de 24 de fevereiro, logo após a invasão, quando os bancos pararam de trabalhar por um tempo, e quando as pessoas não podiam mais comprar as mercadorias que diminuíam rapidamente. Quando o avanço russo foi retardado e a civilização capitalista reafirmou seus direitos, o saque se tornou mais disperso, mas extremamente difundido. Pessoas saquearam pequenas lojas em busca de alimentos, cigarros ou álcool (é ilegal vender álcool em tempo de guerra na Ucrânia), em pequenos grupos ou individualmente. As pessoas entraram em lojas de eletrônicos, concessionárias de automóveis. E há também grupos maiores, saqueando coletivamente lojas de alimentação maiores, o que é mais comum em cidades sitiadas ou ocupadas. Não tenho certeza dos números sobre isto, mas já vi pelo menos uma centena de saqueadores capturados e amarrados a postes telefônicos, a maioria por civis, sem envolvimento da polícia, e várias dezenas de vídeos mostrando pessoas invadindo lojas. Embora no início as prisões possam ter sido feitas pela polícia ou por milícias nacionalistas, agora é mais provável que os cidadãos estejam fazendo esse trabalho. A população em geral tende a apoiar essas medidas anti-saques, principalmente porque os saqueadores são freqüentemente descritos como “assaltantes” (um termo mais sério, referindo-se ao arrombamento de casas particulares, e não o de lojas abandonadas). Os relatórios oficiais mencionam o que os saqueadores roubaram, e isto desenvolve em grande parte esta concepção de “banditismo”. Para mim, é bastante claro que as autoridades ucranianas, apesar de suas declarações sobre heroísmo e patriotismo, estão dispostas a sacrificar milhares de pessoas presas nas cidades atacadas. O Estado e a polícia não se preocupam com nossa sobrevivência, preocupam-se com a sobrevivência da lei da economia.
Zelensky aprovou uma emenda com várias leis que podem ser encontradas aqui.
Basicamente, estas emendas aumentam as penas por “banditismo” e diminuem o limiar para um ato criminoso: antes, era preciso roubar “grandes quantidades”, agora qualquer infração em tempo de guerra se enquadra nesta categoria.
Houve alguma greve na Ucrânia desde que a guerra começou?
Ainda não vi nenhuma greve, mas de qualquer forma a economia está desorganizada, já que muitas pessoas fugiram sem se preocupar com seus trabalhos. A maioria dos bombeiros, policiais, catadores de lixo e uma série de outros serviços municipais em cidades sitiadas ou bombardeadas ainda estão trabalhando, o que é, aliás, usado pela propaganda que tece elogios às pessoas escravizadas pelos salários miseráveis, entoadas como “heróis da pátria”.
A Ucrânia não tem realmente estruturas sindicais, embora existam muitos sindicatos “amarelos” herdados da URSS, mas basicamente eles não existem e nunca organizaram uma única greve em toda a sua existência.
Existe um movimento de base que se oporia à guerra de uma forma não nacionalista?
Não creio que haja qualquer possibilidade de resistência “popular” anti-estatal à guerra, embora seja importante ficar de olho na resistência civil, nos saques e nas manifestações. Mas acho que há uma forte possibilidade de que as milícias nacionalistas mobilizem suas forças para afirmar seu poder “na rua” e talvez influenciar as decisões políticas caso Zelensky decida aceitar um acordo de paz “pró-russo”.
Há várias organizações anarquistas que têm feito distribuição de alimentos e organização de abrigos durante os momentos pacíficos. Além disso, começaram a apoiar milícias e refugiados, especialmente pessoas queer que estão em grande risco de serem recrutadas neste momento. As organizações anarquistas ucranianas são relativamente pequenas e compostas majoritariamente por uma militância masculina. Por isso, a maioria está treinando para o combate, ou lutando contra os russos em milícias ou batalhões regulares do exército.
Você tem alguma informação sobre o que está acontecendo na Rússia em oposição à guerra (manifestações, greves…)?
Houve algumas pequenas greves na Rússia, mas a estrutura sindical é muito parecida com a da Ucrânia: os sindicatos são vistos como antigas instituições soviéticas que dificilmente estarão envolvidas em ações contra o Estado (os sindicatos ucranianos também não fizeram nada durante o Maïdan). As mobilizações ocorridas na Rússia, Ucrânia, Cazaquistão e Bielorrússia (países semelhantes, com algumas diferenças, é claro) foram espontâneas e centradas em torno de praças e ruas, como se poderia esperar no período atual, em vez de uma organização mais clássica de fábrica.
Os primeiros protestos contra a invasão foram quase completamente espontâneos, mas depois houve alguns apelos “oficiais” para manifestações de Navalny e outras forças liberais, e também houve algumas “inovações” táticas nessas manifestações. A próxima manifestação está programada para domingo, 13 de março.
A polícia realmente não está deixando espaço para que estas manifestações sejam lideradas por partidos liberais, de modo que as chamadas de Navalny definam o lugar e o horário delas. Entretanto, ainda não vi nada que sugira que táticas de “black block” ou “anarquistas” tenham se espalhado entre a multidão. Houve apenas algumas tentativas de “libertação” dos presos que aconteceram de modo a perturbar a rotina habitual: chegar a uma manifestação; ser preso sem qualquer oposição da multidão pela polícia que está presente em todos os lados da manifestação; passar uma noite na cadeia. Houve manifestantes presos por vários dias e enfrentando acusações que poderiam mandá-los para a cadeia por anos. Penso que estas ações de protesto precisam ocorrer em uma escala muito maior para ter qualquer chance de interromper com sucesso a guerra e espero que ações individuais de sabotagem ou novas táticas de massa possam se sobressair nas manifestações.
Você quer acrescentar alguma coisa?
A situação é bastante sombria. Não apenas a “classe”, mas até mesmo a “pobreza” parecem “suspensas”, quando os ucranianos se apresentam como um respeitável país de classe média. Isto pode ser visto na condenação geral dos saques, no heroísmo dos trabalhadores de serviços em vez de admitir que as opções são limitadas. A xenofobia generalizada e os apelos ao genocídio dos russos coexistem com a negação da existência do fascismo na Ucrânia: “Veja, o regimento Azov não tira uma foto com a bandeira do Terceiro Reich há dois anos!”. As pessoas estão lutando para fugir de suas cidades de origem para o oeste. As autoridades ocuparam um lugar secundário, incentivando os esforços dos voluntários e “protegendo-os” com a polícia.
Não apoio apelos à solidariedade com o Estado, a polícia e o exército em nome de uma “situação de emergência”, mas penso que os exemplos de organização e solidariedade de base dão esperança de que algo possa realmente mudar e que possamos ser capazes de destruir não apenas este fascismo e esta guerra, mas a base do fascismo e das guerras! O sistema em que vivemos não gera apenas destruição, mas se alimenta da destruição; teremos de aprender a viver com ele e nos organizar sem ele, para destruir suas bases frágeis e criar a possibilidade de liberdade coletiva acima de tudo.