Por Arthur Moura
Leia aqui a segunda parte do artigo.
Este é um primeiro esboço para uma teoria crítica do cinema independente de guerrilha, resultado de diversos textos publicados em sites e blogs que estão aqui organizados como forma de contribuir para um debate alargado sobre o cinema como ferramenta de transformação social e disputa de hegemonia no campo cultural, político e econômico.
Aos trabalhadores do audiovisual,
A guerrilha é um tipo de enfrentamento que visa não só a sobrevivência na luta por meios táticos e estratégicos diferentes de uma guerra convencional; ela é um modo de superação de um estado de coisas (ainda que sob evidente desvantagem na correlação de forças, não só driblando, mas encurralando o inimigo sem dar-lhe chance de reação). A deficiência material e quantitativa das guerrilhas deve necessariamente ser inversamente proporcional ao amplo apoio popular, que é o que deve legitimar a luta guerrilheira. O inimigo alçou à condição de dominador por meios infinitamente mais perversos, obrigando os dominados a eliminar este poder maior também por meio da inteligência, logrando uma condição emancipatória desejada. A guerrilha é feita com parcos recursos e também pouca força humana envolvida. A letalidade da guerrilha é o seu caráter mais indesejado, pois do lado dos dominados toda perda é uma grande perda e, por outro lado, os dominadores sabem dos perigos que correm. O cinema de guerrilha substitui os focos de combatentes armados por grupos de comunicadores e cineastas organizados. A diferença são as armas usadas e em ambos os processos é preciso ter disciplina, perspicácia, agilidade e inteligência. É preciso transgredir e apontar para a superação de um estado de coisas. Por isso, é necessário o uso de uma teoria e um método. Do contrário, esse enfrentamento é só uma via para o suicídio. O cinema de guerrilha é a forma primária da sobrevivência do cinema autêntico. A força do mercado é mordaz contra este cinema, tentando cooptá-lo como forma de eliminar tais manifestações. Este cinema, que podemos chamar de pobre, precisa desenvolver seus próprios meios de produção e distribuição, que inevitavelmente irão conflitar com a ordem estabelecida pelo mercado, seja no campo da arte, da política ou da economia. A transgressão do cinema autêntico se dá, portanto, desde a sua elaboração até a produção materializada. A ausência de recursos mínimos, além de imputar sobre o produtor um sobretrabalho, dadas as condições materiais existentes, obriga os produtores a desenvolverem meios de produzir ainda assim sem qualquer garantia de manutenção da existência dessas manifestações, o que nem por isso fragiliza as suas expressões. Por isso, este cinema necessita do apoio daqueles diretamente envolvidos com as tramas deste cinema, que é político e que genericamente faz parte do campo comumente denominado “esquerda”. A esquerda, no entanto, é muita coisa e todo esse moinho de vento comporta relações humanas e horizontais, mas uma boa parte guarda como característica central o egoísmo e as formas vis de poder, nada muito distinto dos inimigos de classe que algum dia disseram combater. A fama, o estrelato, o know how, o poder e o glamour fazem parte do capital desejado pela esquerda ou progressistas, a ponto de nos questionarmos das diferenças substanciais de ambos os lados disso que parece ser a mesma moeda. Vendo-se neste cenário de portas absolutamente fechadas, o cinema de guerrilha é o estranho, o indesejado e aquele que merece desaparecer, dando lugar às carniças de sempre, não sendo notado, passando batido. A guerrilha precisa ser financiada, afinal de contas o sistema vigente é o capitalismo, contra o qual lutamos. Não é a força e o tamanho do oponente o problema central, mas neste caso a ausência de apoio por parte dos que supostamente deveriam engrossar as fileiras contra o inimigo. O cinema de guerrilha, portanto, visa furar bloqueios ou estruturas intransigentes às suas manifestações e existência. Ele força a entrada e arca com a reação. Isso acontece porque o conflito de classe está colocado.
Este breve ensaio é uma tentativa de tocar em questões importantes para o cinema independente e destina-se fundamentalmente aos trabalhadores do audiovisual, para que possam refletir sobre a condição da arte que produzem e o meio social em que vivem e da relação do cinema e da comunicação com a sociedade burguesa. É também uma forma de compartilhar conhecimentos e experiências. Resolvi escrever este ensaio para organizar uma série de escritos publicados em sites como Lavra Palavra, Passa Palavra, Esquerda Diário, Crônicas da Guerra de Classes e outros, assim como trechos inéditos que venho acumulando em anotações. Este é um trabalho introdutório e que trata de questões importantes e determinantes para o produtor de cinema e para os comunicadores de uma forma geral. A produção cinematográfica deve estar em constante diálogo com a teoria. O cinema independente, na minha avaliação, para além de não estar totalmente domesticado pelas forças de mercado, possui um sem número de qualidades capazes de elevar o nível dessas produções, de forma a ampliar o acesso e as condições de produção dos trabalhadores do cinema e do audiovisual e — por que não? — da comunicação. Por isso, discutiremos alternativas possíveis para se materializar formas de organização capazes de dar novas condições de desenvolvimento à arte combativa e crítica. O cinema possui vantagem nesse âmbito por ser uma arte coletiva e que quase sempre envolve um número razoável de pessoas nas produções. O cinema não é uma arte solitária; ele requer forças, mentes e criatividade; ele nasce da coletividade. É uma arte que se caracteriza pela dificuldade de produção, custos altos, etc. e que tem enorme poder de comunicação. Para além das dificuldades é necessário pensar alternativas e, como o cinema é uma arte com grande comprometimento social, nos resta materializar tais alternativas de forma a não só burlar o mercado, mas superá-lo. Para isso, precisamos debater uma série de assuntos um tanto complexos.
Percebemos em nossa prática cotidiana que este debate amplo atende a uma demanda mais abrangente de trabalhadores envolvidos com cinema que, assim como nós, buscam formas alternativas e eficientes de produção de seus filmes. Acreditamos que momentos de crise produzem saídas, mas que nem por isso muitas vezes são viáveis ou produzem resultados satisfatórios para um número maior de produtores. É preciso pensar mais sobre isso. Para tanto, debruçaremos nossas discussões sobre temas como: cinema, formação de redes; mercado; sistema capitalista; máquina estatal e estabeleceremos distinções entre o cinema industrial e o cinema enquanto ferramenta de transformação social com vistas a encontrar saídas possíveis que nos permitam trabalhar e superar relações de trabalho alienado e passarmos a proprietários dos meios de produção e distribuição, pois entendemos que só assim é possível haver leituras ou releituras da realidade, através do cinema, comprometidas com as históricas lutas da esquerda no Brasil e na América Latina, assim como a colonização de nossos povos e culturas. Pensaremos, portanto, as bases para a criação de um cinema emancipatório.
O cinema e o audiovisual, como colocamos, têm profunda relação com as questões sociais. Nas ações empreendidas em 2013, houve uma rica profusão de pontos de vista sobre as manifestações, o que dificilmente ocultava a repressão policial sistemática nos eventos, até mesmo porque este não era o objetivo dos midiativistas e cineastas que registraram as Jornadas de Junho. Por mais que estes produtores muitas vezes não estivessem organizados (o que obviamente os debilitou na luta), a mão de ferro do Estado não deixou de incidir sobre eles. A neutralização foi possível graças ao suporte de grandes corporações como a Rede Globo, apesar de algumas vezes repórteres de grandes redes de comunicação também serem inevitavelmente alvos da repressão policial. Mas logo ao perceber os riscos de se estar frente-a-frente com uma enorme massa de pessoas que rejeitavam a mídia burguesa de um lado e a repressão de outro, fez com que as grandes corporações midiáticas filmassem tudo do alto dos helicópteros ou arranha-céus protegidos da incontornável violência das ruas. Por outro lado, a exposição dos jornalistas independentes garantiu não só acompanhar as manifestações em tempo real a partir de outros olhares, mas desnudar as mais vis intenções do Capital e seus defensores, como foi o caso de policiais (infiltrados ou não) plantando provas contra manifestantes ou tirando a farda atrás de uma blazer preta e, logo em seguida, correndo atrás da pessoa que estava filmando, que por sorte conseguiu entrar na embaixada dos Estados Unidos, salvando-se da ação policial. Uma coisa é saber que a polícia é um antro de criminosos. Outra coisa é assistir isso e não ter dúvidas sobre o seu caráter. Isso tudo, no final das contas, provocou o aumento da repressão policial, o que também não deixa de ser uma novidade para nós. Essa é a função da denúncia: publicizar a vergonha alheia, expor e responsabilizar aqueles que causam e garantem a barbárie. Superar uma condição dessa natureza requer pensarmos todo o contexto social e histórico que este cinema faz parte, atuando na disputa por mentes e corações.
O homem moderno carrega uma contradição em si, quem sabe a principal. É dele que advêm importantes avanços de todas as ordens. O cinema, por exemplo, representa um importante avanço no campo das artes, mas que só foi possível graças ao desenvolvimento tecnológico. Sabe-se que o homem moderno goza deste status, conferido pela economia de mercado liberal, da concorrência e grandes monopólios. De todas as formas reivindica também a defesa da democracia, da igualdade perante a lei e defesa do interesse geral, da ordem e liberdades individuais. Nisso se materializa o Estado burguês que está acima, ainda que diga representar a todos, e defende-se da reação contrária com o uso da força. A distância daquilo que deveria ser e é na realidade sugere o paradoxo em questão. A economia é o universo que ordena toda a vida social a partir dos interesses da classe que defende a modernidade a partir das suas conquistas, mas que estão longe de ser para todos.
A produção cinematográfica depende de razoáveis recursos para existir. É por isso uma arte de muitos custos e difícil acesso por conta dos equipamentos necessários. É claro que a produção é adaptável a uma determinada realidade material, mas isso tem seus limites. Filmar algo e montar exige um custo, por exemplo da mão-de-obra e dos equipamentos utilizados. Se a produção envolve mais de uma pessoa há também os custos do pessoal envolvido, pagamento, alimentação e transporte. Por mais que haja importantes recursos advindos do Estado para o financiamento e distribuição de obras cinematográficas, sabemos que as políticas que regem este campo são ordenadas por cartas marcadas. Marcam-se as cartas de acordo com sua capacidade ou não de concorrer em meio a um universo de produtores de calibre muito maior e mais preparo e que, portanto, comumente acessam tais recursos e dessa forma se estabelecem no mercado. A chance de um produtor pequeno conseguir até mesmo verbas menores é reduzida se este não estiver inteiramente disposto e organizado para isso. Este é o primeiro passo para o caminho da profissionalização do cinema. Os gastos para ter uma produtora legalizada e regularizada são enormes e de fato poucos têm este privilégio. Por mais que haja um sem número de produtores espalhados pelo país, a grande maioria permanece sem qualquer apoio por parte do Estado ou capital privado. No entanto, é no universo dos produtores independentes que o Capital lança seu olhar em busca por novidades, ávido em cooptá-los na busca por suprir a miséria criativa do mercado. A autogestão, ao passo que é propositiva em formar e consolidar novas bases de organização horizontal, equânime, contribui para tornar mais explícito o que de fato representa esse antagonismo, que tanto tratamos e falamos em teorias. Isso se dá porque a autogestão é incompatível com o mercado, com a burocracia e a verticalidade desses sistemas. Onde há mercado não há autogestão. Os produtores no capitalismo, ou seja, os trabalhadores, estão presos a um modelo em que o trabalho é apenas uma forma de garantir a manutenção da sua mão-de-obra, que depende de condições mínimas de existência. O salário é a recompensa por esse esforço, que não chega a resultar em ganhos ao próprio trabalhador, mas a um agente externo à produção, que na verdade possui o monopólio dos meios de produção. Isso tudo coloca o artista ou o produtor diante de um desafio enorme. Ele precisa pensar as adversidades a que está submetido, compreender a natureza dessas adversidades e como superar este estado de coisas. Isso se dá por conta de uma formação deficitária da maioria dos artistas.
A crise do artista é também a crise de toda sociedade. A classe artística não é nada homogênea e reproduz no seu interior, tal como diversos outros segmentos e estruturas societárias, as mesmas contradições da sociedade de classes. Vive suas pequenas misérias e engalfinha-se em competitividades tenebrosas. De uma forma geral, os artistas, na medida em que se expressam através da arte, aproveitando seus espaços de fala, demonstram incrível incapacidade crítica com relação aos principais problemas sociais. Pensemos, então, a relação da arte e do artistas na sociedade capitalista. O protesto, na medida em que ativa os ânimos, estanca sua raiva na sua própria incapacidade de modificar as relações necessárias na superação de contradições. A despolitização da arte tornou o artista descartável e inofensivo. Ele obedece aos ordenamentos em troca de algum diferencial, como status, contratos ou visibilidade. O cinema, o teatro, mas principalmente a música, esvaziam-se cada vez mais. Nos novos nomes da música popular, da MPB ao rap, o que impera é a miséria. São bons esteticamente, tocam seus instrumentos maravilhosamente bem, mas o sumo é pautado por uma arte fundamentalmente capitalista e uma mentalidade pequeno-burguesa, o que não necessariamente invalida suas expressões e produções, tendo apenas esta um caráter adverso de uma arte emancipatória revolucionária. E as relações também se norteiam por este parâmetro.
O lugar da arte e do artista parece que se tornou o lugar de poucos que concentram seus pequenos poderes, frequentando ambientes badalados com outros grandes nomes da arte, que reforçam seus pequenos núcleos com alguns poucos selecionados contemplados. O hall dos simulacros muito bem frequentado é a nova cara do espetáculo. Quem não quer estar lá? A função dessa arte hoje, por mais diversa que possa parecer, confina-se na busca pela sobrevivência através da competição, portanto, quem chega lá são os merecedores e os mais competentes, de acordo com parâmetros construídos para um fim muitíssimo específico. A arte, no capitalismo, tem uma função específica. Em primeiro lugar, ela só é reconhecida como arte não meramente por existir como expressão humana que guarda igual valor, como as demais expressões produzidas pelo gênero humano, restando uma relação utilitária e fetichista. Isso asfixia a arte, criando pequenos guetos e pouca resistência. Em segundo lugar, as relações, de um modo geral, são mediadas por interesses. Nas sociedades capitalistas estes interesses estão notadamente relacionados ao mercado e ao capital. As relações são atravessadas pelo trabalho, por sua vez fortemente vinculado à garantia da produção e consumo mercantil. O trabalho apenas não basta. Ele deve servir à produção ininterrupta de mercadorias, que o próprio trabalhador é impedido de consumir. A arte, portanto, torna-se mercadoria como qualquer outro produto a ser consumido. Em terceiro lugar, o trabalho, quando não serve aos interesses centrais do capital, é visto como algo menor ou simplesmente um trabalho improdutivo e, portanto, inútil. Isso faz com que a parcela que não entra no hall do consumo passe inevitavelmente a compor uma espécie de limbo da produção, cada vez mais distante da possibilidade de garantir a sua própria sobrevivência. Este limbo também é consequência de segmentos da cena mais abastados, que funcionam cooptando e neutralizando setores mais combativos, principalmente. Por isso, a arte no capitalismo não tem uma utilidade qualquer. Assim, tudo o que houver de mais subversivo é visto como degenerado, rústico ou arcaico, neutralizando a singularidade e aquilo que de mais potente há na produção. Esse crivo milimetricamente arranjado passa a ordenar e tão logo determinar o que deve e o que não deve ser visto e consumido, corroborando o esquecimento, construindo limbos auto-degenerativos retirando toda responsabilidade do mercado na construção dessas prisões. Arte é trabalho, e isso tem forte significado. “Marx” — , diz Marshal Berman, — “vê o trabalho como uma fonte fundamental de sentido, dignidade e autodesenvolvimento para o homem moderno”. O trabalho dá sentido à vida, pois transforma e integra o produtor numa relação de totalidade onde seus esforços inferem diretamente no campo social. No entanto,
“o trabalhador mortifica seu corpo e arruína sua mente, só sentindo-se ele mesmo fora de seu trabalho, e quando está em seu trabalho parece estar fora de si mesmo. Ele só se sente em casa quando não está trabalhando e, quando está trabalhando, nunca se sente em casa. Seu trabalho, portanto, não é livre, mas coagido. É trabalho forçado.” (Marx)
Ao estancar a produção artística por qualquer que seja o motivo, há um duplo prejuízo. Em primeiro lugar para o próprio artista, que não disporá mais da sua principal ferramenta; e em segundo lugar para a sociedade, que carecerá de maiores contribuições na produção da cultura, facilitando o controle das redes de mercado. O trabalho é o elemento fundamental de qualquer sociedade. Na sociedade capitalista ele serve como forma primária da própria alienação humana, pois quando a produção está distanciada do produtor (em todos os sentidos), não há como pensá-lo para além da mera escravidão. A alienação, segundo Giovanni Alves, “é o ato/processo histórico de perda/despossessão dos meios de produção/controle da vida social que constitui a condição sócio-existencial de estranhamento”. O artista vive o paradoxo entre sobreviver no capitalismo e fazer arte, e até que se encontre uma solução para isso há um inevitável desgaste permanente que fará parte de todo esse processo. Existe um enigma a ser resolvido pelos artistas e produtores, que diz respeito aos aspectos gerais da cultura e da arte, assim como a sua sobrevivência como artista no campo individual. Isso comumente já faz parte da pauta de todos. Não se trata só disso. Esse problema torna-se ainda mais complexo se pensarmos que a resolução de boa parte das contradições (eu diria as principais, como a liberdade de criação e veiculação das produções e condições concretas para a realização dessa arte), só pode ocorrer num estágio avançado das lutas em prol da construção de um novo modelo de sociedade. A arte se emancipa junto com a sociedade e deve andar a galope com outras esferas do campo social, disputando cada centímetro. A arte e o seu fazer mudam quando a sociedade acompanha este movimento. As experiências de arte que temos no capitalismo, no entanto, estão aquém do que a arte de fato pode oferecer, ainda que cumpra função importante na socialização e emancipação das pessoas dentro das micro-esferas societárias. Não se trata somente de um paradoxo ou de como saber lidar com o mercado. O mercado tem suas próprias regras, submete-se aquele que necessita sobreviver, não aquele que quer. Neste sentido não há escolha. Com isso, não se quer atestar a irreversibilidade do capitalismo como único sociometabolismo capaz de gerir as relações humanas. Eis parte da complexidade do enigma sobre o qual devemos nos debruçar.
As imagens que ilustram este artigo são do filme Fitzcarraldo (1982), de Werner Herzog.