Uma análise política mais densa é indispensável para avaliar o real papel da militância de Mário Pedrosa na história da esquerda no Brasil e ressaltar mais enfaticamente seu legado. E é justamente deste legado que se tratará na sexta e última parte desta “biografia política”. Por Manolo
Ao avaliar a vida e a obra de um militante, é fácil, a depender do caso, enredar-se pelas idas e vindas, pelas aventuras e exílios, pelos rompantes antiautoritários, e mesmo pelo drama pessoal. Temos já à disposição uma série de “santos” do movimento anticapitalista, e seria muito fácil canonizar Mário Pedrosa e concluir o estudo de sua militância com uma simples conclamação a “seguir seu exemplo”.
Não é este o caso aqui.
Se a militância política de Mário Pedrosa foi escolhida como tema desta série de artigos, foi única e exclusivamente para ilustrar os caminhos e descaminhos, no Brasil, de uma parte da esquerda que pretendia manter-se anticapitalista ao mesmo tempo em que fazia a autocrítica da experiência da grande onda revolucionária que se espalhou pelo mundo desde fins do século XIX até a segunda década do século XX. Pedrosa foi, talvez, um dos militantes mais capazes e articulados desta corrente, tanto em questões políticas quanto na análise da estrutura do capitalismo em diversos momentos históricos; a escolha da análise de sua vida não foi nem um pouco acidental.
1. Questões de origem social
Uma primeira observação é sobre a origem social destes militantes. Uma pista interessante vem do depoimento de Luciano Martins:
Certa vez perguntei a Mary Houston (…) quantos eram, afinal, nessa época os trotskistas do Brasil liderados por Mario. Ela custou um pouco, e afinal respondeu: “Talvez uns 20”. Ao que Mario acrescentou rápido: “Mas tínhamos um operário”.
A resposta de Pedrosa, certamente, veio com certo ressentimento – talvez, daí, seu automatismo. A análise tradicional da composição social dos meios trotskistas brasileiros da primeira geração (que abrange o período que vai da fundação do Grupo Comunista Lenine até os últimos dias do Partido Operário Leninista), muitas vezes lançada em tom de acusação, é simplória, mas bastante realista: eram militantes oriundos de famílias ricas, geralmente com educação universitária (advogados, médicos, engenheiros etc.) ou que se tornaram conhecidos por alguma atividade na área cultural (pintores, romancistas, poetas, escultores etc.). A exceção era daqueles que, vindo de famílias menos abastadas, viviam da comunicação social (jornalistas, tipógrafos, revisores etc.). Esta origem – “pequeno-burguesa”, no dizer dos stalinistas igualmente “pequeno-burgueses” de então – certamente abriu-lhes maiores possibilidades de acesso à cultura erudita, às artes, à literatura, aos clássicos da filosofia e da política; o trânsito em tais meios deu-lhes um “quadro de referência intelectual” mais amplo a partir do qual interpretar o mundo.
A amplidão deste “quadro de referência intelectual”, ao mesmo tempo em que lhes assegurou a bagagem necessária para analisar criticamente tanto a conjuntura política quanto a própria militância, era exatamente o que os separava dos operários semi-analfabetos que pretenderam trazer para suas organizações. Muito embora houvesse um esforço gigantesco dos movimentos revolucionários da época para alfabetizar os filhos de operários – o movimento educacional anarquista do início do século XX dá testemunho disso – e abrir espaço para a produção cultural destes mesmos operários – o teatro operário do mesmo período é bastante prolífico – é muito difícil supor que este abismo cultural houvesse sido transposto. Este é, talvez, um elemento central da dificuldade destas correntes em tornar-se movimentos de massa, como pretendiam.
Esta origem de classe traz um inesperado ponto em comum entre esta geração de socialistas e os stalinistas, tenentistas, e mesmo com os tão odiados galinhas verdes de então: para todos eles, sem exceção, era necessário superar o atraso representado pelas oligarquias rurais, era necessário industrializar o país, era necessário criar uma cultura urbana.
Mesmo para os trotskistas, como Pedrosa, que recusaram desde sempre a divisão operada pelo PCB entre uma burguesia atrasada (agrária) e uma burguesia progressista (industrial), a industrialização do país era mesmo uma necessidade; muito embora preferissem uma industrialização “nacionalizada” levada a cabo por um Estado operário responsável por uma economia planificada, tratava-se, ainda de uma reivindicação formulada pelas classes médias urbanas, não por um proletariado ainda incipiente.
A divergência entre as diferentes formulações políticas destas frações das classes médias urbanas eram sobre como industrializar o país, sobre os resultados sociais desta industrialização, mas quanto à própria industrialização como objetivo o consenso era generalizado. Pelas tortuosas vias da História – que não garantem a qualquer grupo a plena realização de seus projetos políticos – isto eles conseguiram.
2. Questões de ordem política
Os constantes recomeços políticos de Mário Pedrosa refletem as dificuldades características dos militantes da esquerda “não-alinhada” no Brasil, especialmente durante o período da Guerra Fria. Diz Pedrosa, como que cônscio dos limites de sua militância:
As experiências políticas, sociais e econômicas tão profundas e tão decisivas por que passaram os povos europeus nos anos de guerra (naturalmente) mas nos anos anteriores entre a grande depressão e a grande guerra não foram direi assimiladas, mas sequer estudadas e muito menos compreendidas. Nos partidos comunistas imperavam o monolitismo sáfaro e, no fundo, retrógrado do stalinismo, a mais terrível estreiteza teórica e uma combinação do oportunismo com um sectarismo organizatório do mais completo feitio totalitário. A União Soviética fazia então uma política de feroz realismo nacional russo nos países ocupados (amigos ou inimigos) e no jogo com as outras grandes potências de um oportunismo realmente digno delas. Os socialistas (ou comunistas) restantes pelo mundo, quando lúcidos, eram impotentes; quando carregando ainda poderosas massas trabalhadoras atrás deles, não tinham independência em face de seus respectivos governos nacionais e ainda mais rotineiros e sem princípios, no seu oportunismo visceral, que os stalinistas. Daí resultou a impotência teórica generalizada no mundo imenso do socialismo numa prática, consequentemente, inconsistente, contraditória, do mais baixo empirismo. Deste então, o mundo político passou a viver ao deus-dará.
É um excelente resumo dos problemas enfrentados pelos socialistas “independentes” no período. O depoimento de Luciano Martins, citado na exposição do período 1950-1964, testemunha as dificuldades desta corrente durante a Guerra Fria, quando o pensamento mais comum entre os militantes – comunistas ou do falso “mundo livre” capitalista – era “quem não é meu amigo é meu inimigo”.
Uma das dificuldades, talvez um dos principais entraves desta corrente, foi confundir democracia com democracia parlamentar. O PSB é exemplo claro disso. Sua composição interna era bastante diversificada, como revela Paul Singer:
O Partido Socialista tinha, muito parecido com o PT, uma série de alas. Havia uma ala stalinista, chamada de linha auxiliar. Eram simpatizantes do Partido Comunista que achavam que devia haver uma legenda de esquerda legal aliada do PC. Havia um grupo de ex-trotskistas: Febus, Fúlvio, Aristides Lobo e Mario Pedrosa. Havia os cristãos: Domingos Velasco, deputado na Assembléia Constituinte e senador, João Mangabeira, tipicamente um homem liberal que foi avançando e se tornou um convicto socialista.
Não era raro que o núcleo mais à esquerda – a “linha auxiliar”, os “ex-trotskistas”, os “socialistas independentes” de São Paulo etc. – se visse obrigado a adotar a linha do setor mais moderado. Mesmo quando conseguiam vitórias sobre o setor moderado, como no caso da candidatura de João Mangabeira à presidência em 1950, este núcleo se via condenado ao ostracismo. É certo que estes compromissos, somado à origem social destes setores mais à esquerda, comprometeram qualquer possibilidade de ligar diretamente o PSB a núcleos de trabalhadores. O diagnóstico de Antonio Cândido é certeiro: o núcleo mais à esquerda do PSB – e não só Mário Pedrosa – “estava confiando demais nos liberais, como aconteceu com diversos setores da esquerda como reação contra a ditadura stalinista”.
O PSB, atrelado desta forma aos ”liberais” e enredado em inúmeros compromissos de ordem eleitoral, foi incapaz de contribuir com a construção de uma plataforma política independente dos trabalhadores – que, àquela altura, já haviam-se transformado no fiel da balança política. Ao não conseguir dar vazão às reivindicações, por mais simples que fossem, dos trabalhadores – e, consequentemente, não ser capaz de colocar seu programa e suas reivindicações sob seu controle direto e imediato – permaneceu como partido da ordem, mesmo mais “à esquerda” – e a contragosto da “linha auxiliar”, dos “ex-trotskistas”, dos “socialistas independentes” e outros da mesma corrente. Dentre outros inúmeros fatores conjunturais, a baixa identificação dos trabalhadores com o programa do partido, e mesmo com seus integrantes (intelectuais em sua maioria), condenou-o ao jogo político tradicional.
Até o surgimento da Organização Revolucionária Marxista – Política Operária (POLOP), em 1961, o PSB seria a única organização onde socialistas críticos da experiência soviética encontrariam guarida; e mesmo a POLOP, por ser uma organização clandestina estruturada à velha maneira bolchevique, teria pouca inserção entre trabalhadores.
4. A herança política de Pedrosa
Apesar dos pontos já vistos, há muito ainda a absorver de Pedrosa.
Em primeiro lugar, e talvez mais importante, Pedrosa foi, talvez, o primeiro intelectual a romper com o estatocentrismo característico do pensamento político brasileiro. De Cipriano Barata – primeiro militante “de esquerda” no Brasil, ainda nos tempos da colonização portuguesa – à última geração de intelectuais ensaístas “modernos” – Florestan Fernandes, Octavio Ianni, Sérgio Buarque de Hollanda, Nelson Werneck Sodré, Celso Furtado etc. – todos tiveram como característica comum, em maior ou menor grau, ter o centro de suas reflexões políticas no Estado; Pedrosa, em A opção imperialista, rompe com esta tradição e inaugura uma nova linhagem de pensadores políticos no Brasil – como Maurício Tragtenberg, Fernando Prestes Motta, Ricardo Antunes etc. – que passou a ter na fábrica, na corporação capitalista e, posteriormente, nas relações de trabalho o centro de seu interesse.
(Antes que venham as reprimendas e patrulhas: não se propõe, aqui, de forma alguma, o abandono da análise do Estado. Acontece que uma análise estatocêntrica da sociedade, mesmo profunda e detalhada, é caolha, porque desconsidera as malhas do poder existentes na produção econômica, na quase imperscrutável exploração dos trabalhadores no setor privado, nas articulações entre grandes empresários, e destes últimos com o próprio Estado.)
Esta ruptura, entretanto, não foi completa. Mesmo em A opção imperialista não se pode dizer que Pedrosa haja removido de sua perspectiva o Estado como ente planejador, como propulsor do desenvolvimento econômico ou mesmo como sujeito político autônomo (característica marcante de sua leitura do imperialismo). A longa parte terceira de A opção imperialista, não obstante, disseca obsessivamente as contradições internas da grande corporação capitalista, seu papel nas estruturas do capitalismo mundial e como órgão do imperialismo – tendente, segundo Pedrosa, a dominar o Estado sempre que seus interesses fossem contrariados. Daí conclui que é ela a instituição central da vida moderna, que é a esfera de poder menos sujeita a controle social e que mais influencia a vida cotidiana das pessoas. Sintetiza:
“Na indústria moderna, a liberdade é necessariamente subjugada”. Como se vê, o advogado rooseveltiano não tem preconceitos sentimentais, e com uma pena liquida as veleidades democráticas do homem da civilização industrial moderna, diga-se capitalista. Onde a liberdade individual é subjugada? No setor mais importante da vida moderna, no local de trabalho, na oficina, na fábrica, na empresa. Como é possível reinar aí a autocracia e a liberdade em outras partes? Ou mesmo nos dias de domingo, quando o cidadão em lugar de ir à partida de basebol é chamado a votar? Com sua descrição, ele revela o caráter antagônico, não socialmente racional, da grande corporação capitalista. Os dirigentes, sobretudo os maiores, são tirados dos mais altos círculos de negócios e, frequentemente, promovidos pela herança do sangue ou do dinheiro, como já vimos.
Em tempos de “cidadanismo generalizado” e “participativismo acrítico”, as palavras de Pedrosa – que já têm quarenta e três de idade – soam como alerta saudável.
A ruptura só foi possível a Pedrosa pela sua capacidade de articular informações das mais diferentes origens. Para Pedrosa, tudo era fonte de informações, tudo eram sinais do desenvolvimento político: desde as obras clássicas da literatura socialista até o alvorecer da “civilização dos Hotéis Hilton”; desde quase inacessíveis relatórios da ONU – lembrem-se que a internet era, então, sonho distante de autores de ficção científica – até os mais banais jornais do dia; desde publicações as mais radicais como Socialisme ou Barbarie até as mais reacionárias obras da sociologia industrial estadunidense e alemã. Foi este “marxismo arejado” de Pedrosa que lhe permitiu perceber no desenvolvimento das grandes corporações o “setor mais importante da vida moderna”. Algo a ser recuperado quando militantes das mais diversas origens e correntes engessam acriticamente, quase como bíblias, textos ditos “clássicos” que, com tal uso, perdem sua potência política.
Da mesma forma, Mário Pedrosa foi não o primeiro – anarquistas como José Oiticica, Florentino de Carvalho e Edgar Leuenroth têm esta primazia – mas certamente um dos mais importantes propagandistas, nos meios socialistas brasileiros, da autogestão da sociedade pelos trabalhadores.
Há aqui uma aparente contradição: como é possível que um partidário da autogestão se envolva na construção e na militância de tantos partidos políticos ao longo de sua vida? A bandeira da autonomia e da autogestão, no longo período que vai do Estado Novo até o fim da década de 1970, não havia sido levantada por anarquistas, e apenas por eles?
Não é possível esquecer que, com relação à construção do PT, mesmo correntes autonomistas da época circulavam documentos indicando que o caminho mais correto, naquele momento, era a construção do partido [1]<!–[endif]–>. Mesmo os anarquistas que escreviam para O Inimigo do Rei viam em Lula, a princípio, uma liderança com “características anarco-sindicalistas”. O movimento que resultou nas greves do ABC Paulista esteve em constante disputa por toda e qualquer corrente política existente, e elas – salvo os anarquistas, por razões evidentes, e os dois partidos comunistas, por questões de divergência tática (afinal, cada um deles era “o” partido dos trabalhadores) – tenderam a ingressar progressivamente no PT.
Pedrosa foi destes que viveu por dentro as contradições de militar num partido e desejar a autogestão. Diria, sobre a luta anticapitalista:
…a luta de classes não é nenhum processo selvagem de destruição e de violência desregrada, nem é uma ganga de mina da qual o indivíduo não possa desprender-se. Os melhores, ao contrário, poderão dela destacar-se para servir aspirações mais universais, a causa generosa do povo. A experiência histórica tem mostrado que ao concorrer para a melhor organização dos elementos de defesa e afirmação social das camadas populares e proletárias da sociedade vai a luta de classes perdendo em violência, em virulência, em explosões súbitas, como outrora, de rebeldes famintos, de escravos oprimidos, de negros perseguidos (nos Estados Unidos e na África, e outrora no Brasil, no Haiti) e a se desenrolar em processos de luta organizados, bem delimitados, viris mas disciplinados. (…) Assim, a “revolução proletária”, ao chegar à ordem do dia, seria dirigida – nos países de alto desenvolvimento, naturalmente – por uma classe operária senhora de seus destinos, tendo o que perder, rica em quadros experimentados em todos os setores da vida social e cultural, forte de suas poderosas organizações sindicais, políticas, culturais etc. Pesando os prós e os contras, disputaria ela o poder à classe dominante na defensiva, não, porém, através de barricadas românticas, mas através de eleições, manifestações, ação parlamentar, sindical e a greve geral planejada, se fosse necessário. A luta de classes, assim – e o pensamento vem direto de Marx e de Engels – não é necessariamente um processo de agravamento de violências e subversões, nem de caos, mas pode ser um processo de disciplinação, educação e criatividade das massas proletárias.
É este o mesmo Mário Pedrosa que tanto se entusiasmaria com a força dos trabalhadores chilenos, seis anos depois?
Em contrapartida, quanto mais subdesenvolvido um país, mais plebeu, mais popular, mais violento será seu processo revolucionário. (…) As nossas reformas são a revolução dos subdesenvolvidos – revolução mais ampla e menos definível, mais contraditória e complexa, mais impetuosa e mais plebéia, mais popular, isto é, menos homogênea socialmente. Ela é todo um processo de mudanças contínuas nas estruturas da sociedade, desde uma alteração profunda no dinamismo social das populações rurais, em que uma velha classe de proprietários fundiários desaparece para dar lugar a uma nova classe de capitalistas agrícolas em face de um novo proletariado rural direta e organizadamente assalariado, a uma modificação não menos radical na ordem econômica geral, com crescimento considerável do setor da propriedade pública até colocar sob o seu controle as principais alavancas de comando da economia nacional. O peso específico da classe trabalhadora tende a aumentar e o crescimento das forças produtivas irá depender de mais a mais das técnicas de planejamento e de uma política de investimentos de caráter acentuadamente social. Ela também cisa a dar às populações que vivem no interior de seu território um sentimento novo, o de uma participação coletiva num todo nacional cultural enfim acabado ou completo, capaz de falar, entender-se, comunicar-se com o mundo num acento que lhe é próprio. (…) As reformas de estrutura de que tanto se fala, precisam de dois requisitos para assim serem definidas: participação direta, cooperação ativa na sua execução, do povo, das camadas de rendas mais baixas e médias, ao contribuírem para “controlar o consumo dos ricos”, e término da exploração das massas proletárias pelo imperialismo. (…) Emendar o sistema não é a tarefa dos subdesenvolvidos: estes o que têm a fazer é criar um sistema, o sistema deles, um sistema novo que não caia depois no impasse ou no círculo vicioso e viciado do neocapitalismo. (…) A despeito de todos os bons pastores da moderação, ordem e paciência e de primeiro educar para depois melhorar, os povos subdesenvolvidos não podem esperar. Não há escolha aberta entre querer um ritmo mais lento ou mais rápido de desenvolvimento econômico. (…) Todo governo de país não desenvolvido terá de fazer o máximo para empurrar para a frente, tão rapidamente quanto possível, o esforço reformador. Um ritmo lento de desenvolvimento econômico implica graves perigos sociais e políticos (…).
É todo um programa. Outras passagens poderiam ser citadas para demonstrar o que, no vocabulário político de Pedrosa – certamente bastante diverso do que se emprega hoje nos meios anticapitalistas – seriam os métodos para implementar este programa.
Mas uma, apenas, parece ser fundamental para entender a principal contradição na estratégia revolucionária apontada por Mário Pedrosa em A opção imperialista. Ao analisar as contradições sociais entre a produção coletivizada e a apropriação privada existente nas grandes corporações, Pedrosa aponta que, mesmo aí, o movimento dos trabalhadores percebeu o fato antes dos doutrinários burgueses:
Na Europa os aspectos sociais mais profundos da empresa, quer dizer, seu destino em outro modelo de sociedade, tomavam vulto, em virtude do clima revolucionário, anticapitalista, ali prevalecente. A idéia de sovietes ainda estava no ar, como a suprema aspiração da classe operária. Os operários, por seus partidos e líderes, queriam disputar ao capitalista, ao industrial, o domínio sobre a empresa. “Todo o poder aos sovietes”, lançado então pelos comunistas e socialistas independentes, queria dizer exatamente isto: o controle operário sobre a empresa capitalista. A nova ordem revolucionária socialista daí viria. Quando a vaga insurrecional na Europa Central e Itália refluiu, a empresa capitalista, campo de batalha decisivo entre classes em conflito – a classe trabalhadora e a patronal – foi largada à sua sorte: voltou a ser a fábrica do patrão. (…) …o problema da empresa, da corporação, não deixou por isso [o renascimento do capitalismo após a vaga de ocupações de fábricas entre 1917 e 1936] de existir. Desta vez, porém, o que se vê é uma fase de evolução do interior mesmo do sistema. Agora, trata-se da empresa vista do lado “de cá”, isto é, do lado patronal-capitalista, quando, em outra etapa histórica, ela era vista do lado “de lá”, isto é, do lado dos “bárbaros”, ao de fora da cidadela. Da “comuna”. (…) …para transformar-se não será preciso muito, apenas uma alteração nas relações jurídicas que a regem, redefinindo-a na ordem do Estado; dentro dela, há que fazer passar à gestão coletiva, segundo o princípio de que não pode mais haver separação entre direção e execução, dirige quem executa, executa quem dirige, são dirigentes os que trabalham, são trabalhadores os que dirigem. Dentro dela os que trabalham não são todos, em maior ou menor grau, trabalhadores produtivos. Os trabalhadores não querem mais ser um parafuso mecânico na engrenagem produtiva. Querem saber o que estão fazendo, ter participação no processo total, tomar conhecimento de para onde vão, deixar de ser alienados no processo social do trabalho de que são peças. A direção capitalista da corporação, com toda a sua abertura progressista, é alienante, anti-social e reacionária, privatista. Se ela quer fazer do Estado seu Estado, mas sem intermediários, sem representantes, isso corresponde, em planos paralelos, à reivindicação mais profunda e de maior alcance social e cultural dos trabalhadores dos países de alto desenvolvimento, na Rússia como nos Estados Unidos, na Inglaterra como na Alemanha, Suécia e até na Iugoslávia, onde há um esforço conscientemente oficial nesse sentido: o de que as funções gestionárias sejam coletivas, não havendo mais lugar para medianeiros e representantes seus na direção da produção, mas eles mesmos, como trabalhadores, como produtores, com sua própria experiência, seus conhecimentos, seu ângulo de visão próprio. A “democracia direta” que proclamava o velho Rousseau como meio de exprimir a vontade do povo ou da maioria é aí que se manifesta ou se pode realizar. O conceito de representação da vontade do povo, da maioria, deve ser arquivado num museu de antiguidades. Pertenceu a uma outra civilização, civilização de minorias que encontrou no mecanismo da representação o segredo da perpetuação de seu poder, de sua riqueza e propriedade. A vontade da maioria não é o monstro abstrato incapaz de expressar-se a si mesmo inventado por Rousseau. É hoje um concreto manejável, sociologicamente verificável, que se exprime diretamente de mil maneiras e em mil escalões, nos limites dos vários “todos sociais” de que se compõe a sociedade. Mas é sempre uma relação direta e mútua, como corrente e contracorrente, entre dirigentes e executantes. Quer dizer sempre intercambiável. Eis o socialismo. (…) …a verdadeira transformação social econômica, ou a luta pelo socialismo tem de girar, em sua essência econômica, em torno da empresa e dentro da empresa. Tudo o mais não significa, socialmente, um empenho concreto pela transformação socialista. Pode ser uma luta política pelo poder; esta luta pode ser tática ou estrategicamente indispensável, mas não é nela que está a verdadeira alavanca para a transformação qualitativa e a implantação de um regime socialista da propriedade. (…) As etapas dessa luta pela conquista, ou melhor pela remodelação da empresa ou corporação podem diferir e diferirão profundamente pelos diversos países, conforme seja num país de altíssimo capitalismo, num país de capitalismo de Estado – como, sob vários aspectos da economia soviética, a Rússia ainda é – ou num país em caminho para o desenvolvimento como o Brasil.
Seria um exagero querer transformar Pedrosa, por força destas palavras, em algo como um “comunista de conselhos” na linha de Pannekoek, Gorter, Rühle etc. Além de sua própria vida política contradizer esta conclusão – ainda em 1966, ano da publicação de A opção imperialista, de onde saíram estas linhas, seria candidato a deputado federal pelo MDB – o próprio Pedrosa não cansava de dizer, tal como na advertência final desta longa e necessária citação, que as estratégias da revolução nos países de “alto desenvolvimento” e nos países “subdesenvolvidos” são diferentes.
É esta a contradição do “Pedrosa autogestionário”: ao mesmo tempo em que dá a mais absoluta primazia à organização independente da classe trabalhadora, em que reconhece e legitima teoricamente suas lutas mais avançadas – ocupações de fábricas, reivindicações de controle operário etc. –, limita seu alcance aos países mais desenvolvidos. Não quer “impor” esta estratégia aos países subdesenvolvidos, mas, tendo em vista as lutas concretas que testemunhou até 1966, não as reconheceu como parte integrante da tradição da luta dos trabalhadores nestes lugares. A – breve – experiência dos conselhos de fábrica em Contagem e Osasco, assim como a – abortada – experiência dos cinturões industriais no Chile sob o governo Allende demonstrariam o contrário. Mesmo assim, observando, ao retornar do exílio, que das lutas operárias no Brasil saía como produto um partido que concretizaria seus “ideais de juventude” de um partido feito por operários, lançou-se à sua concretização.
Pedrosa não viveu o suficiente para fazer – quem sabe! – um balanço da estratégia revolucionária bifurcada que apresentou nas duas Opções à luz de sua experiência no Chile, ou mesmo para nos brindar com novas análises sobre os processos de luta dos trabalhadores num Brasil já industrializado. Deixou-nos esta monstruosa tarefa como legado. “Mas”, em suas palavras, “deixemos o galo cantar ainda na madrugada”.
NOTA
[1] Certo documento intitulado 11 Teses sobre a Autonomia foi analisado pela revista Teoria e Política em 1980 (“A questão do partido e o autonomismo”. Teoria e Política, ano 1, n.º 2, 1980), e as teses IX, X e XI, segundo a análise da revista, indicam exatamente este caminho. Sobre este assunto, uma curiosidade histórica a ser compartilhada. No editorial desta edição de Teoria e Política, está dito: “Em ‘A questão do partido’, Ozéas Duarte de Oliveira refuta a crítica autonomista à concepção leninista do partido proletário e detecta o caráter espontaneísta e reformista do autonomismo”. Ozéas diz, em nota de rodapé, que as 11 Teses submetidas à sua crítica vem “sendo difundidas nos círculos de esquerda desde setembro de 1980”. Tendo em vista que o conselho editorial desta revista era composto por ninguém menos que Armando Boito Jr., Caio Navarro Toledo, César Queiroz Benjamin, Daniel Aarão Reis, Décio Saes, Horácio Martins de Carvalho, Pedro Bocaiúva e outros de igual “peso”, e que ninguém dedica seu tempo a “bater” em organizações pouco relevantes na conjuntura – alguém já viu, por exemplo, Altamiro Borges escrever algum artigo sobre as táticas da Liga Estratégia Revolucionária (LER), Frei Beto criticar as posições da União Popular Anarquista (UNIPA), ou ainda Boaventura de Sousa Santos dedicar-se a comentar algum artigo d’O Corneta, jornal de fábrica do Movimento Negação da Negação (MNN)? – estas teses são documento fundamental a ser localizado e posto novamente em circulação, e os caminhos – ou descaminhos – daqueles que o escreveram precisam ser analisados. A história do autonomismo na década de 1970 no Brasil precisa ser retirada do esquecimento, assim como a história do ressurgimento do movimento anarquista a partir de 1977 com a publicação do jornal O Inimigo do Rei. Ganha uma paçoca quem apresentar estas teses ao Passa Palavra primeiro.
REFERÊNCIAS
Todas as citações de Mário Pedrosa foram retiradas de A opção imperialista. O depoimento de Paul Singer vem de entrevista concedida a Paulo Vanucchi e Rose Spina publicada na revista Teoria e Debate (n.º 62, abril/maio 2005). O depoimento de Luciano Martins vieram de seu artigo “A utopia como modo de vida (fragmentos de lembrança de Mário Pedrosa)”, publicado no livro Mário Pedrosa e o Brasil organizado por José Castilho Marques Neto (São Paulo, Fundação Perseu Abramo, 2001).
Achei outras referências às “11 teses sobre a autonomia”. Elas foram publicadas na revista Desvios, que existiu entre 1982 e 1985, de cujo corpo editorial participaram Marco Aurélio Garcia, Marilena Chauí, Vera Silva Teles, Eder Sader e outros. A revista, editada pela Paz e Terra, foi uma tentativa de aglutinar os intelectuais engajados na fundação do PT em torno de um órgão de imprensa comum. Se observarmos que Marco Aurélio Garcia e Eder Sader escreveram apresentações para livros de Cornelius Castoriadis traduzidos para o português, dá para imaginar o tipo de autonomia que defendiam. Mais detalhes podem ser lidos, por exemplo, no artigo “A invenção radical da democracia“, de Silvana Tótora, publicado no livro Sociedade, cultura e política: ensaios críticos, organizado por Ana Amélia da Silva e Miguel Chaia (São Paulo: EDUC, 2004).
Caro Manolo, li seu ensaio sobre Mario Pedrosa.Tenho um quase livro sobre Mario Pedrosa,e que intitulei de “M.Pedrosa=um tipo curioso”,expressão que Trostsky usou em relação a mario.Gostaria de te enviar esse meu trabalho.
no trabalho tento articulkar as visões do campo da critica de arte e da praxis politica de M.Pedrosa em um ‘visão de mundo’.Pois separa-se muito o Mario critico de artes e o Mario militante politico.Alias,o Seminario da fundação Perseu Abramo,os 100 anos de Pedrosa,foi montado deste jeito= um dia de testemunhos (Candido,Leila,Singer),outro sobre o critico de artes (Otilia Arantes,etc) e o outro sobre o militante politico (Garcia,etc).
“Passepalavra” ‘publicou’ uma parte desse meu trabalho no que diz respeito a “M.Pedrosa e a Autogestão”.
Tbem o site publicou outro que fala da “DESVIOS” e dos grupos que debatiam a autogestão e autonomia no Brasil.O ensaio chama-se “Gaos,oposição sindical no exilio”.
Abraços.
muito bom quero compartilhar com as rededs sociais
ABAIXO, “11 TESES SOBRE AUTONOMIA”. QUANTO À PAÇOCA, I WOULD PREFER NOT TO…
11 teses sobre autonomia
Set/1980
As “11 Teses sobre a Autonomia” foram escritas em 1980 para aprofundar um debate entre militantes que encetavam uma crítica aos referenciais teóricos dominantes na esquerda e buscavam novos fundamentos para a relação entre a teoria e a prática políticas. Pelo seu objetivo mesmo, tratou-se de um texto provisório, reunindo várias ideias que amadureciam nas cabeças dos seus autores mas cujo alcance e articulação mal estavam apreendidas. Visava-se provocar a discussão e por isso não se preocuparam com evidentes precariedades em várias formulações. Sua circulação ultrapassou de muito a intenção inicial do coletivo que o redigiu. A partir de um original mimeografado foram inúmeras as reproduções Fotocopiadas e as solicitações de exemplares já esgotados. Se seus autores resistiram até aqui a uma nova edição foi pelo consenso existente entre eles acerca das debilidades e insuficiências do texto. Sobretudo pode-se ver como velhas categorias voltam aqui e ali dificultando o estabelecimento de uma nova ótica para a abordagem dos problemas tratados. No primeiro número da revista Desvios o coletivo que assumiu as “11 Teses” como referência para as reflexões sobre sua prática já procurou retomar as questões tratadas. Não o fez “corrigindo” partes insatisfatórias do texto mas tentando situar os problemas do modo como eles estão postos pela sua prática, pelos movimentos sociais e pelo avanço da discussão.
Mas apesar de sua precariedade, as “11 Teses” permanecem como ponto de partida de uma reflexão, cujo conhecimento torna-se necessário para a compreensão de seu processo de constituição. Foi sentindo a força que ainda ressalta do documento, que decidimos reeditá-lo, sem pretender retificar pontos que hoje nos parecem inadequados, remetendo apenas para o artigo “A autonomia em questão” na revista Desvios. A única alteração aqui feita consiste na titulação de cada uma das teses, para facilitar sua leitura.
11 TESES SOBRE
A AUTONOMIA
Entre os fatores responsáveis pelo renascimento e desenvolvimento da noção de Autonomia no movimento operário e popular mundial e no Brasil em particular, ressaltam os seguintes:
• a crise dos “modelos socialistas” existentes, pela sua prática, conservadora e anti-operária, geradora de novas formas de dominação;
• as condições atualmente imperantes no sistema de dominação capitalista como realidade mundial;
• o fracasso de diferentes modelos de atividade revolucionária na América Latina nos últimos tempos:
• o atual período da luta de classes no Brasil, com o surgimento de um movimento operário e popular com tendências autônomas, frente a um Estado ditatorial e uma desarticulação das organizações políticas tradicionais.
A nova reflexão que se reclama da ideia e da prática “autonomistas” leva ou procura levar:
• a um novo projeto socialista de sociedade;
• a novas concepções sobre o processo revolucionário e sobre o partido (ou partidos) revolucionário(s);
• a novas relações entre partidos e massas.
Em torno da noção de autonomia, várias concepções políticas estão sendo avançadas. Procuraremos aqui sintetizar os principais elementos da concepção que estamos elaborando.
I — A crise dos Modelos Socialistas
Nosso empenho em valorizar o papel da autonomia dos movimentos populares no processo de transformação social, na revolução socialista e na construção do comunismo, está diretamente vinculado à crise dos “modelos socialistas”. É esta crise que nos levou – como a vários agrupamentos comunistas — a repensar as categorias e métodos que têm orientado a atividade revolucionária neste século.
O que entendemos por “crise dos modelos socialistas”?
Numa primeira abordagem trata-se da constatação de uma degenerescência das sociedades pós-revolucionárias onde havia projetos de edificação socialista. Trata-se também da constatação do papel conservador, burocrático, sectário, elitista, que vem sendo desempenhado por organizações partidárias constituídas para ser exatamente instrumentos da revolução e da libertação social. Esse papel conservador tende inclusive a acentuar-se com a tomada do poder.
Mas esta primeira abordagem ainda não vai ao fundo da questão. Ela já foi feita por várias correntes comunistas desde as primeiras oposições soviéticas que anotaram o desvio do stalinismo em relação aos princípios leninistas. Desde então, cada deformação constatada no movimento comunista foi visto como um afastamento do modelo clássico marxista-leninista.
De nossa parte, nós consideramos que o desenvolvimento concreto dos processos históricos nos impele a repensar o próprio modelo. Mesmo a necessária assimilação de toda contribuição dos clássicos só é possível se adotarmos uma postura que rechace toda reverência mística aos seus texto. O desenvolvimento histórico – com os avanços revolucionários e com os impasses criados – produziu situações e problemas cuja solução não se encontra nos modelos que nos foram legados.
Se de um lado, assistimos tendências generalizadas à burocratização no “socialismo real” e nos partidos tradicionais, de outro também é verdade que surgiram novas tendências e premissas para a revolução socialista, cujas potencialidades não são desenvolvidas pelos modelos conhecidos de organização e prática revolucionária. Lutas operárias que questionam as relações de trabalho na própria instância da produção e que ultrapassam a tradicional dicotomia entre prática econômica e prática política se estenderam na Europa a partir de 1968. Movimentos de contestação do autoritarismo da divisão capitalista do trabalho, movimentos feministas de contestação do machismo, da opressão da mulher, movimento de questionamento das instituições de reprodução da sociedade burguesa como a escola, a família, etc; movimentos ecológicos que questionam o próprio modelo de civilização. Movimentos nos países do “socialismo real” que questionam sua estrutura autoritária e recolocam a questão da democracia socialista, como o que marcou agora a história contemporânea da Polônia. São movimentos cujo desenvolvimento não encontra referenciais seguros nos modelos propostos no início do século. Nisto consiste a “crise dos modelos socialistas”.
II A Questão do Partido
Uma tese decisiva que deve ser questionada refere-se ao caráter do partido revolucionário. Segundo a tese clássica do “Que fazer?”, a teoria socialista é levada para a classe operária pelos intelectuais revolucionários, sendo a tarefa do partido introduzir na classe a consciência de sua missão. Esta formulação constitui a premissa para toda uma linha de raciocínio que visava combater o espontaneismo e apontar para a especificidade da luta política. Lenin, ao elaborá-la, enfrentava problemas reais cujas respostas também não se encontravam na herança ideológica existente:
– a capacidade de adaptação do capitalismo, integrando a classe operária ou frações dela, e, daí, a necessidade de uma tática política que não seja simples desdobramento das lutas econômicas;
– o reforçamento do aparato de Estado capitalista e a necessidade de um aparato profissional centralizado para enfrentá-lo;
– a existência de uma diversidade de forças sociais potencialmente revolucionárias e a necessidade de articulá-las.
Mas a verdade é que a solução avançada por Lenin tem como ponto de partida uma concepção vanguardista e messiânica do partido. Ao conceber a consciência de classe e a doutrina socialista como algo levado para a classe pelos intelectuais revolucionários, pelo partido, ele corta toda a base real, as premissas sociais, da ideologia revolucionária. E termina por propor um partido que poderia ser revolucionário independentemente de seu enraizamento nas massas. Nós questionamos essa visão. O que entendemos por consciência de classe e ideologia socialista não se reduz aos conjuntos de teses elaboradas pelos clássicos e transmitidas de geração a geração por guardiães da nova fé. A consciência socialista é uma contínua elaboração de respostas do movimento operário e popular aos desafios, sempre novos, impostos pela dominação de classe. Marx, Engels, Rosa, Lenin, Trotsky, Gransci, Mao e muitos outros aportaram — em níveis diferen¬tes — contribuições valiosas mas que não constituem nenhum sistema completo nem infalível. Daí que:
a) o papel das vanguardas políticas é o de assegurar a continuidade da luta das massas, ameaçada pela ação desagregadora da dominação capitalista. Mas esse papel cumprido por um partido, portador de experiências assimiladas e transformadas em propostas para uma ação presente, é inseparável de sua capacidade em incorporar novas experiências continuamente produzidas pelas massas;
b) um partido militarizado, que extraia sua eficácia do monolitismo interno e da sua capacidade em impor uma direção a organismos do massa, torna-se in¬capaz de impulsionar uma efetiva iniciativa revolucionária nas massas, condição básica de qualquer movimento revolucionário nas massas, condição básica de qualquer movimento revolucionário:
c) a pretenção de proteger-se das “infiltrações da ideologia dominante” através de uma estrutura que separa radicalmente os militantes profissionais dos movimentos sociais, concebe o processo revolucionário como uma ação dirigida por uma vanguarda política auto-proclamada termina sempre por reproduzir mecanismos de dominação ideológica. E por produzir militantes incapazes de recriar a política, submissos ante as diretrizes “de cima”, elitistas diante das massas. São reproduzidos assim aspectos da própria ideologia burguesa.
O próprio Lenin retificou vários aspectos da sua visão centralista do “Que fazer?”, observando no entanto que se tratava de questão de ênfases. Uma condição da vitória da revolução foi mesmo a maturação e pleno desenvolvimento dos sovietes, para o qual os bolcheviques contribuíram decisivamente. Mas se, em 1917 prevalece uma concepção que impulsiona a autonomia das massas — através de seus sovietes — as circunstâncias políticas que cercaram a edificação do poder revolucionário na URSS terminaram por empurrar os bolcheviques a posições ultra-centralistas (proibições de tendências no interior do seu partido até a consagração do partido único). E foram estas posições que, afinal, se cristalizaram na Internacional Comunista e, a partir daí, se tornaram modelo para o mundo. Esse modelo deve ser questionado.
O papel de um verdadeiro partido revolucionário deve ser o de sistematizar experiências e elaborar propostas para a luta política, impulsionar a unidade e autonomia dos movimentos sociais de explorados e oprimidos, impulsionar a capacitação das massas para fazer frente à ordem opressora do Estado Burguês. Um partido que não impulsione essa dinâmica é um partido em vias de burocratização.
III A Questão do Estado
As concepções predominantes atualmente acerca do papel do Estado na transformação social constituem um outro corpo de ideias a ser questionado. Em primeiro lugar se trata das relações com o Estado Capitalista, a atitude dos comunistas face ao Estado antes da tomada do poder. Prevalece uma concepção política articulada toda em torno do objetivo o “assalto ao poder”. Essa visão não dá conta da infinidade de instituições e prepostos do poder burguês (na burocracia, nos aparatos médicos, educacionais, na organização do trabalho, na família) que reproduzem a ideologia dominante e garantem a dominação capitalista. A crítica a essa concepção tem sido feita por vários autores que chamam a atenção para a existência desses “micro-poderes” reprodutores da dominação através dos aparatos ideológicos. Esses críticos expressam em geral seus limites ao ignorarem o papel central desempenhado pelo aparato de Estado e, consequentemente, da luta politica contra êle. Mas, de todo modo, é certo que a preocupação obsessiva na esquerda tradicional com a “tomada do poder” se faz às custas de uma frequente manipulação das massas, utilizadas para aquele assalto. O resultado, nesses casos, ou é um fracasso por não levar em conta a força da ideologia dominante no conjunto da sociedade, ou é a reprodução da dominação através dos próprios aparatos supostamente revolucionários. De um outro ponto de vista, Gramsci já havia cha¬mado a atenção para a necessidade da conquista da hegemonia na sociedade, criticando o simplismo de estratégias “de assalto” elaboradas pela Internacio¬nal Comunista. Os eurocomunistas procuram hoje retomar essa problemática. Mas, na medida em que suas políticas visam simplesmente a ocupação e transformação interna do Estado burguês, eles rompem com o mais decisivo da estratégica da constituição de uma nova hegemonia na sociedade, que tem que se realizar através da formação de embriões de poder disseminados na sociedade. A reapropriação da política no seu sen¬tido mais amplo que toca os diferentes aspectos da existência social – bem como no seu sentido mais específico, de projeto de organização social, expressa-se na reivindicação da autonomia dos movimentos sociais, capaz de permitir-lhes abranger a luta em toda a sua extensão, de travá-la nas suas inumeráveis frentes, fazendo-as convergir simultaneamente para a derrocada da ordem capitalista e para a criação de formas alternativas de decisão, pensamento, produção e prática social.
Em segundo lugar, trata-se das relações com o Estado pós-revolucionário. Segundo a concepção predominante, o Estado revolucionário deve reforçar-se para enfrentar a contra-revolução, para dirigir firmemente o processo no sentido da transformação comunista. O Estado é visto como o guardião da hegemonia proletária, enquanto a sociedade no seu conjunto é o território duvidoso onde vicejam o individualismo, os restos (ou muito mais que restos) das relações capitalistas, a lei do mercado, a ideologia burguesa. O Estado deve policiar a Sociedade. O Estado se autonomiza diante da Sociedade. Mas então, os “agentes revolucionários”, assim “autonomizados” diante dos trabalhadores, se tornam agentes burocráticos, sacerdotes ou déspotas, de qualquer modo privilegiados frente à sociedade. Se no início eram agentes da revolução contra perigos que vinham da sociedade, terminam – pelas suas próprias condições de vida, pelo lugar que ocupam na divisão do trabalho social – como agentes de uma nova ordem hierárquica e autoritária. O comunismo passa a ser visto como um modelo pré-figurado ao qual se chega através do cumprimento dos planos estabelecidos pelo Partido. Nós aqui retomamos a concepção original de Marx, do comunismo como o movimento real de negação do capitalismo. Enquanto tal, ele não pode ser reduzido a um projeto de sociedade ideal, mas constitue um referencial ideológico que só se realiza na medida em que é assumido e reatualizado como proposta social no interior do movimento de massas. Ele é, pois, inseparável da plena autonomia das massas exploradas e oprimidas.
E é aqui também que retomamos as teses clássicas de Marx, Engels, Lenin, sobre o processo de extinção do Estado após a revolução. Um processo de diluição do Estado que se inicie no momento mesmo da construção desse novo Estado sem que isso represente um debilitamento frente a contra-revolução só pode se dar na medida em que a politica revolucionária consista na disseminação do poder revolucionário no conjunto da sociedade; na medida em que cada movi¬mento social exerça sua autonomia, num movimento de negação da antiga ordem. Dizem-nos que a garantia da revolução está na força do partido único. Mas será então a garantia de uma revolução que agoniza no conjunto da sociedade e que, assim, se congela num Estado burocratizado. A verdadeira garantia da revolução só pode estar no processo de hegemonia revolucionária na sociedade, na revolucionarização do todo social.
IV As Condições da Autonomia
Os projetos comunistas fundados no desenvolvimento da plena autonomia operária e popular não constituem alguma negação utópica e romântica da realidade, mas encontram suas condições de possibilidade nas próprias características do desenvolvimento capitalista e nas novas condições criadas pelo “socialismo real”.
Em primeiro lugar está a tendência do Estado burguês a tornar-se cada vez mais centralizado e autoritário, em função da necessidade de regular as principais variáveis económicas e de manter o controle sobre uma sociedade crescentemente diversificada, cujas desigualdades e injustiças provocam reações, em vários níveis, dos diversos setores alijados dos benefícios econômicos ou das possibilidades de participação tornados possíveis, paradoxalmente, pelo próprio ‘progresso’ das forças produtivas e dos meios de comunicação. Essas reações tem contribuído para desvendar os mecanismos de opressão e de manipu¬lação, o caráter irracional do desenvolvimento econômico comandado pelo capital internacionalizado, e para estimular a busca de alternativas radicalmente diferentes. Nesse processo, destacam-se também com maior clareza os interesses comuns aos diversos setores e classes sociais explorados e oprimidos, e a convergência de suas lutas conduz ao enfrentamento contra esse Estado/Leviatã, à percepção do seu papel globalizador no sistema de dominação e favorece o desenvolvimento dos projetos visando à sua superação. A diversidade dos setores em movimento e de suas lutas, aliada à padronização crescente das formas do Estado e do modo de vida da burguesia ao nivel mundial, criam as condições para que a exigência de tomar em mãos os destinos das lutas surja por toda parte, e para a articulação das mesmas, com base no respeito da sua autonomia. Em segundo lugar está a internacionalização do capital e das relações de produção, pelo qual a burguesia iguala-se e nivela-se cada vez mais, internacionalmente, em termos produtivos, culturais e políticos. Os próprios governos chamam a atenção para a internacionalização dos seus problemas e das “soluções” que propõe. O capitalismo penetra no campo e nas “regiões não-capitalistas”, diminuindo as suas reservas e configurando mais definidamente estrutu-ras de classe estáveis, favorecendo o surgimento de consciências de classe em função de interesses concretos. O caráter objetivo das contradições dessas classes com o sistema tende a tornar-se mais claro, iluminado pelas lutas que se desenrolam. Em terceiro lugar está a tomada da consciência da falência dos modelos de revolução ou de sociedade socialista, pois o agravamento dos problemas mostra as limitações e contradições dos que existem ou existiram. É necessário contar com as próprias forças, abandonar a confiança ingênua em países ou partidos “guias”, reapropriar-se não só do presente mas também do futuro. Forçados a lutar contra o capitalismo dia a dia mais agressivo, e liberados de todo paternalismo fatalista – ou fatalismo paternalista – em relação às “pátrias do socialismo”, os movimentos sociais procuram articular-se em torno de um projeto que impeça que seus sacrifícios pela libertacão sejam utilizados para a subida ao poder de novas minorias, e tratam de manter o controle do movimento e das instâncias de decisão que vão construindo. Finalmente – mas de importância primordial – está a contradição entre a divisão social do trabalho, que reduz os indivíduos a peças subalternas de um monstruoso mecanismo, e a produção de necessidades, aspirações e conhecimentos que não encontram cabida nesse sistema. O próprio desenvolvimento inusitado das forças produtivas, com a possibilidade crescente de um controle social sobre as condições de existência, cria em setores cada vez maiores da população, aspirações que se chocam com a mediocridade e o autoritarismo das relações de produção e consumo existentes. Cumpre dizer que essa contradição se manifesta — ainda que de modo diferente – nos países capitalistas industrializados tanto quanto nos países de economia centralmente planificada. Em uns como em outros a divisão social do trabalho atomiza os indivíduos e encontra sua articulação através de um Estado hipertrofiado. Em uns como em outros desenvolvem-se forças sociais interessadas em romper essa estrutura alienante. Lá onde as revoluções criaram formas de poder popular mais vivas estão mais avançadas as condições para a superação dessas contradições .
V — A Questão do Poder
A burguesia, mãe e filha do Estado centralizado nacional, foi tornando-o cada vez mais autoritário e todo-poderoso, para apoiá-la na acumulação de capital e para reduzir os seus inimigos de classe, pela força ou pela persuasão. A revolução social e política do proletariado e seus aliados, frente a esse Estado, vê-se compelida a resolver dois problemas: a destruição do Estado burguês opressor concreto, em cada caso, e o enfraquecimento do Estado em geral, isto é, inclusive daquele a seu serviço, que ela é forçada a construir no período de transição. A solução do duplo dilema começa por perceber a sua ligação interna: o projeto de sociedade a cons¬truir orienta a luta concreta, mas esta, por sua vez, irá moldando as feições daquela. O socialismo ba¬seado no poder popular, onde a autonomia dos tra¬alhadores como sujeitos sociais encontrará o seu pleno florescimento, define as lutas autônomas travadas hoje, e nasce delas.
A alternativa ao Estado Capitalista não pode ser o Partido Revolucionário, mas sim as Organizações Democráticas de representação direta das massas, centralizadas nacionalmente. São os conselhos de trabalhadores.
Estes elementos de caráter genérico concretizam-se na combinação da luta pela democracia política com a luta pelo socialismo e no forjar das alianças de classe que permitirão solucionar a questão do poder. Adquire importância central, a este nível, a com¬preensão do Estado liberal burguês como tenazmente oposto ao exercício direto da soberania (baseia-se na “representação”), à socialização da propriedade e ao direito ao trabalho. Justamente os três pilares de uma democracia proletária e popular. Essa compreensão coloca para o movimento dos trabalhadores uma série de questões que exigirão respostas compatíveis com o projeto delineado acima; e nos marcos de uma situação histórica determinada: a relação entre democracia e socialismo, entre formas políticas e formas sociais de Estado de transição, entre democracia direta e democracia representativa, entre participação e garantias individuais, entre gestão burocrática e autogestão da sociedade. A reflexão sobre os temas acima não prejudica a conclusão, avançada também a partir da crítica do “socialismo real” e das revoluções conhecidas de que “não pode haver revolução social separada de revolução política, ambos objetivos gerais e inter-condicionados do socialismo. Reivindicar vigorosamente um processo político que leve à extinção ou superação do Estado e projetar um Estado de transição em que esse processo se realize como expansão da democracia, das liberdades políticas e da participação de todos na gestão da coisa pública” (Cerroni). A preparação desse processo é o conteúdo e a realização da perspectiva da autonomia do movimento popular.
VI — O Significado da Autonomia
Pensamos a autonomia das classes e setores dominados como o movimento de negação da dominação. A autonomia operária, assim, se identifica com seu movimento de oposição à dominação capitalista. Nesse sentido, a autonomia de cada setor dominado ou ex¬plorado é a afirmação de sua oposição à dominação ou exploração de que é vítima, E a autonomia popular em sua dimensão mais abrangente se confunde com o próprio processo revolucionário. A emancipação dos trabalhadores é obra dos próprios trabalhadores, assim como cada setor oprimido deve tomar em suas mãos a luta por sua liberação. Esse movimento tem como ponto de partida – e de chegada – a ação local, direta, dos próprios interes¬sados.
Mas não é qualquer decisão tomada por um grupo social que contribui para o processo de sua emancipação, de conquista de sua autonomia. Esses grupos sociais podem manter-se subordinados a dominação ideológica burguesa e, em sua prática, reforça-la ao invés de destrui-la. Entretanto, enquanto expressão de uma “falsa consiência”, sua prática pode levá-los a um processo de tomada de consciência real. Na prática das classes dominadas existe sempre um aspecto que significa a reiteração da submissão e um aspecto que implica na revolta contra esta. Todo momento de luta traz consigo uma negação da ideologia dominante, traz uma desestabilização da dominação, uma afirmação da autonomia. Mas as lutas de classe sofrem refluxos, descontinuidades. A reprodução do sistema traz consigo a retomada da dominação, a neutralização, a divisão, a desmoralização ou dispersão dos dominados. Daí a necessidade de vanguardas sociais e políticas, que são aquelas que asseguram a continuidade dos movimentos, elaboram as experiências, articulam diversos movimentos, e dão respostas mais abrangentes às formas de enfrentamento de classe definidas em cada conjuntura. Existem portanto vários níveis de autonomia. A autonomia de um movimento local, parcial, constitui o primeiro nivel, o mais elementar. A autonomia só se desenvolve à medida em que esses movimentos se articulam com outros, porque, afinal, só é possível enfrentar a dominação e afirmar uma plena autonomia (ou seja, o domínio sobre suas condições de vida) no nivel de toda a sociedade.
Essas necessidades de desenvolvimento dos movimentos não são resolvidas espontaneamente pelas massas, e daí que rechaçanos as teses anarquistas ou espontaneistas. Mas também não são resolvidas de um ponto de vista revolucionário pela prática tradicional de cooptar os movimentos de base, “representá-los” na grande política, relegando-os às suas “especificidades” corporativistas e locais. Porque assim se reproduz a tradicional divisão do trabalho político e sufoca-se toda dinâmica liberadora do próprio movimento social.
Porisso a defesa da autonomia envolve um empenho de participação em todos os níveis, dos indivíduos e, principalmente, das comunidades, ou dos indivíduos nas suas comunidades, em luta por um desenvolvimento alternativo, baseado nas necessidades sociais e que concebe um processo de libertação social a partir do espaço local.
A conquista do poder autônomo, cultural, político e econômico dos trabalhadores e do povo baseia-se na crítica à delegação de soberania que é a essência do liberalismo burguês. Implica na capacidade de tradu¬zir os interesses dos sujeitos das lutas, permanecendo sob seu controle.
VII – A exploração e a dominação
A ênfase na luta pela autonomia dos movimentos sociais das classes e camadas exploradas e oprimidas decorre da compreensão de que a exploração e a opressão são aspecto inseparáveis no curso das lutas de classe. Assim sendo, a afirmação da autonomia, que rompe com a dominação, representa um movimento essencial contra a exploração. Foi a tradição economicista, que tomou conta do marxismo desde a II Internacional, que separou os dois aspectos e reduziu a “essência” da luta anti-capitalista à luta contra a exploração. É verdade que a base material do sistema capitalista encontra-se em sua capacidade para apropriar-se do trabalho excedente como mais-valia e na valorização permanente do capital, independentemente da consciência que tenham desse processo os capitalistas e os operários. O operário atua como força produtiva social, como assalariado e não como produtor. A exploração se realiza em primeiro lugar por uma coação econômica: o operário despojado de meios de subsistência é obrigado a vender sua força de trabalho para sobreviver. Aí, ele se submete ao despotisno do capital no processo produtivo. Mas seria simplismo parar aí. Imaginar que a reprodução do sistema seria assegurado pelos automatismos econômicos seria ignorar o papel da subjetividade e da luta de classes. As condições concretas como se realiza a exploração — desde o contrato de trabalho até o regime de trabalho concreto — depende do quadro mais geral das relações sociais. Depende, em suma, do modo como se exerce a dominação. A relação de forças que determina o quadro geral da dominação é, por sua vez, determinada por vários fatores extra-econômicos, que compreendem desde o chamado despotismo da fábrica (os sistemas de vigilância, a delação, às vezes a violência direta de capangas) até o conjunto do mecanismo repressivo do Estado, e, mais além, dos mecanismos de dominação ideológica reproduzidos através da família, da escola e de uma diversidade de instituições sociais. É porisso que a luta contra os mecanismos de opressão, sejam os diretamente repressivos sejam os encobertos pelas sutilezas da ideologia, libera energias indispensáveis para o enfrentamento da exploração.
VIII – A questão da hegemonia operária
A conformação de um movimento popular autônomo enquanto bloco social revolucionário, alternativo ao bloco no poder, terá de dar-se através da constituição da hegenomia operária. O regime de dominação burguês se baseia na sua capacidade hegemônica. Não é necessário o apoio ativo ao sistema. De igual importância é a passivi¬dade desmobilizadora das classes dominadas em es¬pecial do proletariado. Essa passividade é obtida através dos mecanismos de exploração e opressão, sustentados pelas bases materiais do aparato produtivo, que recriam sempre as bases da dominação. Daí que as lutas dispersas, localizadas, não podem terminar a dominação se não se articulam contra a raiz da opres¬são, no próprio sistema capitalista. Porisso a importância prioritária da luta daquela que é o pilar fundamental do sistema e que, em decorrência, é capaz de provocar uma ruptura radical: a classe operária. A classe operária expressa suas reivindicações sob duas formas. A sindical, corporativa, que, como tal, é assimilável pelo sistema; e a politica, enquanto movimento social com capacidade hegemônica alternativa. As outras classes ou grupos dominados (o campesinato, os negros, as mulheres, os índios, os estudantes, os homosexuais, etc.) também se expressam nesses dois níveis. Mas a diferença entre estes e o proletariado é que, quando eles se constituem enquanto movimento social diluem suas características específicas e assumem uma nova identidade, onde o principal é o questionamento da situação vigente. A classe operária, ao expressar-se enquanto movimento social, não perde sua identidade, dando-lhe apenas uma conformação mais depurada e coerente. Por outro lado, a constituição de uma nova hegemonia não pode se fazer submetendo os outros movimentos sociais ao movimento operário. Porque, ao questionar elementos decisivos da dominação burguesa, eles aportam elementos necessários para a elaboração de uma alternativa revolucionária. A constituição de uma força social revolucionária, que tem como eixo a luta anti-capitalista (e, portanto, a classe operária) deve incorporar as bandeiras da luta pela emancipação da mulher, pela emancipação dos negros, dos índios, pela liberdade sexual, pela preservação do meio ambiente e contra os modelos destrutivos e alienantes do desenvolvimento nascidos com o capitalismo e incorporados sem crítica pelo “socialismo real”.
Evidentemente esta concepção da relação entre o movimento operário e os outros movimentos sociais – de hegemonia operária mas não de submissão dos outros movimentos sociais que questionem a ordem burguesa — se vincula às próprias necessidades da constituição de uma nova sociedade, que não serão enfrentadas por meras medidas administrativas tomadas por decreto, mas que devem incorporar ativamente o conjunto dos explorados e oprimidos.
IX — A Crise da esquerda brasileira
A esquerda brasileira vive hoje uma profunda crise, onde toda uma tradição paternalista é questionada, mas onde também pode emergir uma força política capaz de fundir os ideais do comunismo com a prática viva das massas. Para isso é necessário que uma parcela significativa rompa com toda concepção aparatista e elitista e seja capaz de formular, junto às lideranças sociais das classes e camadas exploradas e dominadas, um projeto de ação revolucionária. A tradição paternalista de “fazer política para o povo”, “pelo povo”, é antiga na história do conti¬nente, desde os caudilhos da independência até os nossos abolicionistas e, modernamente, os populistas. A esquerda herdou essa tradição. Não se trata aqui de simplesmente efetuar um juizo moral. Esse paternalismo foi condicionado por características profundas da nossa organização social. Seja o peso do escravismo, seja a via especifica do desenvolvimento capitalista (incorporando e transformando o latifúndio, incorporando-se tardiamente ao sistema imperialista na qualidade de periferia, etc), exacerbaram as tendências autoritárias e marginalizantes inerentes à ordem burguesa. Ao poder discricionário de uma minoria de detentores dos meios de produção corresponde um sistema estatal super-dimensionado que se contrapõe a uma sociedade civil atomizada e desarticulada. Nesse quadro polarizado as mediações são efetuadas por uma camada ilustrada de funcionários, técnicos, políticos profissionais, burocratas. A representação politica das massas feita por intermédio de caudilhos ou aparelhos especializados é causa e consequência de uma debilidade de organização e consciência dessas massas, reiteradas em momentos históricos decisivos (na abolição, na revolução de 30, na “redemocratização” de 45, na crise da republica populista).
Porisso vemos no PCB um fundo vanguardista que percorre cada uma de suas etapas. Mais além das características específicas das etapas de “aventureirismo de esquerda” e de “oportunismo de direita”, há uma concepção sobre a “natureza do partido”, “legítimo representante da classe operária”, que está na base do seu sectarismo.
A esquerda revolucionária surgida nos anos 60, apareceu em oposição ao conservadorismo do PC. Mas, de um lado, efetuou um corte excessivamente abrupto com o movimento político de onde surgiu» rompeu com as organizações tradicionais de um modo tal que terminou por desprezar as experiências nelas acumuladas, a história do movimento operário e popular que, ainda que deformadamente , aí em parte se encontrava. De outro lado, ela não rompe com o vanguardismo aparatista que marcou essa história. Inserida em um momento de crise política e desafiada pelo atraso na consciência e organização das massas, a esquerda revolucionária responde proclamando a luta frontal contra o regime, em nome das massas que não lhe acompanharam. Ficaríamos na generalidade vazia se reduzíssemos todas as práticas da esquerda às características de paternalismo e vanguardismo. A esquerda tem não somente uma complexa diferenciação interna como também, uma história. Em uns se tratou de um paternalismo reformista para ocupar posições no aparelho do Estado. Em outros de um vanguardismo que se enfrentou com esse aparelho do Estado. Em uns um ativismo militarista, em outros um ativismo simplesmente agitativo. Em uns um doutrinarismo socialista, em outros um doutrinarismo populista. Além disso, a forma concreta como isso se realizou, determinou (ou não) algum grau de incorporação e mobilização de energias populares. Não pretendemos aqui efetuar uma análise específica da prática dessa esquerda revolucionária mas apenas chamar a atenção para a necessidade de uma crítica radical que não rechace em bloco todo esse movimento político mas resgate acervos políticos e experiências aí acumuladas.
Se a crítica deve ser radical e se a crise atual questiona a própria identidade da esquerda é porque ela se arrogou um papel que não poderia cumprir. Não se trata, pois, simplesmente de que fomos derrotados nos enfrentamentos decisivos de 1964 a 1970. O mais expressivo dessa derrota é que ela se deu sem as massas. As massas também foram derrotadas. Mas cada uma dessas derrotas se deu separadamente, foi vivida separadamente, foram experiências que não convergiram.
A esquerda se arrogou a representação e condução das massas desorganizadas. Os intelectuais revolucionários – que se moviam sobretudo entre a pequena burguesia urbana — elaboraram programas e estratégias para as massas, forjaram organismos para enquadrá-las e mobilizá-las. Fracassamos. Como resultado, muitos companheiros romperam com a própria identidade da esquerda, com a noção mesmo de uma vanguarda ideológica autoproclamada. Procuraram esquecer as complexas elaborações que mais haviam servido de auto justificação ideológica do que de instrumento de mobilização popular. A esses, os companheiros que permaneceram no interior das organizações de esquerda dirigiram as críticas de liquidacionismo, de abstenção diante das necessárias tarefas de vanguarda.
O importante para nós agora é partir de uma ruptura com o principio de legitimação revolucionária de uma farça politica pelas suas declarações e objetivos ou mesmo pelo sentido que elas dão às suas ações. O que entendemos por “esquerda”? Em princípio seriam as vanguardas políticas do movimento operário e popular. Quando se constatou que essa indentidade não estava se realizando, houve, a prudente distinção entre a “vanguarda ideológica” – representada pela esquerda (ou, mais precisamente, pela tendência de esquerda que faz o enunciado) e a “vanguarda política”. Recuperada dessa forma uma legitimação, tratava-se para a “vanguarda ideológica” de resgatar seu papel de direito de “vanguarda política”.
Nós rompemos com essa visão. Não pretendemos abdicar das tarefas da esquerda, das tarefas de uma vanguarda ideológica e política. Não pretendemos esquecer ou enterrar experiências acumuladas e elaboradas. Não pretendemos abdicar de formular políticas e defendê-las. Mas a própria atividade ideológica de vanguarda só se atualiza, só se realiza, no processo mesmo de criação política com as massas. A vanguarda ideológica não é vanguarda ideológica porque adotou algum livrinho vermelho mas porque elaborou uma perspectiva para as lutas políticas que se dão.
Hoje, diante do PT e do que ele representa, são inúmeros os companheiros que, isolados ou articulados politicamente, convergem procurando refundar a esquerda. Não para auto-preservar-se num papel de vanguarda ideológica, embrião do “verdadeiro partido revolucionário”, mas para recriar uma vanguarda política e uma perspectiva revolucionátia no encontro com as lideranças emergentes do movimento social.
X – Os movimentos sociais no Brasil de hoje
O maior fracasso do regime militar e seu milagre económico está estampado nas características do movimento popular que se formou no país em reação a ele. Apesar da notável ofensiva repressiva, política, econômica e ideológica, o regime foi inca¬paz de criar uma base social e de evitar o surgimento de um movimento popular com características autônomas.
Esse movimento popular é fruto da resistência con¬tra a exploração e na opressão num quadro político marcado pela profunda derrota da esquerda e, em geral, das oposições. É fruto, pois, de um reaprendizado da política a partir de suas reivindicações mais elementares.
Isso não quer dizer que a esquerda (através de militantes soltos ou organizados, através de quadros portadores de sua experiência e formulações) não estivesse presente nesse lento processo de reorganização. Mas devido à repressão, devido à debilidade das organizações políticas, devido à desconfiança que suas políticas despertavam na massa (e nas lideranças sociais), alteraram-se as relações entre as lideranças locais e os quadros políticos. Estes não iam mais para ‘dar a linha’. Independentemente de como esses quadros concebiam o significado de que faziam, o fato concreto é que a política local era produzida localmente. Nesse processo de lenta reorganização e mobilização a partir das condições e consciência local, inúmeros quadros políticos desempenharam um papel fundamental de apoio à elaboração de alternativas, formas de organização e ação. Mas também frequentemente essa mobilização local teve de se haver com proposições aparatistas, que traiam a ânsia de cooptar rapidamente essas atividades de base. Os fracassos desses intentos foram responsáveis por um aprofundamento das crises internas de várias organizações de esquerda.
A estrutura nacional em torno da qual se articularam as principais organizações da base foi a fornecida pela Igreja Católica. Isso foi possível porque o enquadramento orgânico efetuado pela Igreja não se fez através de diretrizes políticas e estratégicas prévias. Os agentes pastorais se limitaram a oferecer o apoio infra-estrutural e as condições para a articulação de vários movimentos de base. Uma violenta crítica às posições vanguardistas, elitistas, efetuada nesse movimento não permitiriam que seus agentes repetissem as mesmas práticas. O resultado pri¬meiro desse rechaço, que preservou os movimentos das políticas estranhas a eles, foi mesmo um grande obreirismo, basismo, recusa da própria política. Evidentemente, o simples papel da Igreja nesse processo já revela como, atrás do basismo proclamado, havia um espaço privilegiado reservado para uma Instituição – a própria Igreja – representar nacionalmente os interesses dessa população organizada localmente. Mas o fato é que o modo como tinham que se estabelecer os núcleos de base, comunidades e base, associações de moradores, oposições sindicais, etc. – reforçava as tendências à auto-organização popular.
Seu ponto de partida, como forma de organização, estava na democracia direta, e como objetivo, na luta pelos interesses sociais locais. Tratou-se do primeiro nível, básico, da auto-organização. Mas como a luta e a própria tomada de consciência – dos interesses coletivos exige a passagem a níveis de ação e organização cada vez mais amplos e abrangentes (do bairro à região, da região à cidade, da cidade ao país; de movimentos reivindicatórios específicos a movimentos que articulam várias reivindicações; de movimentos econômicos a movimentos políticos), o basismo mostrou seus limites. Para atingir mais amplas massas e ajudá-las a encontrar o caminho da auto-organização, para articular várias forças e instrumentos, tornou-se necessário utilizar instituições marcadas pela burocratização e autoritarismo, como o parlamento e os sindicatos. Mas se, de um lado, as oposições sindicais e comunidades de base se negaram a isso, relegaram-se a um papel marginal, de outro, sindicalistas e parlamentares que não se apoiam e impulsionam a democracia de base, afastam-se do movimento social mais expressivo do país. O PT surgiu enfim como expressão e instrumento, ainda que empírico e embrionário, da politização desse movimento. Sua plena configuração como partido político dos trabalhadores, expressão e instrumento da autonomia do movimento operário e popular constitue o grande desafio colocado na conjuntura.
XI — O significado do PT
Um partido capaz de impulsionar (e não pretender substituir) a capacidade criativa das massas, se distingue já pelo seu próprio processo de formação. Ele deve ser construído juntamente com a organização e fortalecimento dos organismos de unidade e autono¬mia dos trabalhadores. Se um partido é indispensável para avançar-se sobre o momento e sobre as carac-terísticas de cada luta parcial, e formular e por em prática projetos de ação política, os organismos unitários das massas são indispensáveis para que esses projetos sejam sancionados, transformados, materializados pela prática massiva dos trabalhadores. Por isso valorizamos a existência e criação dos organismos de unidade das massas, autônomos em relação aos partidos, que devem disputar o predomínio de suas políticas no seu interior. As diferenças ideológicas no seio das massas devem se enfrentar democraticamente através do confronto diferentes partidos.
O partido que defendemos deve ser construido juntamente com a organização e fortalecimento dos organismos de unidade e autonomia dos trabalhadores. Ele não pode ser um simples desdobramento e uma tentativa de coordenação desses organismos, mas ele deve responder aos problemas concretos colocados ao movimento de massas, ele deve estimular a cria-ção de órgãos de poder na sociedade a partir desses organismos populares.
Nessa perspectiva, a própria elaboração estratégica não é um processo teórico que possa ser resolvido por um agrupamento ideológico separado das lutas de massa. Ela deve ser gestada progressivamente através da assimilação das experiências dos trabalhadores e deve ser precisada ao longo do processo de construção dos organismos de unidade e autonomia dos trabalhadores, e portanto, ao longo do processo de construção do partido que defendemos. O centralismo democrático, como principio de articulação entre a diversidade e a unidade no movimento operário e popular, não pode ser encarado de modo histórico e, muito menos, como transposição dos modelos materializados nas organizações tradicionais. A eficácia imediata de um centralismo-democrático que impõe a unidade de ação externa e não divulgação das posições minoritárias tem como efeito a mais longo prazo a automatização e irresponsabilidade individual dos militantes, o aparelhamento das entidades de massa pelas organizações partidárias monolíticas.
Os princípios orgânicos – entre eles o centralismo democrático -devem também, pois, corresponder ao processo mesmo de construção de um partido concomitante com o desenvolvimento dos organismos unitários de massa.
O fato de termos, assim, definido o PT como o eixo da construção partidária não constitui uma “decisão tática”, mas corresponde á própria concepção que temos desse processo. A tarefa de uma “vanguarda ideológica” (ou seja, de um agrupamento político coesionado em torno de determinados princípios ideológicos e políticos) não é de elaborar a parte es-tratégias e programas, de reforçar um aparato orgâ¬nico próprio para recrutar aderentes, ganhar trabalhadores e posições no movimento de massas. Sua tarefa deve ser de elaborar estratégias, táticas, programas, formas de organização e ação junto com as lideranças emergentes do próprio movimento de massa. Só assim se forjam políticas que representem efetivamente uma fusão entre a teoria e a prática, entregas experiências assimiladas do passado e as experiências vivas do presente.
Mas escolher o PT como eixo da construção partidária não significa imaginar que ele já é um partido representativo das lideranças políticas e sociais das massas. É preciso construí-lo enquanto tal e isso se opõe tanto ao espontaneismo de quem acha que basta “aderir ao PT e trabalhar” quanto ao oportunismo de quantos entram nele para “ter um pé no movimento de massas”, útil para uma “construção partidária” paralela.
A construção partidária não se esgota na atividade pública do PT mas tem nela seu eixo principal. Isso quer dizer que os desafios principais colocados para nós são os que se referem à elaboração – através do PT — de respostas às questões políticas colocadas. Para lutar no PT na perspectiva da criação de um movimento popular autônomo, da luta contra a ditadura militar vinculada à luta contra a exploração capitalista e a opressão burguesa, da luta por uma revolução socialista através da participação consciente e autônoma dos trabalhadores, massas populares e movimentos de setores sociais oprimidos, é que propugnamos a constituição de uma tendência política unida em torno desses princípios.
Set/80.
Ulisses, você pode não querer a paçoca, mas tem minha gratidão por haver localizado este documento. A propósito, qual a fonte, para ficar mais fácil de citar/referenciar?
“11 teses sobre autonomia” (Set. 1980). //Cadernos de autonomia// (s.n.t.) e //Desvios// (nº 1, Nov 1982; e nº 2, Ago 1983).
Manolo, reitero a informação fornecida no comentário anterior, de Danilo, que não só chegou junto, mas chegou antes. E eficazmente.
Em primeiro lugar, é digno de loa a postagem de ulisses. Provocou uma felicidade imensa em todos nós poder ter acesso a tal e importantíssimo documento. Os adjetivos que pontuam este meu comentário, nos mais das vezes sempre desnecessários para qualquer coisa que se queira dizer, devem ser perdoados – tamanha a qualidade das “11 teses sobre autonomia” e da dificuldade em encontrá-las pelos caminhos do mundo.
Somado a isso, o tal segundo lugar, relendo o texto de Manolo percebo o seguinte. O item 1 – “Questões de origem social” – diz o seguinte em determinado trecho (peço desculpas pela longa citação e licença para efetuá-la):
“Esta origem – “pequeno-burguesa”, no dizer dos stalinistas igualmente “pequeno-burgueses” de então – certamente abriu-lhes maiores possibilidades de acesso à cultura erudita, às artes, à literatura, aos clássicos da filosofia e da política; o trânsito em tais meios deu-lhes um “quadro de referência intelectual” mais amplo a partir do qual interpretar o mundo.
A amplidão deste “quadro de referência intelectual”, ao mesmo tempo em que lhes assegurou a bagagem necessária para analisar criticamente tanto a conjuntura política quanto a própria militância, era exatamente o que os separava dos operários semi-analfabetos que pretenderam trazer para suas organizações. Muito embora houvesse um esforço gigantesco dos movimentos revolucionários da época para alfabetizar os filhos de operários – o movimento educacional anarquista do início do século XX dá testemunho disso – e abrir espaço para a produção cultural destes mesmos operários – o teatro operário do mesmo período é bastante prolífico – é muito difícil supor que este abismo cultural houvesse sido transposto. Este é, talvez, um elemento central da dificuldade destas correntes em tornar-se movimentos de massa, como pretendiam.”
Com efeito, nos desperta atenção que, atualmente, poucas são as movimentações políticas e culturais – realmente autônomas e sem editais ou padrinhos universitários, importante assinalar – que pretendem colocar em questão e superar, mesmo com todas as dificuldades e contradições desse processo, o tal “abismo cultural” assinalado pelo Manolo. Talvez esteja aí um dos grandes legados, mesmo que não logrado com sucesso, de Mário Pedrosa e outros de sua geração – que buscavam, de certo modo, ampliar o acesso e o “quadro de referência intelectual” dos trabalhadores e militantes sociais.
Hoje, como é comum e arro e feijão de quase totalidade da esquerda, valorizamos as “expressões genuínas do povo” – não se importante, em nenhum momento, em ampliar e dar acesso sem populismo ao repertório cultural constituído pela humanidade. Tal repertório é, inclusive, considerado elitista e distante do entendimento dos trabalhadores – e, enquanto isso, dá-lhe editais e organizações políticas e sociais a valorizarem apenas o frevo, o rap, o funk, etc. como expressão cultural a se fomentar nos jovens. Considero justo que as pessoas se expressem na linguagem que melhor lhes apeteçam, mas chamar os clássicos de elitismo e valorizar apenas os produtos da/ou que replicam a indústria cultural demonstra com tintas fortes quanto a esquerda desistiu de ser portadora da riqueza universal da cultura. E dá-lhe raízes sendo valorizadas – e nos prendendo na ignorância das múltiplas possibilidades da cultura mundial (esta, geralmente, sendo considerada pelas esquerdas somente como uma soma de culturas locais diversas – multiculturalismo e ambientalismo andam de mãos dadas e nos algemam no senso comum progressista).
Desculpem-me pelo longo comentário. Saudações.
Corrijo o pecado de meu parágrafo final. Gostaria de ter escrito o seguinte:
“Hoje, como é comum e arroz e feijão de quase totalidade da esquerda, valorizamos as “expressões genuínas do povo” – não se importando, em nenhum momento, em ampliar e dar acesso sem populismo ao repertório cultural constituído pela humanidade.”
e
“Considero justo que as pessoas se expressem na linguagem que melhor lhes apetece (…)”.
São correções bobas, mas eliminam um pouco a dificuldade de compreensão acerca do que escrevi (e, assim seja, espere que este novo comentário não esteja magoado de novo erros).
http://blogconvergencia.org/blogconvergencia/?p=2932
Caraca.
Coisa fina esse texto dos comentários. Coisa fina