Por Poeta em Buenos Aires
Tengo miedo, torero
De que el borde de la tarde, el temido grito flote,
Ay, pero cuando torero
Jugueteas con la muerte yo me olvido de mi miedo
En ti creo torero
(Música de Augusto Algueró)
Uma travesti se apaixona por um jovem militante revolucionário que com seu grupo trama uma emboscada mortal contra o déspota militar, Augusto Pinochet. Uma paixão pela liberdade, a liberdade de bater-se contra as próprias determinações do mundo presente. A emboscada falha, a luta armada não vinga, o erotismo era apenas sonho.
Após o golpe militar de 1973, o Partido Comunista Chileno decide criar um braço militar para atuar em conjunto com sua atividade política clandestina, mas foi apenas em 1980 que ele foi oficialmente fundado: a Frente Patriótica Manuel Rodriguez. No ano de 1986 a Frente decide realizar um atentado contra Pinochet, que tem como resultado a morte de 5 integrantes da escolta do presidente, mais 11 feridos. Na versão do fatos narrados na novela de Pedro Lemebel, este atentado contou com a importante ajuda da Loca del Frente. É que um dos jovens militantes da Frente a conheceu no bairro onde ela acabara de alugar um apartamento e, depois de um bom papo, ela ofereceria sua casa para alojar algumas misteriosas caixas que ele andava precisando guardar em um lugar seguro…
Incapaz de lhe dizer não para o que fosse, o apartamento da Loca vai acumulando caixas que se tornam o seu mobiliário, recebem adornos, cores, fantasia. A protagonista desta deliciosa novela espalha purpurina ao bater suas asas de borboleta velha e passa a enfeitar com o carinho e a ternura de um amor a sua relação ingenuamente cúmplice com Carlos, o jovem revolucionário. Em paralelo a esta história, acompanhamos algumas cenas íntimas de outro casal, Pinochet e sua esposa, Lucía Hiriart, a antítese da improvável história que Lemebel nos conta. Essa intimidade do general não serve apenas para dar contraste, ela também serve para pincelar o provincianismo e a decadência do regime militar chileno no fim dos anos 80.
Ao contrário de muitas histórias centradas no submundo lumpen, na marginalidade, a sensibilidade poética e narrativa da Loca del Frente não romantiza a miséria, não nos apresenta uma alternativa maldita “antissistema” de loucos e esfarrapados. A poesia desta travesti é inteiramente trágica, pois está sempre sobrevoando os limites de seu mundo. Um dos pontos mais expressivos do livro se dá numa discussão política e sexual com algumas amigas travestis: apoiando o atual regime, uma delas argumenta que o desemprego e o desalento produziam uma maior oferta de homens bêbados pelos portos, abandonando e abandonados, o que aumentava para elas os objetos de sua predação sexual — fosse por dinheiro ou por prazer. A Loca se encontra no polo oposto: inventa um amor quase impossível, e o vive como se pudesse torná-lo real com suas palavras e seus gestos. Os motivos dissimulados de Carlos são o contexto perfeito para que a Loca invente cenários idílicos ou românticos, pouco prováveis em uma situação normal. Ambos saem de carro para uma tarde nas montanhas: Carlos tira fotos para mapear o teatro de operações enquanto a Loca dispõe os elementos do piquenique dos namorados sobre a toalha de mesa.
Este excesso de fantasia, esta purpurina que abunda na linguagem e na gestualidade da travesti, em contraste com a timidez e as respostas evasivas de Carlos, também revelam as formas flexíveis da relação entre amantes e amados. A Loca o diz de forma muito consciente, e a juventude de Carlos pode apenas sorrir e assentir: ele apenas se deixou ser amado. Ao invés de enganar, de conquistar afetos com segundas intenções, ocorre o inverso, e é a Loca quem se coloca como amante, buscando seduzir o jovem por meio de sua fantasia, de sua desfaçatez.
Seria possível escrever a mesma novela, mas substituindo a finalidade revolucionária por outro tipo de “tourada”? Por exemplo, um fantasioso romance entre uma travesti e um assaltante de bancos sem ideologias políticas. Muitos pontos da novela se sustentariam, como a tragédia romântica, a atração pelo jogo do toureiro com a morte, o retrato social da decadência do regime militar.
Mas as pistas que a Loca tem sobre a atividade clandestina de Carlos não a excitam apenas por ser um jogo com a morte. É um jogo específico com a morte, um jogo que supõe a mesma força poética que ela é capaz de mobilizar para viver sua aventura com o jovem. Um desejo de mundo, uma criatividade vivida pelo corpo em busca de uma outra ordem de coisas.
Tengo miedo, torero, publicada em 2001, é a única novela de Pedro Lemebel, um autor mais conhecido por suas crônicas e pelas artes plásticas e performáticas. Nenhum dos seus escritos está editado em português, e como pode se ver até em uma tese de doutorado, a tradução de Tengo miedo, torero é um grande desafio, devido ao uso constante de um vocabulário estrambótico muito sonoro, que remete à sensualidade e à fantasia travesti. Devido a esta característica, não é um livro acessível para quem não se dá bem com o espanhol, mas muito recomendado para quem já navega aquelas águas.
As imagens que ilustram o texto são excertos do filme “Tengo miedo torero”, dirigido por Rodrigo Sepúlveda e lançado em 2020.
El boquete da Mulher Aranha…
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