FRANCE. Marseille. 1932.

Por Miguel Serras Pereira

Advento

Quando a espera é a ausência em que ressuma
a promessa da enchente que a revela

Catecismo

Severo o rosto erecta gravemente adorada
das mãos uma alça a saia e a outra acaricia
a nuca do donzel aos seus pés ajoelhado

Ordenação

Descinge o cavaleiro as armas junto ao leito
para adorar a amada que arma cavaleiro

Anunciação

Gestação do desejo que o dilata
quando os teus dedos ágeis e precisos
no delírio do tempo transtornado
industriam estancando-o no seu arco
o relâmpago cuja flecha tarda
à espera da enchente que a alucina

Intróito

Na orla litoral das tuas nádegas
naufraga o sono que me sonha e gesta
transformado no corpo que sonhaste

Pentecostes

Ajoelho para te despir e dar vagar
à boca que subindo as pernas sorve acima
na boca da tua concha a voz de uma outra língua
a que em todas as línguas a voz que sobra falta

Revelação

Furtiva voz que acende na febre da infância
do teu leito de irmã desfeito um leito em branco

Ascensão

Ascende a mão nas pernas sitiadas
pelo esplendor sombrio que a acomete
na boca que os seus dedos cega e bebe
e aos dedos que confunde se entreabre

Remissão

Soergues-te na penumbra que alvitras por nocturna
ao sacrifício mais propícia em teu ofício
de me ungires dos óleos extremos que ressumam
pelos teus dedos longamente ministrados

até que os teus joelhos cinjam os meus rins
e se derrame sobre mim a tua graça

Propiciação

Suplício dos folguedos no ócio deliberado
do passeio dos lábios que bebem e semeiam
estrelas vagabundas nas coxas transtornadas

Glória

Pudesse a glória do martírio consumar
a febre desta pétala convulsa que maceras
na cama da desconhecida que te amasse

Expiação

Apertas entre as pernas a almofada
em que te esfregas mais quando reclamas
do grande espelho ao fundo frente à cama
desfeita a minha febre que amarfanha
o linho dos lençóis que a tua escalda

Sacrifício

Ardor do sacrifício no chão da clareira
que de outro gozo mais suspenso temperasse
nas asas da ave moribunda já desperta
a promessa do voo de outra ave

Crisma

Por ti rendido que me firmas porque rendes
Por ti firmado que me rendes porque firmas

Liturgia das horas

Da adoração dos seios que auspicias exacta
ao silêncio que paira e espraia a agonia
do murmúrio só frémito à flor do grande lago

no sono em que adormece o desejo refaz-se
nos acordes da lira cujo sono dedilhas

Purificação

Começa por tocar-se brandamente
para distrair primeiro o pensamento
do cuidado de si que o corpo prende
à sujeição que o muda em seu agente

Depois ondula os dedos sobre a concha
entreaberta no côncavo da sombra
e o seu divagar que a tarde alonga
sonha a morte de deus e solta o tempo

Boa nova

Palavra que ao dizer-se então se faça
em corpo e alma a mesma carne alada
cuja verdade seja que nos salve

Monte Tabor

Porque afinal só tu és em ti própria
a própria outra em sonhos que a teu lado
o outro lado do sonho sonharia

Ilustram este artigo fotografias de Henri Cartier-Bresson (1932)

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