Por João Bernardo

Traduzido para o francês

Em 8 de Março deste ano publiquei aqui, no Passa Palavra, as «Oito teses sobre o colapso da esquerda», seguidas, a 12 de Abril, pelo artigo «Fascismo ou estupidez?» e em 16 de Junho pelo artigo «Antes e depois». Entretanto, muita coisa sucedeu e chegou a altura de regressar ao tema. Mas desde já previno que não vou formular previsões a longo prazo, porque as variáveis em jogo são demasiado numerosas. Nem sequer formularei previsões a curto prazo, agora, quando parece iminente em Kherson uma das batalhas decisivas desta guerra. Limitar-me-ei a detectar várias contradições e paradoxos, que talvez contribuam para desenhar um quadro geral dos acontecimentos, e deixarei algumas dúvidas em suspenso, como é inevitável num processo em curso.

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Querem uma analogia histórica da agressão de Putin e dos aplausos de uma certa extrema-esquerda? Encontram-na facilmente, foi a luta de Hitler e dos nacionais-socialistas contra os tratados de Versailles e de Saint-Germain. Pois não se tratava de uma «nação proletária», ou proletarizada pela obrigação de pagar enormes reparações de guerra, que se erguia contra os grandes poderes hegemónicos? E não foram a anexação da Áustria, o desmembramento da Checoslováquia e a ocupação da Prússia Ocidental feitos em nome da mesma reunificação do povo germânico que Putin exige agora em nome do povo russo? E houve toda uma extrema-esquerda — incluindo o Partido Comunista Alemão, o mais importante no mundo fora da União Soviética — que, embora combatendo Hitler, aplaudia a sua luta contra o tratado de Versailles.

Do mesmo modo, a extrema-esquerda que considera legítima a invasão da Ucrânia e afirma que Putin está a responder a uma agressão da NATO deveria justificar com os mesmos argumentos a política de Hitler. Se a acção de Putin fosse legítima, então a de Hitler tê-lo-ia sido também. Todo o problema consiste na transposição da luta de classes para o plano geopolítico, e quem desculpa a invasão da Ucrânia sob o pretexto de que se trata de uma guerra contra os Estados Unidos deveria recordar que Hitler lançou os seus exércitos contra as grandes potências imperialistas daquela época, a Grã-Bretanha e a França. Aliás, convém não esquecer que, depois de desencadeada a segunda guerra mundial, a ruptura tardia do tratado de não-agressão germano-soviético se deveu a Hitler, não a Stalin. Os soviéticos haviam preferido manter tanto quanto possível a paz com o Terceiro Reich e entretanto fazer guerra à Finlândia. Os resultados de tudo isto, ninguém os ignora, mas não é por conhecê-los que a extrema-esquerda putinesca muda de campo. Fala-se muito das «lições da história», mas não sei quem aprende com elas.

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Como se explica que uma «operação militar especial» tivesse degenerado numa guerra de longa duração? A resposta é simples. Converteu-se numa guerra de longa duração porque, ao contrário do que Vladimir Putin esperava, os ucranianos resistiram à invasão, em vez de acolherem os soldados russos como libertadores. A luta contra os invasores beneficiou de um efectivo apoio popular, que se demonstra nos primeiros tempos pela espontaneidade de acção, por vezes quase guerrilhas, especialmente na defesa de Kyiv (ou Kiev). E se de início ocorreu uma fuga em massa, sobretudo mulheres e crianças, agora mais de seis milhões de ucranianos regressaram ao seu país. Em vez de ocasionar deserções ou uma relutância ao combate, a resistência ao invasor consolidou socialmente a população.

Foi perante o facto simples desta resistência em massa dos ucranianos que derrocaram as apologias de Putin apresentadas, logo desde o começo das hostilidades, por muita extrema-esquerda ocidental.

Derrocou também uma certa crença no efeito mágico das palavras de ordem que inspira a esquerda zombie, convencida de que a repetição de slogans irá alterar a realidade. Não se trata aqui de intenções boas ou más, mas do realismo ou irrealismo das propostas. Em vez de analisar os factos, e sobretudo o que surge de novo na realidade, para daí tirar conclusões, essa esquerda mumificada repete incansavelmente exortações formuladas há mais de um século, na primeira guerra mundial, que foi uma disputa estritamente imperialista entre dois blocos de potências, quando deparamos agora com uma guerra de conquista de um país por outro país. Onde existe um agressor e um invadido, não deve aplicar-se a ambos o mesmo critério. Aliás, é curioso que neste contexto a esquerda zombie invoque a primeira guerra mundial e não a segunda, já que a luta contra o expansionismo do Terceiro Reich se assemelha à luta dos ucranianos contra o expansionismo de uma Rússia cada dia mais impulsionada pelo fascismo.

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Todavia, a resistência ao invasor, embora justificável, supõe uma lógica perversa, porque qualquer agressão nacionalista suscita um nacionalismo em sentido contrário. Que contradição! Putin conseguiu inspirar, desenvolver e fortalecer não só a identidade nacional, mas um verdadeiro exclusivismo nacional num povo que sempre estivera próximo dos russos, cultural e linguisticamente, exactamente o contrário daquilo que ele pretendia. E a cada semana, a cada dia que passa, mais se aprofunda aquela ruptura entre os dois povos. Os mortos contabilizam-se e as ruínas dos edifícios e das infra-estruturas também, mas as destruições culturais podem ser as mais trágicas de todas, precisamente por não se contabilizarem.

Neste caso, o imperialismo expansionista russo está a ser travado por um nacionalismo defensivo ucraniano; mas, assim como o nacionalismo russo justifica a resposta ucraniana, o nacionalismo ucraniano serve para os russos legitimarem o seu próprio nacionalismo. Quanto mais a guerra durar, mais este círculo vicioso se agravará, o que é catastrófico, porque mais distante se torna a opção internacionalista.

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Para já, no entanto, o aspecto central é que o nacionalismo expansionista de um lado não conseguiu superar o nacionalismo defensivo do outro, o que tem consequências decisivas no plano dos factos, pois o prolongamento da guerra levou a evoluções opostas em cada um dos países. Enquanto na Ucrânia a resistência aos invasores beneficia do apoio popular e fortalece a coesão social, na Rússia um número significativo de profissionais qualificados abandonou o país logo no início das operações, ao mesmo tempo que proliferaram manifestações contra a guerra e contra a deriva autoritária do regime. Depois, a mobilização de 300 mil reservistas anunciada por Putin em 21 de Setembro agravou as cisões internas na Rússia, com mais de uma centena de protestos de rua, de que resultou mais de um milhar de presos, e até com o incêndio de alguns centros de recrutamento, mas sobretudo com um movimento migratório massivo para fugir ao alistamento. Se os números apresentados por The Economist estiverem correctos, essa migração teria envolvido 336 mil homens, e a contradição não podia ser mais gritante, pois enquanto uns regressavam à Ucrânia, outros fugiam da Rússia. Parece também que centenas de milhares de homens, que não dispuseram de meios para fugir, estariam escondidos no país.

Mas o resultado mais visível da divergência na evolução de ambas as sociedades é a sucessão de fracassos russos nas frentes militares.

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É indubitável que a população ucraniana tem apoiado a resistência e o moral das tropas é bom, mas para que isto resultasse em vitórias sistemáticas no terreno foi necessário que a Ucrânia passasse a dispor de armamento eficaz tanto no plano defensivo como no ofensivo, fornecido em abundância pelos Estados Unidos e por vários países da União Europeia. Perante esta situação, os apoiantes de Putin pedem que a NATO deixe de entregar armas à Ucrânia, mas esquecem-se de fazer a reivindicação simétrica, que a Rússia desmilitarize e desmonte o seu arsenal bélico. Que candura, exigir uma coisa sem a outra!

Aliás, não devemos esquecer que quem fornece as armas tem, até certo ponto, meios para controlar a guerra, e se os americanos não podem determinar directamente a estratégia ucraniana conseguem, no entanto, impor-lhe limites, que os generais ucranianos muito gostariam de ultrapassar. É irónico que, nesta tragédia de enganos, o exército russo esteja a beneficiar da moderação americana. Mas mesmo sem levar em consideração esse facto, convém saber que em termos relativos — os únicos em que se devem estabelecer comparações — a Federação Russa é mais militarizada do que os Estados Unidos, porque em 2020, segundo o Banco Mundial, as suas despesas militares equivaliam a 4,3% do Produto Interno Bruto (PIB), enquanto as dos Estados Unidos se limitavam a 3,7%. É certo que em volume, e avaliadas em dólares, as despesas militares dos Estado Unidos são mais de 12,6 vezes superiores às russas, em consequência da diferença entre os PIBs de cada um dos países. Com efeito, e ainda segundo o Banco Mundial, em 2020 os gastos militares da Federação Russa foram de 61.712.537.168,9 dólares, enquanto os Estados Unidos gastaram 778.232.200.000,0 dólares. A disparidade entre os termos absolutos e relativos implica que o governo russo não poderá aumentar a percentagem de despesas militares de modo a equipará-las em volume às dos Estados Unidos, mas Putin devia ter pensado nessa inferioridade antes de se lançar na invasão. Assim, com esta guerra Putin conseguiu mostrar que o seu armamento não pode competir em quantidade nem em qualidade com o armamento fornecido à Ucrânia pelos países ocidentais. Mas duvido que fosse esta a sua intenção.

Também duvido que Putin tivesse a intenção de fornecer armas à Ucrânia, mas na realidade é o que sucede, porque não parece que El País de 7 de Outubro de 2022 exagerasse muito ao escrever que «a Rússia converteu-se, involuntariamente, no principal abastecedor de armas da Ucrânia». Com efeito, segundo The Wall Street Journal, no começo de Outubro o exército ucraniano incluía no seu arsenal 421 tanques, 445 veículos blindados de infantaria, 192 veículos blindados de combate e 44 lança-mísseis múltiplos capturados aos russos, enquanto nessa data só havia recebido dos aliados ocidentais 320 tanques, 210 veículos blindados de infantaria e 40 veículos de combate. E se os Estados Unidos tinham fornecido 162 peças de artilharia, mais de 167 peças de artilharia haviam sido tomadas aos russos. Mas a questão aqui é mais a qualidade do que a quantidade.

Putin exigia uma Ucrânia desmilitarizada e pretendia que a NATO se mantivesse afastada das fronteiras russas, e afinal o que obteve? A agressividade russa provocou algo que antes era impensável, a eventual entrada da Suécia e da Finlândia na NATO, que deixará a Rússia com fronteiras muito mais ameaçadoras. Além disso, a invasão permitiu à Ucrânia obter muitíssimo mais armas do que alguma vez teria, ao mesmo tempo que viu aumentar o número dos seus aliados e consolidou a solidariedade política e militar com os países ocidentais. Nomeadamente, a invasão inverteu o declínio em que a NATO se encontrava e reforçou-lhe a coesão.

A capacidade defensiva revelada pelo exército ucraniano levou Putin a recorrer à aquisição massiva de drones iranianos, os chamados drones kamikaze ou drones suicidas. Em 12 de Outubro de 2022, o Morning Briefing de The New York Times escrevia que «a defesa antiaérea ucraniana informa que nos dois últimos dias derrubou pelo menos 66 mísseis de cruzeiro e 40 drones kamikaze e que, dos mísseis de cruzeiro disparados ontem contra a Ucrânia, destruiu todos, excepto oito. Houve 19 mortos — um número surpreendentemente baixo, dada a barragem de artilharia, o que suscita dúvidas sobre a qualidade do arsenal russo». Para tentar minimizar estes fracassos, bem como os problemas mecânicos surgidos nos drones, o governo do Irão enviou para uma base militar russa na Crimeia especialistas da Guarda Revolucionária Islâmica. Mas o recurso aos drones iranianos é uma solução duplamente desesperada.

É desesperada do lado militar porque, como observou o Morning Briefing de 18 de Outubro de 2022 de The New York Times, «segundo os especialistas ocidentais, a utilização de drones lentos e que constituem um alvo fácil indica que Moscovo está com falta de mísseis de precisão». A solução é igualmente desesperada do lado político, porque Putin mostra-se assim solidário com o regime de Teherão, precisamente quando este responde com grande violência a uma vasta revolta popular, animada sobretudo por mulheres e moças jovens. Em Setembro de 2022, pelo menos 23 menores de ambos os sexos foram mortos pelas forças de segurança durante as manifestações, e mais morreram no mês seguinte. Aliás, no dia 5 de Outubro a segunda figura na hierarquia da Guarda Revolucionária Islâmica reconheceu, em declarações à agência noticiosa oficial, que a idade média dos detidos nas manifestações contra o regime era de 15 anos. A esquerda putinesca, que se revela tão sensível quando americanos e europeus fornecem armas à Ucrânia, fica imperturbável perante o apoio prestado a Putin pelo sangrento regime clerical de Teherão.

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Deparando com o fracasso nas frentes militares, Putin passou a tomar como alvo as condições de vida e de sobrevivência da população civil ucraniana, nomeadamente atacando as infra-estruturas de fornecimento de energia. Segundo Volodymyr Zelensky, de 10 a 18 de Outubro os mísseis russos e os drones destruíram 30% das centrais eléctricas. Desde então as redes de energia têm continuado a ser o objectivo do exército russo. No dia 22 de Outubro um ataque de mísseis sobre o Sul e o Oeste da Ucrânia deixou sem electricidade quase um milhão e meio de residências, e dois dias depois sabia-se que estavam inoperantes mais de 40% da rede eléctrica, além de canalizações de água, gasodutos e todas as refinarias. A conversão dos civis em alvos militares tem-se agravado. Em 31 de Outubro os bombardeamentos multiplicaram-se por todas as regiões, visando não só as infra-estruturas eléctricas, mas também o fornecimento de água; em Kyiv, 80% dos habitantes ficaram durante alguns dias sem água corrente e 350 mil sem energia eléctrica. No dia 1 de Novembro Zelensky acusou a Rússia de ter danificado 40% da infra-estrutura energética ucraniana e seis dias depois anunciou que mais de quatro milhões e meio de ucranianos estavam privados de electricidade.

Para quem queria «libertar a população», ficou patente a demagogia. Patente… salvo para a esquerda que apoia Putin.

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Além do fornecimento de material bélico, outra componente do apoio ocidental à Ucrânia são as sanções económicas contra a Rússia, mas elas revelaram-se uma arma de dois gumes. Contra os russos, depois de uma breve repercussão imediata, prevê-se que os efeitos negativos sejam tardios e apenas a longo prazo. Em sentido inverso, sobre o Ocidente aquelas sanções estão a ter efeitos negativos rápidos. A inflação e, chegado o Inverno, a escassez de energia arriscam-se a virar uma percentagem crescente da população europeia contra o apoio à Ucrânia, e nesta perspectiva são já sensíveis algumas tensões entre os governos da União Europeia. A União não se romperá por esse motivo, mas o perigo consiste num aumento do apoio popular a Putin e, portanto, aos partidos de extrema-direita e fascistas.

Como se não bastasse o impacto político imediato, numa perspectiva a médio e longo prazo as sanções agravam a tendência antiglobalização que a administração americana tem adoptado desde a administração Trump. Independentemente de outros factores, os efeitos económicos dessa antiglobalização são uma redução da produtividade, com o consequente aumento dos custos na produção de bens e serviços, uma desaceleração geral do crescimento e um aumento da inflação, decorrente do aumento dos custos de produção.

Por outro lado, usar a política para impedir a evolução económica não é eficaz a médio ou longo prazo. As potências em declínio económico, como é actualmente o caso dos Estados Unidos, podem, com recursos estritamente políticos, abrandar esse declínio, mas não invertê-lo. E ao pretenderem travar o desenvolvimento de uma grande potência ascendente, como é a China, isolando-a de certas relações económicas globais, os Estados Unidos só estão a obter o resultado contrário, pressionando a China a desenvolver por si própria tecnologias de ponta que antes podia importar. No que diz respeito a esta questão, porém, a Rússia está longe de ser uma potência económica e nem isso está ao seu alcance. No plano económico, tanto a invasão da Ucrânia como as sanções ocidentais beneficiam sobretudo a China, que mantém cativo o mercado russo, e beneficiam-na igualmente no plano diplomático, onde a China joga com uma certa neutralidade ou, pelo menos, ambiguidade.

No entanto — e este é mais um factor a animar o puzzle — depois de uma queda brusca provocada pela invasão, a vida económica da Ucrânia começou a recuperar a partir do momento em que o país começou a alcançar vitórias militares. Se continuará a recuperar, isso é ainda incerto. Mas, para já, parece que as potências ocidentais teriam sido mais hábeis se se preocupassem menos com as sanções contra a Rússia e concentrassem a sua acção económica apenas, ou sobretudo, no apoio à Ucrânia. Mas não é o que sucede. The Economist de 20 de Outubro de 2022 sintetizou o problema. «A Ucrânia recebeu 23 biliões [milhares de milhões] de dólares (equivalentes a 12% do seu PIB de antes da guerra) como ajuda orçamental, além de contribuições militares e humanitárias. Os Estados Unidos forneceram subsídios [grants] em tempo útil e comprometeram-se a oferecer no próximo ano 1,5 biliões de dólares mensalmente. A União Europeia, porém, não fez uma coisa nem outra. Até agora, o seu financiamento está em atraso, com biliões ainda pendentes. Esse dinheiro tem a forma de empréstimos [loans], não de subsídios [grants]. E os Estados membros estão ainda a discutir como irão pagar o apoio no próximo ano».

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Outro aspecto das contradições internas do regime russo agravadas pelo expansionismo foram os sucessivos fracassos dos serviços de segurança e espionagem. O primeiro, e talvez mais grave, desses fracassos consistiu em terem convencido Putin de que as suas tropas seriam bem acolhidas pela população ucraniana. Em segundo lugar, pelas repercussões que teve sobre a ala fascista do regime e pelos mistérios que deixou sem elucidar, está o atentado de 20 de Agosto que visou Aleksandr Dugin, mas lhe vitimou a filha. Em terceiro lugar nesta lista de fracassos dos serviços de espionagem e segurança está a operação que os ucranianos conseguiram efectuar em 8 de Outubro contra a ponte de dezanove quilómetros que liga a Rússia à Crimeia. Finalmente, em quarto lugar, aqueles serviços nem evitaram nem esclareceram a acção de 14 ou 15 de Outubro, quando, numa base militar no Sudoeste da Rússia, dois homens armados mataram onze pessoas e deixaram feridas outras quinze. Segundo The world in brief de The Economist de 15 de Outubro de 2022, o Ministério da Defesa russo classificou esta acção como «um ataque terrorista». «O incidente põe em evidência um descontentamento crescente pela mobilização de russos, decidida por Vladimir Putin para a sua guerra na Ucrânia», considerou The Economist em The world in brief do dia seguinte.

O Ministério dos Negócios Estrangeiros russo revelou as mesmas deficiências que os serviços secretos no que diz respeito a manter o governo bem informado, e esta é outra faceta das contradições internas do regime. Com efeito, aumentou o isolamento internacional da Rússia. Numa soma bastante esclarecedora, em 12 de Outubro, na Assembleia Geral das Nações Unidas, a resolução condenando a anexação pela Rússia das quatro províncias ucranianas ocupadas, ou parcialmente ocupadas, foi aprovada por 143 países e só 5 países votaram contra, enquanto 35 se abstiveram, entre eles a China e a Índia. As contas são fáceis de fazer. Até o governo turco, apesar da ambiguidade das suas relações com a Rússia, se manifestou publicamente contra os referendos e a anexação.

Passando da aritmética a uma álgebra um pouco elaborada, verificamos que o fracasso diplomático foi ainda mais estrondoso. Antes de tudo, as ambições geopolíticas da Rússia geraram uma enorme contradição, porque Putin passou a deparar com a desconfiança das novas nações independentes que antes haviam integrado a União Soviética e não estão dispostas agora a sujeitar-se ao expansionismo russo. Nenhuma destas nações reconheceu a anexação das quatro províncias ucranianas e nem sequer a Bielo-Rússia a reconheceu, apesar de ser um verdadeiro Estado vassalo.

Além disso, a invasão da Ucrânia e a reacção ocidental tiveram como efeito desfazer a unidade do Grupo de Visegrád e, assim, destruir o principal bastião de Putin na União Europeia. Dos quatro países que constituem este grupo, só a Hungria se mantém política e economicamente próxima da Rússia, enquanto a Polónia, a República Checa e a Eslováquia estão na primeira linha da oposição aos desígnios russos. Em compensação, o triunfo eleitoral da extrema-direita e dos fascistas em Itália pareceu de imediato favorecer Putin, mas se Matteo Salvini e a Liga continuam a simpatizar com a política externa russa e se Silvio Berlusconi, à frente do Forza Italia, se reivindica da amizade com Putin, a chefe dos fascistas Fratelli d’Italia e actual primeira-ministra, Giorgia Meloni, distanciou-se de Putin e expressou um claro apoio à Ucrânia. Afinal, e embora Giorgia Meloni corra o risco de ser ultrapassada em fascismo pela Liga, que é o principal parceiro minoritário do governo, talvez a amizade de Berlusconi e a simpatia da Liga não valham muito a Putin.

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A trilogia que a Rússia de Putin herdou da União Soviética é composta pelo autoritarismo político, o aparelho policial e a aspiração geopolítica. E assim, do argumento de que iria libertar os ucranianos de um regime alegadamente nazi, Putin passou ao argumento de que irá cumprir o destino geopolítico da Rússia, que a União Soviética havia assumido. Ou seja, de um argumento político aparentemente de esquerda, ao qual aderiu grande parte da extrema-esquerda ocidental, Putin passou para uma geografia mística, típica da vertente russa do fascismo.

Não é esta a ocasião para descrever, ainda que brevemente, a génese e a amplitude de desenvolvimento do fascismo russo, desde Sergei Zubatov e as Centúrias Negras, passando pelos anos da guerra civil e depois pela emigração, tanto na Ásia como no Terceiro Reich e, após o final da segunda guerra mundial, nas democracias ocidentais. É o renascimento do fascismo no interior da sociedade russa que interessa destacar, e basta-me mencionar aqui dois pólos:

De um lado está o Partido Comunista da Federação Russa, o segundo maior do país, que já há vinte anos Stephen D. Shenfield hesitara em considerar se seria completamente fascista ou ainda só se aproximaria do fascismo (Russian Fascism. Traditions, Tendencies, Movements, Armonk, Nova Iorque e Londres: M. E. Sharpe, 2001, pág. 51). Parece-me que hoje a dúvida se esclareceu, porque este partido esteve na origem imediata da invasão da Ucrânia, ao apresentar no parlamento a proposta de reconhecimento da independência de Donetsk e de Luhansk.

No outro extremo do leque do fascismo russo, na sua vertente mais radical, o Partido Nacional-Bolchevista, fundado por Eduard Limonov, agitou com uma contra-cultura o que sem isto se arriscaria a ser um fascismo demasiado conservador. Foi entre os nacionais-bolchevistas que emergiu Aleksandr Dugin, e talvez ele sintetize melhor do que ninguém o carácter místico do fascismo russo actual. Destaquei no Labirintos do Fascismo (São Paulo: Hedra, 2022, vol. VI, pág. 166) «a importância do racismo transcendente de Evola para a formação do pensamento de Aleksandr Dugin, e como Dugin se interessa igualmente pela Ariosofia, isto situa-o na linhagem de Lanz von Liebenfels e, portanto, na proximidade dos interesses esotéricos de Hitler e Himmler». E concluí. «Trata-se aqui, mais do que de uma inspiração directa, de uma revitalização de algumas fontes do Terceiro Reich para a partir delas criar formas contemporâneas».

Como não há fascismo sem milícias, não posso deixar de mencionar o Grupo Wagner, cuja existência, inicialmente discreta, se tornou notória com a continuação da guerra na Ucrânia e cujo chefe, ou dono, Yevgeny Prigozhin, é hoje uma das vozes mais estridentes na crítica aos fracassos dos generais, não poupando o próprio ministro da Defesa.

No entanto, mesmo com este pano de fundo e sob a forte influência ideológica do fascismo nativo, o regime encabeçado por Putin não podia considerar-se mais do que fascizante ou proto-fascista. Foram precisamente as dificuldades sentidas pelo exército russo perante a resistência dos ucranianos que levaram a componente fascista do regime a reforçar-se, tornando-se cada dia mais clara. Boris Bondarev, um diplomata russo que em Maio de 2022 se demitiu em protesto contra a invasão da Ucrânia, talvez não tivesse exagerado quando afirmou: «A guerra mostra que a Rúsia já não é apenas ditatorial e agressiva; tornou-se um Estado fascista» («The Sources of Russian Misconduct», Foreign Affairs, Novembro-Dezembro 2022). Com efeito, ao ler um trecho do discurso que Konstantin Malofeev, um empresário fascista estreitamente ligado à Igreja Ortodoxa, proferiu no funeral de Darya Dugina — «O povo que nos está a combater não compreende que o povo russo não é constituído somente por aqueles que agora estão vivos. Mas é constituído por aqueles que viveram antes de nós e pelos que hão-de viver depois. E fortalecer-nos-emos com o sangue dos nossos mártires» — pensei imediatamente numa das inspirações originárias do fascismo, o nacionalismo orgânico de Rousseau, para quem a nação seria formada pelos mortos e pelos vivos e por todos os que ainda não haviam nascido. Foi este um tema que ecoou pelos fascismos, desde a Associação Nacionalista Italiana até ao fascismo místico de Codreanu, e que inspira agora Putin e a sua corte.

O carácter místico do regime de Putin acentuou-se nos últimos dias. Ramzan Kadyrov, que está à frente da República Tchetchena e foi recentemente promovido a coronel-general no exército russo, considerou que o objectivo da invasão é a «completa des-satanização» da Ucrânia. Mas como, apesar dos cargos que exerce, Kadyrov é um personagem um tanto extravagante, poderia pensar-se que se tratasse apenas de uma opinião pessoal, não fosse o facto de Aleksey Pavlov, secretário-adjunto do Conselho de Segurança da Federação Russa, ter igualmente afirmado que a «Igreja de Satanás» se espalhou pela Ucrânia, concluindo: «Acredito que, com a continuação da operação militar especial, torna-se cada vez mais urgente realizar a des-satanização da Ucrânia». No dia 26 de Outubro Kadyrov apelou para uma jihad russa na luta contra a Ucrânia e, além de considerar a homossexualidade como a expressão mais tangível do satanismo ucraniano, afirmou que «todas as regiões e a Ucrânia como um todo são território russo». Ele é uma das vozes extremas a reclamar o endurecimento da guerra e não se exprimiu por meias palavras. «Nós não vamos deixar que esses diabos sejam prisioneiros, vamos queimá-los». E no dia 4 de Novembro foi a figura tutelar do fascismo místico, Dugin, quem disse numa entrevista à televisão estatal que as forças russas estão a travar uma «guerra santa» contra o «Anticristo». E concluiu. «É uma guerra santa contra o Ocidente satânico».

As recentes decisões tomadas por Putin e pelo parlamento da Federação Russa contra os homossexuais e contra quaisquer relações sexuais não convencionais mostram que a estratégia de des-satanizar a Ucrânia foi aceite ao mais alto nível. Uma «operação militar especial» iniciada sob o pretexto de desnazificar a Ucrânia converteu-se numa guerra de longa duração sob o lema da des-satanização. A transformação não podia ser mais eloquente.

Neste contexto assume um especial significado o facto de há já alguns anos os homossexuais alistados no exército ucraniano constituírem informalmente uma rede de contactos, que denominam Batalhão Aquiles. Embora sem combaterem juntos, reúnem-se para acções de esclarecimento e sensibilização, e é necessária uma enorme coragem para enfrentar o destino que terão se caírem prisioneiros dos russos.

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Como irá terminar esta guerra?

As condições nos dois países não são simétricas. Zelensky não pode recuar, senão haveria um golpe político e ele seria substituído por alguém que não recuasse. Mas para Putin o jogo é outro, porque não lhe basta não perder a guerra. O que lhe é exigido pelos seus partidários é que a ganhe. E, se não der mostras de triunfar, as insatisfações aumentarão e poderá eclodir uma crise política. Em que direcção?

A classe trabalhadora na Rússia está demasiado desorganizada para constituir uma força política própria. Cresce a insatisfação e agravam-se as fricções e as cisões sociais, mas sem que nada disto deixe antever qualquer processo revolucionário. Nestas circunstâncias, os descontentamentos mais importantes surgirão no interior da elite das classes dominantes. Em que sentido?

Prevalecerá a ala liberal do capitalismo, interessada nas boas relações internacionais e, por isso, desejosa de paz? Ou contra os interesses económicos prevalecerão os anseios ideológicos dos fascistas propensos ao misticismo geopolítico, desejosos de agravar a guerra?

A mobilização parcial decidida em 21 de Setembro assinalou um passo importante na ampliação da guerra, e em 19 de Outubro Putin foi mais longe e decretou a lei marcial nas quatro províncias ucranianas anexadas, mas só parcialmente controladas. Bem-vindos à Rússia! Na mesma ocasião, Putin ordenou a mobilização económica das oito províncias russas que fazem fronteira com a Ucrânia, conferindo aos governos locais autoridade para aumentar a produção e restringir os movimentos populacionais. Na realidade, o estado de alarme estendeu-se a toda a Rússia.

As vozes críticas da condução da guerra e desejosas de ampliá-la são cada vez mais audíveis. Mas dificilmente se fará uma Guerra Total, implicando a mobilização geral da população, sem ascender igualmente na escalada das armas empregues. Putin e os seus próximos começaram a falar de armas nucleares e assim, depois de iniciarem a invasão apresentando-a como uma operação militar que iria durar poucos dias e em que as tropas seriam acolhidas com abraços e aplausos, passados menos de oito meses anunciam a possibilidade de recorrer ao armamento mais mortífero. Embora alternem o quente e o frio, um dia dizendo talvez e outro dia nunca, quando não dizem as duas coisas ao mesmo tempo, a ameaça paira cada vez com mais frequência e o porta-voz do Kremlin preveniu que a segurança das quatro províncias ucranianas anexadas estaria ao mesmo nível do restante território da Federação Russa, o que as colocaria sob a protecção do arsenal nuclear russo. É certo que se pode argumentar como James Acton, do think-tank Carnegie Endowment, quando declara que Putin «preferiria ameaçar com o uso de armas nucleares e obter concessões do que realmente usá-las». Mas até que ponto é possível sustentar o bluff neste poker real? No final de Outubro o exército russo, sob a supervisão de Putin, realizou as suas primeiras manobras com armas nucleares desde a invasão da Ucrânia. Ora, a simulação de um ataque nuclear massivo foi uma simples manobra ou foi uma preparação? E se Putin, ou alguém por ele, der um passo mais longe, dificilmente o uso de armas nucleares de alcance meramente táctico não desencadeará uma resposta com armas nucleares de alcance estratégico. E depois?

Nesse caso a única questão é saber se haverá depois.

A fotografia de destaque é de Eduard Korniyenko e as outras, no sentido descendente, são de Zohra Bensemra, Umit Bektas e Anastasia Vlasova.

7 COMENTÁRIOS

  1. No Irão, segundo anunciou hoje o grupo Activistas dos Direitos Humanos, a repressão às manifestações na sequência do homicídio de Mahsa Amini causaram a morte de pelo menos 328 pessoas e a detenção de 14.825.

    Putin escolhe bem os seus aliados na cruzada contra o satanismo.

  2. LL,

    Sem esquecer que no minuto 1:33 os manifestantes gritam «contra o satanismo». E tudo isto com bandeiras vermelhas, martelo e foice.

  3. Para além de Kadyrov, Dugin e outros, segundo o despacho da agência Reuters abaixo, também Dmitry Medvedev – ex-presidente e ex-primeiro-ministro da Federação Russa e atual vice-presidente do Conselho de Segurança do país, órgão que assessora o presidente em assuntos relativos à segurança nacional – declarou que a missão da Rússia é “deter o líder supremo do Inferno, seja qual for seu nome – Satã, Lúcifer ou Iblis”. Além disso, Medvedev declarou que a Rússia tem um poderio bélico capaz de “mandar todos os seus inimigos para o fogo de Geena”, acrescentando que Satã faz das mentiras sua arma, mas “nossa arma [da Rússia] é a verdade. É por isso que a nossa causa é justa”.

    Ver: https://www.reuters.com/world/europe/medvedev-says-russia-is-fighting-sacred-battle-against-satan-2022-11-04/

  4. João,

    só duas notas para reflexão.

    1- não creio que a China sairá assim tão fortalecida. O reforço de Xi no congresso do PC chinês vem na sequência do que noutros artigos abordaste como os problemas que o regime chinês tem tido em incrementar a mais-valia relativa, tendo até andado a reforçar os mecanismos da mais-valia absoluta. Por outro lado, a derrota militar russa na Ucrânia impedirá ou adiará uma intervenção militar sobre Taiwan? Por outro lado, as palavras do Biden na sequência da cimeira dos G20 vão na linha de uma maior aproximação dos EUA à China (quando menciono aproximação, refiro-me sobretudo a um clima mais amistoso entre os capitalistas dos dois países). Aliás, uma das “vitórias” de Putin encontra-se no facto de a China estar a afastar-se do seu regime, tendo-se manifestado contra o uso de armas nucleares na Ucrânia.

    2- nesta fase não me parece que Putin venha a utilizar armas nucleares. Claro que isto vale o que vale, ou seja, quase nada, mas repare-se que quando o Putin anexou as 4 regiões ucranianas veio com a ameaça de que como aquilo agora era território russo, qualquer investida militar seria considerada um ato de guerra e, portanto, poderia ser sancionado com armas nucleares táticas (de acordo com a doutrina militar russa). Ora, os ucranianos acabam de recuperar uns 6000 km2 em Kherson, incluindo a capital regional com o mesmo nome. Não se ouve nem um pio de Putin. Nem a conversa de há umas semanas da dirty bomb que os ucranianos estariam supostamente a preparar e que justificaria o uso de uma arma nuclear russa como resposta.
    Isto leva-me a uma outra consideração. O Putin acharia que o seu bluff resultaria sempre. E uma das consequências da guerra é que as palavras dele já não metem o medo de outrora. Aliás, chegou-se ao ponto de naquela declaração no Kremlin aquando da anexação de Kherson, Luhansk, Donetsk e Zaporizhia ele dizer que intervenções militares levariam o exército russo a utilizar qualquer tipo de armas, subentendendo-se as armas nucleares (“isto não é um bluff”, palavras dele) e o que aconteceu? O tipo ameaça com armas nucleares, os ucranianos atacam a ponte de Kersch e aquilo estará praticamente inutilizado até julho de 2023, para transportes ferroviários. O tipo ameaça com armas nucleares após a anexação dos oblasts ucranianos e o exército ucraniano conquista Lyman no Donbass e a margem esquerda/ocidental de Kherson. Dizer que não se está a recorrer ao bluff e nitidamente perceber-se que aquilo não passou de bluff é uma derrota política tremenda. Claro que o tipo pode vir a mudar no futuro. Mas, neste momento, a política – militar, diplomática, etc – foi um falhanço tremendo.
    A isto junta-se o (bluff em torno do) gás. Ele esperava gelar a Europa central e o que aconteceu? Todos aqueles países (especialmente a Alemanha, que era um importantíssimo parceiro comercial) aumentaram as reservas de gás natural e deixarão de necessitar do gás russo. Aliás, o preço internacional do gás está, hoje, num nível muito inferior ao de meio ano atrás. No curto prazo, as sanções marcarão fortemente as populações da Europa e dos EUA, mas no longo prazo a economia russa corre o risco de se tornar ainda mais obsoleta.

  5. João,

    Nas vinte e quatro horas que correram depois de teres escrito o teu comentário, muita coisa se passou. Antes de mais, o folhetim da queda do míssil na Polónia. Ao acompanhar as sucessivas versões dadas pelos países da Nato, desde a que afirmava que os russos eram os culpados até à que agora admite que, afinal, talvez tivessem sido os ucranianos a disparar o projéctil, lembrei-me de uma frase que escrevi neste artigo, a de que «é irónico que, nesta tragédia de enganos, o exército russo esteja a beneficiar da moderação americana». Outra coisa para a qual vale a pena chamar a atenção é a publicação esta manhã, na Foreign Affairs, de um artigo de Timothy Naftali, «Putin’s Fear of Retreat. How the Cuban Missile Crisis Haunts the Kremlin». Bluff, não bluff? Muitos falam mas ninguém sabe.

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