Por Jan Cenek

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O homem é um animal que morre e sabe que vai morrer: é o limite e a possibilidade.

Escrevendo sobre Dom Sebastião, Fernando Pessoa registrou:

Sem a loucura que é o homem
Mais que a besta sadia,
Cadáver adiado que procria?

Com a loucura, o homem deixa de ser a “besta sadia”, mas continua sendo o “cadáver adiado que procria”, caminha para o caixão ou para o forno do crematório. O poeta Souzalopes gostava de brincar com fogo e, talvez por isso, optou pelo forno do crematório, mas, no meio da caminhada pela vida, escreveu:

que é o homem e sua poesia é o que não sei
não são palavras o homem não é uma
pedra seca e fria e poesia não são as
duas palavras ou três que tenho e sei
que não são poesia e não são poesia
estas palavras ciropédia enciclo
pedia pedilúvio pérgula por que o homem
vai para onde em pé de verso e guerra

O que é homem? Um naco de carne? Um conjunto de acasos? Um quebra-cabeça de ossos? Um erro? Um absurdo? Um grito? Uma caminhada? Um abismo? Um salto? Incompletude? Um poema? Um verso? Uma palavra? Uma sílaba? Nada? Interrogação? Reticências?

Saber se Deus escolheu o caixão ou o forno do crematório é inútil. O importante é que, com o desaparecimento do criador, o homem perdeu o pai que o confortava depois dos pesadelos, no meio da noite. Desde então, o homem deve se garantir com a fibra da própria carne. É preciso suportar o peso do mundo com o cálcio dos ossos, esperando uma manhã que pode não vir. A vida tem a beleza da despedida contínua.

A vida é breve como a fruta que apodrece. Aos trinta têm início o declínio e o envelhecimento. Aos quarenta a memória começa a falhar.

Mas se é assim, se o homem caminha para o caixão ou para o forno do crematório, como é possível ver beleza na condição humana? Por que poetas e escritores se espantam com a vida? Tem a ver com a beleza do que é finito e incompleto.

Uma das definições que os dicionários dão para a palavra vida é “tempo decorrido entre o nascimento e a morte”. A natureza e os dicionários não separam a vida da morte. Os urubus não separam a vida da morte. Os pássaros começam a cantar no final da madrugada, apesar dos mortos da noite.

Vida e morte caminham de mãos dadas. Estas histórias nasceram do cadáver de um romance, que apodreceu e adubou a tela do computador. Brás Cubas, o defunto autor, foi morto por uma pneumonia. Estas histórias nasceram durante uma pneumonia, num leito de hospital.

Homem: palavra tão bela quanto perecível, bela porque finita. Que o homem é perecível, é sabido. Que a condição humana seja bela exatamente porque o homem é finito, é uma sensação espalhada por estas histórias. A precariedade da vida costuma ser definida de forma negativa, mas há beleza na precariedade: é a beleza da fruta que apodrece. Animal de sangue e sonhos, o homem se revolta contra sua condição de fruta que apodrece, e perde o espetáculo do movimento. A beleza e a grandeza do homem nascem da sua condição precária, do seu caráter eternamente provisório e, sobretudo, da consciência dessas duas coisas.

Outra sensação espalhada pelas histórias: o humor só existe porque o homem é perecível e a vida é precária. Não há riso no paraíso, ou, pelo menos, não há riso que não seja de aprovação. O riso contagiante é, sobretudo, de desaprovação, iconoclasta, desesperado. Ri melhor quem ri porque desaprova.

Contra uma das máximas de Camus, mas de acordo com o sentido geral da obra do escritor argelino, é preciso afirmar: os homens são felizes porque morrem.

Ser é não ser, eis outra questão.

*

0

minha terra tem palmeiras
onde canta a motosserra

1

Quando saltou do viaduto construído sobre o leito canalizado e enterrado do Córrego das Almas, o poeta não conhecia a história do lugar, nem se importava com a queda no concreto: queria apenas ter cabelos que balançassem com os ventos do salto. Na despedida do poeta, faltaram os cabelos.

2

Antes de saltar do viaduto que passa sobre o leito canalizado do Córrego das Almas, o poeta subiu no parapeito e olhou para baixo: não queria machucar ninguém, não queria cair sobre as pessoas que passavam. Tinha bom coração.

3

A empregada doméstica depilou-se, banhou-se, penteou os cabelos, pintou as unhas. Esperou. Vestiu seu melhor vestido. Perfumou-se. Pegou o ônibus e foi para o viaduto que passa sobre as águas canalizadas do Córrego das Almas. Chegando lá, encostou no parapeito, olhou para os edifícios e pensou: “pra onde vai a merda que essa gente caga?” Daí subiu no parapeito, parou, olhou para os edifícios e saltou. Depois da queda, caiu um temporal. O vestido da empregada doméstica ficou encharcado. O sangue que escorria do corpo dela foi levado pela chuva, desceu pelo esgoto, caiu nas águas do Córrego das Almas.

4

Para sepultar seus medos, São Paulo canalizou e enterrou o Córrego das Almas. Dizia-se que as almas desciam com as águas: gritando, batendo nas pedras, caindo pela cascata da assombração. A cidade esqueceu aquelas águas, que correm nas sombras. Mas os cidadãos adquiriam o estranho hábito de pular do viaduto construído sobre o leito – enterrado e canalizado – do Córrego das Almas. Os corpos caem e se afogam no concreto que cobre as águas.

5

Havia centenas de nascentes e cursos d’água em São Paulo. Com o crescimento desordenado, nascentes foram fechadas e cursos d’água viraram canais de esgoto. Várzeas e lagoas foram aterradas pela especulação imobiliária. Para esconder vergonhas e aumentar lucros, foram construídos edifícios sobre várzeas e lagoas aterradas.

Nas últimas décadas do século XX, quando a cidade havia escondido suas vergonhas, os cidadãos adquiriram o estranho hábito de grafar os muros com palavras e símbolos ininteligíveis. Quanto mais pintura e limpeza, mais riscos indecifráveis. Era o grito dos que não tinham o que dizer. Eram as vergonhas da cidade reexpostas.

6

Sociedades violentas e autoritárias precisam de eufemismos. Os assassinatos dos rios de São Paulo foram chamados de retificações: curvas foram desfeitas, leitos escavados, margens concretadas. Como se não bastasse, foram construídas autopistas ao lado dos rios, que correm cercados por seis, oito ou até dez fileiras de automóveis, impedindo o acesso às águas, como se elas fossem portadoras de mensagens subversivas.

Sociedades violentas e autoritárias retificam também os cidadãos: spray de pimenta nos olhos, unhas arrancadas, dentes quebrados, golpes nas costelas, detenções arbitrárias. Quando apesar dos métodos retificadores os cidadãos resistem, são, no limite, neutralizados, eufemismo empregado para disfarçar os assassinatos cometidos pela polícia.

Mas rios e cidadãos resistem. Rios transbordam e retomam os espaços que lhes foram roubados: colocando os automóveis para boiar, refazendo antigas lagoas, levando sacos de lixo. Cidadãos praticam atos subversivos como sentar em roda para tocar e cantar em praça pública. É quando a polícia surge para retificá-los. No entendimento dos soldados, os cidadãos devem permanecer isolados e quietos, como os rios de São Paulo.

Quando presenciou a covardia da polícia contra pessoas que tocavam e cantavam em praça pública, o poeta explodiu. Tinha bom coração. Correu. Declamou versos. Tentou impedir as agressões. Acabou imobilizado, algemado e surrado. Pisaram-lhe no rosto, jogaram-lhe spray de pimenta nos olhos, arrancaram-lhe as unhas, quebraram-lhe uma costela e dois dentes. Ficou três dias detido. O poeta sofreu um processo de retificação, quase foi neutralizado.

7

São Paulo foi fundada sobre uma colina rodeada pelo Córrego das Almas (Anhangabaú) e pelo Rio Tamanduateí (Rio do Tamanduá Verdadeiro). O primeiro deságua no segundo que, por sua vez, deságua no Rio Tietê (Rio da Água Verdadeira), curso sinuoso que corre para o interior.

No topo da Serra do Mar e com águas que correm para o interior, São Paulo ocupava posição estratégica, era a porta de entrada das rotas que levariam ao ouro e às riquezas buscadas pelos portugueses.

Antes da chegada dos invasores havia povos que habitavam os territórios que, posteriormente, formariam a cidade. Em busca por ouro e outras riquezas, os portugueses se aproveitaram dos conhecimentos dos filhos da terra: rotas para interior, trilhas nas matas, rios navegáveis.

Quando os povos subjugados deixaram de ser úteis e começaram a atrapalhar a busca dos portugueses por ouro e outras riquezas, estes passaram a eliminar aqueles. Violaram cemitérios, estupraram mulheres, mataram homens e idiomas. Mas restaram palavras antigas que dão nome a rios, ruas, picos, parques e bairros: ipiranga, tabatinguera, jaraguá, anhembi, itaquera…

Tais palavras, assim como os rios da cidade, quase não são notados, mas sobrevivem, resistem e transbordam.

8

Era uma jovem como outra qualquer. Tinha sonhos, morava com os pais, estava deprimida e fazia tratamento. Queria superar a doença para estudar. Lutou com todas as forças contra a depressão. Participava de encontros religiosos. Frequentava igrejas. Tomava medicação. Até que conheceu um homem, engravidou e as coisas mudaram. O bebê passou a ocupar os pensamentos dela. Tinha dúvidas que preferia não revelar para o namorado e para os pais. Parecia bem. Mas, no sexto mês de gravidez, teve uma crise. Pegou o elevador, foi até o topo do edifício e saltou. Deixou um bilhete: “Me desculpem, mas não quero meu filho neste mundo! Adeus!”

9

Havia em São Paulo 11 professores, 8 médicos e 3 boticários. A cidade era formada por 40 ruas, 15 igrejas, 6 largos e 4 pontes. As construções eram de taipa. Havia também fazendas com sinhozinhos, sinhazinhas, escravos, escravas, casas grandes e senzalas.

Quando o sinhozinho viu a menina de 14 anos, ficou excitado e mandou trazê-la para a casa grande. Foi para um dos cômodos e esperou. Conduzida pelo corredor, ela tremia. No quarto, o sinhozinho agarrou a menina e arrancou-lhe o vestido. Ela sentiu o peso do corpo dele e desmaiou. Ao acordar, notou uma mancha de sangue no lençol. A menina ganhou aquele quarto. Mas se ouvia passos no corredor, tremia.

10

Foi num tempo em que as mulheres andavam pelas ruas com os rostos cobertos. Filha de mãe alcoólatra, não conheceu o pai. Na primeira infância sofreu os primeiros abusos sexuais praticados pelo padrasto. Aos 15 anos fugiu de casa. Foi forçada a se prostituir para sobreviver. Aos 22 anos foi presa, julgada e condenada à morte pelo envenenamento de 3 clientes. No caminho para a forca, ela sorriu.

11

Foi numa rua de comércio: fria, sem sol, cheia de prédios e de sombras. Ouviu “pega ladrão” e correu. Encheu o peito de ar e de medo e correu. Pensou na mãe e correu. Correu com todas as forças. Foi desviando das pessoas e das barracas dos camelôs. Os gritos cresciam: “pega ladrão, filho da puta, pega, pega ele”. A espessa parede de prédios reforçava os gritos: “aquele, aquele, pega, pega ladrão, filho da puta, pega, pega ele”. Queria se esconder nas sombras. Queria saltar por cima dos prédios e das pessoas. Se pudesse desaparecer. Se fosse uma pipa… Se fosse um balão… Se fosse um passarinho… Se pudesse voar… Se tivesse uma arma. Pensava na mãe e corria. Até que levou um trança pé e caiu. Apagou com uma paulada na cabeça. O último pensamento foi para a mãe. O corpo ficou caído na sombra.

12

Na Praça da Sé, no coração de São Paulo, há uma igreja, um chafariz, monumentos e algumas centenas de moradores de rua. O cobertor não aquecia, o papelão não era suficiente, o álcool não resolvia. Tremia e se encolhia. Não conseguiu dormir. Por baixo do cobertor e do papelão, observava o relógio da praça. A temperatura caía, o tempo não passava, o sol não nascia. Começou a não sentir os dedos, depois os pés e as pernas. Quando o dia finalmente clareou, havia uma igreja, um chafariz, monumentos e um morador de rua a menos na praça central da cidade. Foi encontrado duro e com cara de frio: olhava fixamente para a igreja.

13

Sempre ajudou a família. Cuidava dos irmãos, cozinhava, limpava a casa, trabalhava. Quando pequena, vendia doces. Quando cresceu, passou a vender flores. No final da tarde, a mãe voltava do trabalho e ela saía para vender flores. Caminhava entre os carros com um cesto na mão e uma rosa na orelha. Colocava flores nos retrovisores dos automóveis. Havia quem se escondesse atrás de vidros escuros. Havia os que se emocionavam com a cena, baixavam os vidros e compravam. Havia os desconfiados, que espiavam com medo. Um dia um destes se assustou com o vulto da menina, que se aproximava com uma rosa. O revólver saltou para a mão do cidadão. O tiro certeiro liquidou a florista. Se era virgem, se estava grávida, não se soube. A polícia passou longe. Uma flor morreu no asfalto, sozinha, entre os carros, na boca da noite: num tempo sem remissão.

Leia aqui a parte 2.

As obras que ilustram o texto são da autoria de Max Ernst (1891-1976).

2 COMENTÁRIOS

  1. Estava relendo as histórias, Jan. Que recomecei e parei algumas vezes (compulsoriamente). 101 histórias, e não 100. A 1 °, que é -1, negativa, provavelmente é o “não ser” cheio de dúvidas. Eis uma questão. Mas o ser, quando nasce entre o -1 e o 1 numa zona indeterminada pelo 0 de palmeiras e motosserras, nasce e morre poeta onde nasce a cidade retificando a natureza e os homens, as floristas, as prostitutas enforcadas, os ladrões, as grávidas e os não nascidos, o frio e os suicidas. A explosão da vida e as tragédias sucessivas parecem deixar poucas dúvidas de que se trata do amor.

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