Por Erick Corrêa
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Há no Brasil um trabalho ideológico que está completando sua primeira década de imposturas: o discurso anti-2013. Desde o início, as interpretações daquele período de perturbação da ordem democrática, equivocadas ou tendenciosas, reativaram a máquina infernal do reacionarismo nacional. No dia 8 de janeiro de 2023, essa máquina finalmente explodiu na forma de um “junho de 2013” ao revés, distorcido e deformado por um longo processo de mutação política e ideológica. Nos últimos dez anos, nada neste país foi tão dissimulado com mentiras e desinformação quanto a história daquelas “jornadas”.
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O discurso anti-2013 tem suas origens políticas no campo petista, alvo de constantes protestos, organizados de forma autônoma por novos movimentos sociais sobre os quais o Partido dos Trabalhadores (PT), na gestão do poder federal desde 2003, não exercia qualquer tipo de controle. Entre esses movimentos, aqueles que lutavam pela gratuidade do transporte coletivo se destacaram como os mais organizados, com presença em várias regiões do país e grande potencial de mobilização. Isso ficou evidente durante as jornadas contra o aumento da tarifa em Salvador, uma década antes de 2013, e posteriormente em Florianópolis, entre 2004 e 2005. O Movimento Passe Livre (MPL) surgiu dessas lutas em torno da mobilidade urbana, e a necessidade de defesa, por parte do PT, contra essa nova forma de contestação, serviu como base material para o pensamento anti-2013. Ele se antecipou à criminalização geral do movimento.
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Desde então, essa perspectiva foi disseminada por meio de variados dispositivos ideológicos, entre câmaras de eco digitais, bolhas culturais, acadêmicas e editoriais, sempre atribuindo ao MPL e ao “junho de 2013” uma responsabilização pela Operação Lava Jato, pelo golpe de 2016, pela prisão de Lula e pela consequente ascensão de Bolsonaro ao poder federal em 2018. Nessa retórica conspiratória, os movimentos de base popular e autônoma, assim como as frentes anarquistas, foram politicamente desqualificados como “infantis”, “infiltrados”, “manipulados”, “cooptados” ou “sequestrados” por interesses exteriores a eles, além de terem sido policialmente criminalizados como “baderneiros”, “vândalos” ou “terroristas”. Afinal, “todo inimigo da democracia equivale a qualquer outro, como se equivalem todas as democracias” (Debord). A partir desse momento, o pensamento anti-2013, surgido na reação imediata às “jornadas de junho”, tornou-se uma eficaz estratégia de liquidação simbólica de seu legado, a ser reativada quando for conveniente ao poder de classe, burguês e burocrático. Não é surpreendente, portanto, que aquela “rebelião” tenha ressurgido como um “fantasma”, assombrando as consciências da esquerda ghostbusters no momento que ela retorna triunfante ao poder federal, em perfeita sincronia com a primeira efeméride decimal de “junho de 2013”.
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Diante dessas circunstâncias, o panfleto do ideólogo pró-russo Andrew Korybko caiu como uma luva nas mãos da esquerda petista, que desde 2018 passou a designar “junho de 2013” como uma “revolução colorida”, responsável por uma “mudança de regime” alinhada aos interesses dos Estados Unidos. No entanto, é importante fazer um breve recuo histórico para situar melhor as origens desse “fantasma”, levando em consideração a propagação de desinformação pró-russa e a amnésia histórica predominante na sociedade do espetáculo. A partir das revoluções russa e alemã, bolcheviques e socialdemocratas passaram a associar o anarquismo com a reação contrarrevolucionária de seus respectivos países. Sob esse pretexto, Trotsky empregou os mesmos métodos repressivos utilizados contra os exércitos brancos para reprimir o Exército Insurgente Makhnovista e os revoltosos de Kronstadt, entre 1917 e 1921. Da mesma forma, os socialdemocratas destruíram a revolução dos conselhos na Alemanha e os estalinistas conseguiram conter o avanço das coletividades anarquistas no processo revolucionário espanhol de 1936-1937.
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No mês de junho de 2013, quando a luta contra o aumento da tarifa do transporte público detonou em São Paulo, que era governada na época pelo prefeito Fernando Haddad, o MPL enfrentou uma dura batalha. Haddad defendeu com firmeza o “reajuste” da tarifa, contando com o apoio das forças de repressão fornecidas pelo então governador Geraldo Alckmin, atual vice de Lula. No seu doutorado em filosofia, Haddad argumentava que “o diálogo” é um “elemento fundamental” para a “construção de um projeto alternativo de sociedade”. No entanto, no dia 12 de junho de 2013, que ficou marcado pelo auge da violência policial contra o MPL, o prefeito tranquilizou as elites locais e a imprensa mainstream: “Eu disse e repito que não vou dialogar em uma situação de violência”. É esse gênero de torsão ideológica que está no cerne da narrativa anti-2013: fazer parecer que o Estado é contrário à violência e que o espetáculo democrático favorece o diálogo, quando o Estado é, no essencial, um “bando armado” (Jappe) e o espetáculo democrático é, por definição, o “oposto do diálogo” (Debord).
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Em agosto de 2013, enquanto bandeiras de partidos políticos eram destruídas durante as manifestações, Marilena Chauí deu uma palestra na Academia da Polícia Militar do Rio de Janeiro, na qual relacionou os Black Blocs ao fascismo: “temos três formas de se colocar. Coloco os ‘blacks’ na fascista. Não é anarquismo, embora se apresentem assim. Porque, no caso do anarquista, o outro [indivíduo] nunca é seu alvo. Com os ‘blacks’, as outras pessoas são o alvo, tanto quanto as coisas”. No entanto, o que Chauí não mencionou é que o “alvo” dos Black Blocs era o partido dela, o partido da ordem, e não indivíduos específicos. Quem, afinal, estava palestrando para os policiais e, consequentemente, colaborando com o avanço do “fascismo”, não eram exatamente os Black Blocs. Historicamente, os “blocos negros” são uma tática de autodefesa originada no campo autonomista de Berlim ocidental, sendo utilizada pelos grupos mais combativos aos neonazistas alemães. No século XXI, a tática se espalhou por diferentes países durante protestos que foram duramente reprimidos pelas forças policiais, como França, Itália, Grécia, Egito, Estados Unidos, Canadá e vários países sul-americanos. Nas “jornadas de junho”, essa tática foi empregada em Belo Horizonte, Porto Alegre, Fortaleza, São Paulo e Rio de Janeiro, cidades onde os protestos se estenderam por mais de um ano. Assim, antes mesmo da campanha midiático-penal contra os Black Blocs e outros “vândalos infiltrados em protestos pacíficos” ter sido ativada, os inimigos civilizados e progressistas de 2013 já alimentavam a repressão policial com desinformação sobre autonomistas e anarquistas.
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A desqualificação sociológica e política de 2013 assume, em casos mais agudos, a forma da demonização e do exorcismo. Nas palavras de outro intelectual, “o ‘demoníaco’ deu seu ares da graça nas manifestações de junho, quando depredações, vandalismo e roubo de lojas aproximaram grupos punks, Black Blocs, policiais infiltrados, ladrões e adeptos da ação direta”. Em contrapartida, poderíamos apresentar a narrativa anti-2013 como uma mal caracterizada “amálgama” de pensamentos e discursos punitivistas, patronais, pastorais, politicistas, policialescos e professorais, caso houvesse uma verdadeira simetria de papeis e responsabilidades na repressão geral a “junho de 2013”. No entanto, desde um ponto de vista estratégico, é importante distinguir aqueles que estiveram na vanguarda da aliança repressiva do poder de classe, e esses não foram os policiais, mas sim os intelectuais e políticos progressistas, amparados pelo aparato coercitivo do Estado em sua retaguarda.
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Em 2014, o inquérito policial que acusou 23 manifestantes da FIP por “formação de quadrilha” alegava, sem rodeios, que “a organização não-eleitoral se afasta do viés político-ideológico legítimo em nosso sistema democrático”. Amplamente baseada no depoimento de um agente infiltrado na organização desde as “jornadas de junho”, essa acusação marcou um ponto de inflexão importante no equilíbrio das diferentes forças que disputavam as ruas naquele momento. Uma vez eliminadas as “organizações não-eleitorais” de 2013-2014, a quem a democracia representativa recusava qualquer direito em nome do Estado de direito, abriu-se o caminho para que movimentos anticorrupção e antipopulares, como o MBL e, mais tarde, o bolsonarismo, expandissem suas pautas reacionárias para setores mais amplos da sociedade. O pensamento anti-2013 inverte causa e efeito ao atribuir a “junho” as origens do suposto “grande retrocesso” representado pela ascensão do lavajatismo e do bolsonarismo. Essa perspectiva não pode nem quer admitir sua própria participação ativa, desde o início, no processo de fascização decorrente da reação a “junho de 2013”.
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O medo de “junho de 2013” parece desdobrar-se em três raciocínios aparentemente distintos. No raciocínio conspiratório de esquerda, desinformado pelo imperialismo russo, aquele movimento não teria passado de uma “revolução colorida”: um laboratório de operações stay-behind (encobertas) da CIA no quadro das chamadas “guerras híbridas”. Por outro lado, no raciocínio conspiratório de direita, desinformado pelo imperialismo estadunidense, todo fenômeno político e social é interpretado sob a ótica do suposto “marxismo cultural” atribuído a Antonio Gramsci e Paulo Freire: uma conspiração comunista global a ser prevenida por vias ditatoriais. Já o raciocínio etapista à esquerda do PT, menos esotérico, divide “junho de 2013” em etapas, desde os movimentos espontâneos e populares até as demandas anticorrupção e patrióticas que, difundidas pela mídia hegemônica, teriam “legitimado” a ressureição violenta de velhos fantasmas anticomunistas. Os “conspiratórios” chegam a confundir MBL (Movimento Brasil Livre) com MPL, enquanto os “etapistas” acreditam ser capazes de distingui-los. Entretanto, essa diferença é periférica em tais interpretações, uma vez que ambas convergem em seu caráter centralmente anti-2013.
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“Junho de 2013” não começou nem terminou em junho de 2013. Na época das lutas em torno da mobilidade urbana, que levaram à criação do MPL (às margens do Fórum Social Mundial de 2005, em Porto Alegre), havia um forte movimento antiglobalização na capital paulista. Esse movimento se inspirava nos levantes zapatistas de 1994 e nos protestos organizados pela Ação Global dos Povos (1998), e possuía uma clara identidade libertária, autonomista e anticapitalista. Através de rádios livres e do Centro de Mídia Independente (CMI), essa geração contribuiu para radicalizar o imaginário político dos movimentos que protagonizaram os aspectos mais amaldiçoados de “junho de 2013”. Apesar da forte repressão enfrentada pelos grupos e movimentos que chegaram com “junho” (e não vieram de encontro a ele), é importante reconhecer, em suas formas de ação e organização, os elementos não derrotados do movimento. Eles foram recolocados em jogo principalmente no Rio de Janeiro em 2014, durante as greves selvagens dos garis e dos bombeiros, nas jornadas anticopa, mas também no extenso movimento de ocupações de escolas que ocorreu em diferentes estados, como São Paulo, Goiás e Paraná, entre 2015 e 2016.
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Assim como “junho de 2013”, o autoritarismo do Estado e o reacionarismo da sociedade brasileira não começaram nem terminaram na repressão a “junho de 2013”. A aprovação da chamada Lei Geral da Copa, um ano antes, em junho de 2012, já havia soado o alarme de incêndio: as normas contextuais de exceção e modificações legais e administrativas de caráter excepcional, como as “zonas limpas” e “áreas de exclusividade” por ela instituídas, deixavam claro que os interesses da FIFA (uma associação suíça de direito privado) estavam sendo priorizados em detrimento do interesse público do país-sede do megaevento esportivo. Esses fatos ocorreram em paralelo ao “Programa de Pacificação de Favelas” aplicado no Rio de Janeiro, desde 2008, seguindo os manuais de contrainsurgência utilizados pelos Estados Unidos no Afeganistão e no Iraque. Além disso, a Lei “antiterrorismo” (13.260), sancionada pela então presidenta Dilma Roussef em 2016, atualizava a Lei de Segurança Nacional (LSN) de 1983, expressão jurídica da velha doutrina da Segurança Nacional que fundamentou ideologicamente a ditadura.
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Em 2021, Bolsonaro sancionou uma nova legislação que “revoga” a antiga LSN, porém com vetos que visavam proteger as forças militares de futuros crimes contra o “direito de manifestação” e pela “abolição violenta do Estado democrático de Direito”. De qualquer maneira, a nova Lei (14.197) apenas restaura, com novos termos, a antiga noção de “terrorismo político” da ditadura. Ao derrubar os vetos do presidente anterior, o governo atual pretende punir o chefe da horda ressentida com a derrota nas eleições de 2022 e que depredou a sede dos Três Poderes, em Brasília, no dia 8 de janeiro de 2023. Uma vez capturado o chefe da facção rival, quando a rebelião voltar para o nosso lado, nós é que seremos os caçados, mas agora por um poder repressivo e punitivo enormemente acrescido, tanto tecnológica quanto juridicamente, em comparação ao de dez anos atrás. A chamada “Lei do Estado democrático de direito” não substitui, como tem sido anunciado, mas sim moderniza a LSN da ditadura, que na prática abolia a democracia e o Estado de direito. Que essa lei seja agora nomeada por aquilo que ela deve abolir na prática, evidencia claramente como o espetáculo democrático brasileiro institucionalizou o arquétipo da “novilíngua” (Orwell).
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Janeiro de 2023 aconteceu para que “junho de 2013” nunca mais volte a acontecer.
2013 foi uma revolta contra a ordem, 2023 foi uma revolta na ordem.
2013 foi auto-organizado, 2023 foi hetero-organizado.
2013 foi contrário, 2023 foi favorável ao mundo da hierarquia e da mercadoria.
A vulgata anti-2013 está mais próxima de janeiro de 2023 do que de “junho de 2013”.
As obras que ilustram o artigo são da autoria de Antoni Tàpies (1923-2012).
A última moda disseminada pelas teses anti-2013 é dizer que a tarifa zero já estava sendo pautada pelo PT e que então os movimentos eram voltados para desestabilizar o partido. A esta tese se junta a da “guerra híbrida” e outras.
Erick Corrêa, seu artigo sobre “anti 2013” merece aplausos. “2013 foi auto-organizado”, contudo sem os Anonymous do Brasil e a solidariedade dos vários Anonymous (corrente Anarquista) de outros países o Junho 2013, apartado das Jornadas de 2013, não teria acontecido. Junho 2013 foi pensado desde dos meados de 2012. E muitas análises conjunturais e teorias de mobilização de massas foram consideradas, assim como objetivos almejados, ainda que imponderáveis. Não ocorreu a propalada espontaneidade. Pode-se afirmar que Junho 2013 auto-organizado porque os AAs estavam presentes fisicamente no seio das massas e atuando concomitantemente pelas redes sociais. Enfim, Junho 2013, a “Primavera Brasileira”, nas suas peculiaridades nacionais, como parte da “Primavera Mundial”, rompeu com o amorfismo da passividade social submisso ao “controle psicossocial goberyano” (gal. Golbery do Couto e Silva) estendido da Ditadura Militar pelo viés da “abertura lenta, gradual e segura” (gal. E. Geisel), o que preocupa classe dominante até hoje. Resta ao Junho 2013 mudanças estruturais do Estado, as quais somente possíveis através de uma assembleia popular constituinte revisional. Sim, houve um “fantasma anonimo”. Parabéns pelo artigo, “não esqueceremos”. Saudações.