Por Denilson Cordeiro
“Um cinema como esse ajuda a construir caráter.”
(Kleber Mendonça Filho)
“Retratos fantasmas” é um documentário, segundo o diretor, dividido em três partes: 1) o apartamento de Setúbal; 2) os cinemas do centro de Recife; 3) igrejas e espíritos santos. Na primeira, o diretor e roteirista mostra a casa onde passou grande parte da infância e da vida adulta, primeiro com o irmão mais novo e a mãe (depois da separação do pai), e depois de casado, com a própria família. Na segunda, a história passa a ser contada a partir de imagens de arquivo e de filmagens atuais sobre os lugares das antigas salas de cinema do centro de Recife, a maioria tendo deixado de existir. Algumas dessas salas de que me lembro o nome: Cinema São Luiz, cinema Veneza, cinema Art Palácio. A terceira parte refere-se tanto ao abandono e à demolição de alguns dos edifícios, quanto à transformação de algumas das antigas salas em igrejas e lojas. Pessoalmente, acho que haveria espaço para considerar uma quarta parte: o trecho final com as cenas no uber.
A primeira parte constitui o narrador ou a perspectiva (ou ainda explicita algo da posição de classe de quem narra) a partir da qual as demais partes serão contadas. Na segunda, o assunto do cinema parece trazer algo de uma metanarrativa que ao contar a história do que foi feito faz o que continua podendo ser feito em matéria de filme, de documentário, de história e de lembrança. Na terceira parte, destaca-se o processo de transformação como foco, como se a fantasia do cinema fosse atualizada no transe religioso, o templo da imaginação transubstancia-se no templo da fé. Do projeto artístico, social e intelectual ao doutrinário, religioso e comercial. Na quarta, voltamos ao cinema expressamente ficcional e, por isso, do melhor documentário, como em determinada passagem o narrado reconhece: “filmes de ficção são os melhores documentários.”
O título do filme sugere um balanço negativo, porque ainda que sejam retratos, são de fantasmas, são imagens de mortos. Não será absurdo lembrar do famoso título machadiano “Memórias póstumas”, de um defunto no sentido metafórico, daquele que viveu o tempo vívido dos cinemas de rua e que agora, em parte, só existe na lembrança, cujo processo de aniquilação foi o mesmo do atropelo e dos caprichos dos focos variantes da especulação imobiliária (como o narrador diz: “Os espaços de poder foram muito bem planejados”) e de volubilidade do capital na reconfiguração produtiva dos horizontes de lucro. Cidade, arte e pessoas são consumidas e convertidas apenas na provisória moldura que sofre os abalos da força da grana, como dizia o outro. Nisso o título do filme também lembra o nome livro de Paulo Prado: “Retrato do Brasil: ensaio sobre a tristeza brasileira.”
Aparecem no filme ainda referências a Joaquim Nabuco e a André Rebouças, ambos estudados pela mãe historiadora atenta ao tema da escravidão e ao movimento abolicionista. Portanto, como uma alusão à clareza da mãe quanto ao passado político, econômico e social brasileiro na ordem mundial e, talvez, sobre o tipo de radicalismo que cultivava como intelectual de classe média, em um país como o Brasil. As imagens do ativismo político na eleição de 1989 e a menção a outros envolvimentos políticos parecem confirmar essa hipótese. Ao contar que a mãe trabalhava como pesquisadora na Fundação Joaquim Nabuco, o narrador diz logo em seguida que “não se trata de metodologia (a lembrança), mas de amor”. A referência, no entanto, não deixa de marcar uma parte importante na constituição do posicionamento narrativo e político que também assume.
O filho documentarista herda, ao seu modo, a preocupação com a história e com a posição política que a mãe reivindicava. Passa ao primeiro plano em termos artísticos reinventar e assumir a perspectiva conveniente para contar a história dos mesmos entrelaçamentos de classe (políticos), profissionais (econômicos) e familiares (sociais) nas transformações da casa, dos arredores e, finalmente, de reconfiguração arquitetônica até a supressão física das salas de cinema de rua em Recife. O narrador representaria, nessa leitura, o ponto de vista do intelectual que se esforça na reconstituição da materialidade histórica da marcha arrevesada da reprodução social, no limite das práticas do modesto radicalismo de classe média que assumiu. Lembrando sempre que, salvo engano, atualmente não há outro.
O título traz ainda a ambiguidade de sentidos, uma vez que ou seriam fantasmas os retratos, e, portanto, carregariam um sentido metafórico antigo de não serem reais, mas apenas imagens abstratas, e diriam respeito ao recurso artístico do retrato, mais do que às figuras retratadas. Ou, por outra via, o foco estaria justamente na imagem das efígies de pessoas que já morreram, o que significaria retratos reais cujos modelos são fantasmas. No decorrer do documentário, penso, ambas acepções convivem, seja porque se referem ao ilusionismo próprio do cinema, seja porque pela narração, pelas imagens e pelas sugestões metafóricas, são apresentadas épocas, recursos e condições extintas, ou, antes, que existem apenas na imaginação e na lembrança, são hoje fantasmagóricas.
A fala do diretor durante o documentário é equilibrada (fala pouco e bem), memorialística, bem-humorada e, em poucas passagens, autorreferente, visto que, nesse último caso, tendo as imagens como um fundo, a locução, às vezes, refere-se às próprias palavras, como na passagem na qual diz duas vezes “Eu amo Recife” e conta que achou excessivo, retirou a fala, mas voltou a incluí-la na versão final, porque, segundo enuncia “a gente sempre deve dizer quanto ama alguém”. A narração é sempre em primeira pessoa e, se prestei bem atenção nessa primeira vez que vi o documentário, não formula juízos morais sobre a casa, sobre a cidade, sobre as salas de cinema, sobre o fim delas e menos ainda sobre os filmes. No entanto, pelo contraste das imagens, ficamos com a sensação de que muito se perdeu com o tempo.
O que transparece do conjunto é um retrato pessoal e ao mesmo tempo (ou talvez por isso mesmo) geral da cidade de Recife. De tão meticuloso, o detalhe captado e contado refere a generalidade, o pormenor do aumento das grades e das cercas nas casas exprime o movimento mais amplo da degradação social. A história da casa é também a história da família e dos arredores, que é também a história do filme que se realiza sobre a habitação e sobre a família e sobre a vizinhança até o momento que as salas de cinema das ruas do centro da cidade passam ao foco do documentário. Na intercalação entre filmagens do passado e do presente, os espectadores têm uma ideia da transformação dos lugares no tempo, quase sempre sob o efeito de surpresa e de choque ante a verticalização e o sufocamento arquitetônico urbano.
No caso da casa, as mudanças foram positivas, com expansão e construção; no caso das salas de cinema, foram negativas, com redução e destruição. Seria possível dizer que na lembrança que o documentário instaura a casa representa a cidade e vice-versa, mas também que o cinema representa casa e vice-versa e ainda que a casa, a cidade, as salas e os filmes sejam portadores, respectivamente, de memória, história, tempo e documento. E a síntese é feita pelo gesto cinematográfico. O documentário se constitui pela história das mudanças, das reconstituições e das destruições, ou seja, faz-se pelo que se desfaz, e o que refaz é apenas um tipo de aproveitamento estético, porque de outra natureza, ainda que como arte guarde algo do sentido antigo da ideia de produção.
Ajuda a estimar as peculiaridades de cada estilo de realização, embora sob o risco de injustiças, comparar com outros documentaristas. Por exemplo, em relação a Eduardo Coutinho (penso, por exemplo, em Edifício Master), acho que “Retratos fantasmas” denota uma astúcia particular no sentido de que o diretor-roteirista assume a condução desde a definição do projeto, das sequências e até das imagens, como se a própria montagem estivesse, em parte, antecipada. No caso de Kleber Mendonça Filho, o espectador fica com impressão de que foi a realização de algo que se confunde com a própria história de vida dele. Coutinho descobria o filme, em geral e pelos depoimentos, algumas vezes apenas ao final, no processo da montagem. Em relação a João Moreira Salles (de Notícia de uma guerra particular), distingo uma direção e planejamento mais cerebral, um projeto em que vida pessoal e profissional são estritamente distintas, mesmo, por exemplo, no caso do filme Santiago. Muito mais do que essa espécie de livre associação biográfica-sentimental do diretor de Retratos fantasmas. Os três contam, com estilos e perspectivas distintas, iluminando focos diferentes, a mesma história brasileira de injustiças, violências e destruição, entremeada por episódios de alegria, satisfação e nostalgia.
Nas cenas finais, no uber, o documentarista entabula uma conversa com o motorista. Identificamos rapidamente a mudança de posicionamento das câmeras e os recursos da construção cênica, com closes e tomadas e angulações variadas, passando a contar, aparentemente, outra história. O passageiro-diretor-ator propõe um itinerário que é mais um passeio pelo centro de Recife, e o motorista aceita. No caminho, ao dizer que trabalha com cinema, o cineasta ouve do motorista: “cinema é massa”. A conversa prossegue até que o motorista diz ter um superpoder, o de se tornar invisível, o que prova na sequência, sem deixar de dirigir o carro. O passageiro, apreensivo, coloca o cinto de segurança e, inicialmente intrigado, confirma que o motorista mesmo invisível está lá, e volta a observar as muitas farmácias pelo caminho. Pelas mudanças de tomadas e de câmeras, notamos logo que se trata da inserção de um curta-metragem ficcional no documentário. O expediente, interpretei assim, faz sobrepor a graça da ficção ao possível sentimento nostálgico que o filme inspira. Mal comparando, como o narrador-condutor invisível durante o documentário que nos leva a um passeio pela própria casa e por Recife. E, envolvidos pela poética da rota narrativa e imagética, flagramos, em vários momentos, sugeridos aqui e ali, remédios a alguns dos males das mudanças que o tempo acarretou às salas de cinema, às construções, ao sentimento das pessoas e à cidade. “Retratos fantasmas” é, por isso e muito mais, um retrato, esculpido em carrara, de algumas poucas alegrias e das variadas tristezas do Brasil.
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Voltamos ao cinema para rever “Retratos fantasmas”. Foi um prazer renovado em outro cinema de rua, o Petra Belas Artes, sala Carmen Miranda, numa sessão de 19h, em quinta de feriado chuvoso. Chegamos meia hora antes, para tomar um café e aproveitar algo do ar do tempo antigo no conjunto ainda sobrevivente de salas de cinema. Foi o suficiente para eu, surpreso, me dar conta de que tinha esquecido a caderneta e a caneta para tomar notas de algumas passagens do filme que me chamaram a atenção desde a primeira vez que vimos. Por sorte, vi que na bilheteria vendiam caneta e lápis promocionais do cinema; comprei uma caneta e pedi uma folha de papel à vendedora. Estava, enfim, equipado para a sessão.
Dobrei a folha de sulfite para conseguir melhor apoio na tentativa de no escuro guiar a escrita. Meu intento era registrar os nomes que o diretor dá a cada uma das três partes em que divide o filme, queria anotar certas formulações sobre a mãe, sobre a experiência do cinema na casa do diretor, sobre as transformações e o fim das salas de cinema do Recife. Seguia assim atento a cada fala, anotando nomes próprios, datas e nomes de lugares, sentimentos e gracejos, a menção a letreiros e marquises, da composição de imagens que resultavam em um tipo de fala silenciosa do cinema com o diretor, como o narrador do documentário vai nos contando. Eu tinha a impressão de estar retendo, como prendia, algo mais do que a primeira vez permitiu. Dessa vez, era um prazer mais consciente da relação com o filme, nem por isso menor.
Quando o filme acabou, dobrei mais uma vez a folha e guardei-a no bolso, esperando um momento mais íntimo e doméstico para conferir os registros, mais ou menos como se tivesse um pequeno tesouro à minha espera. Fomos jantar. De volta, no elevador, coloquei os óculos e saquei o papel do bolso e descobri meio vexado e meio chocado que estava em branco. Revirei os bolsos na tentativa de encontrar outro papel, mas nada. Voltei à folha e me dei conta de que durante o tempo todo da sessão a caneta tinha falhado, registrando quando muito apenas algumas marcas ilegíveis de uma escrita fantasma, em consonância, portanto, concluí desolado, com o próprio espírito do filme. Acabei achando justo.