Por Juliana Antunes
“Meu amor, adeus
Tem cuidado
Se a dor é um espinho
Que espeta sozinho
Do outro lado”
(Versos da canção “Por que não me vês”)
Foi em um dia de sol que escutei os acordes de “Lembra-me um sonho lindo” pela primeira vez. Esses chegaram-se por um acaso, por alguma obra do destino da qual não sei o quê agiu de intermédio. Seguidos desses acordes vinha uma voz doce, da qual quase se sentia a maciez de maneira sinestésica, cantando os versos mais poéticos sobre o amor que já pude escutar – “Estala-me a veia em sangue, estrangulada / Estoira no peito um grito, à desfilada” – e que carregavam consigo não só a beleza da escolha de palavras, mas que ressoavam aquilo que é o verbo amar, algo doloroso, arrebatador, que estrangula.
Não foi, portanto, apenas a constituição dos versos, mas também aquela voz ao mesmo tempo suave e dolorida que os entoava que dava esse ar que devia ser transparecido. Esse ar que mostra o que a vida é: é encontro, é completude, mas ao mesmo tempo é dor, é embriaguez. Essa voz, que me arrebatou e encantou no exato momento em que entrou em meus ouvidos pela primeira vez, era a voz de Fausto.
Infeliz, ou felizmente, me obceco facilmente. E fiquei obcecada em escutar mais e devorei de uma só vez o álbum em que se encontrava “Lembra-me um sonho lindo”, o “Por este rio acima”. Nunca, nunca havia visto algo igual, canções que se entranhavam como um livro melódico, que contavam uma história que conhecemos (e não conhecemos) ao mesmo tempo.
“Por este rio acima” , álbum de 1982, viria a ser considerado em 2009 um dos melhores álbuns portugueses dos anos 1980 , integrando ao mesmo tempo a lista dos melhores 50 álbuns portugueses de todos os tempos. O álbum reúne canções efusivas e melancólicas, sendo uma viagem a um tempo quase remoto, com ares que têm em si um quê de camonianos – muito embora o que inspirasse o álbum fossem os escritos de Fernão Mendes, interpretados aqui criticamente. O encontro descrito em “Por este rio acima” é, ao mesmo tempo, um encontro consigo mesmo. Se “De África, do sal e do mar só eu sobrei” e, se “Foi p’ra me encontrar que amanhã já me perdi” [1], o encontro de “Por este rio acima” é o encontro consigo, com seus fantasmas e com o que restou de si, diante de “Amores repartidos [que] / Afagam as dores / Quando são sentidos [e] Monstros adormecidos” [2].
Mas a obra de Fausto é multifacetada. Existem os amores – “Diz-me agora o teu nome/Se já te dissemos que sim/Pelo olhar que demora/Porque me olhas assim/Porque me rondas assim” [3] – , os contornos e as paixões do mar – “Meu amor quando eu morrer/ Ó linda/Veste a mais garrida saia/Se eu vou morrer no mar alto/Ó linda/E eu quero ver-te na praia” [4] –, a saudade por algo que ainda não o foi – “E a saudade é uma espera/É uma aflição/Se é primavera/É um fim de outono/Um tempo morno/É quase verão/Em pleno inverno” [5].
Ao mesmo tempo há a ironia – “O governo dá solução, manda os pobres emigrar, e os emigrantes que regressaram/Mas com tanto desemprego, os ricos podem voltar porque nunca trabalharam/E assim se faz Portugal, uns vão bem e outros mal!” [6], a intervenção – “Quem conquista sempre rouba/Quem cobiça nunca dá/Quem oprime tiraniza/Naufraga mil vezes/Bonita, eu sei lá” [7] –, a inconformidade – “Mas na verdade, Rosalinda/ Nas fábricas que ali vês/ O operário respira ainda/ Envenenado a desmaiar/ O que mais há desta aridez/Pois os que mandam no mundo/Só vivem querendo ganhar/ Mesmo matando aquele/ Que morrendo vive a trabalhar” [8] – e uma sede por aquilo que ainda está no porvir – “Sei vitórias e derrotas/ Nesta luta que vamos vencer. […] Que atrás dos tempos vêm tempos/ E outros tempos hão-de vir” [9].
A obra de Fausto é multifacetada e presente, porque também o artista o é, e torna-se inconciliável transmitir suas várias faces em algo seco e simplório. Sem dúvidas, o que explora de maneira mais certeira a complexidade dos elementos que compõem esse universo – composto pelo artista e pela obra – são os versos de “Foi por ela”. Ela, aqui, é ao mesmo tempo a mulher, a mãe e o país. A mulher que se ama, a mãe que dá a vida e o país que a nega, impõe ao autor a clandestinidade. [10]
Não apenas as letras, como a acima referida, mas também os ritmos que as contornam. A originalidade da obra de Fausto se encontra, justamente, na ausência de limitações e fronteiras, resquício também de uma vida com a partida em alto-mar, incorporando elementos da música tradicional portuguesa e dos ritmos angolanos.
Diferente dos mares, entretanto, portadores de uma infinitude, temos um ponto de limitação, centrado na única certeza da partida física em algum momento. E, em 01 de Julho de 2024, Fausto cumpriu a finitude da vida. Em contraste à primeira vez que o ouvi, um dia ensolarado, recebi a notícia de sua partida em um dia gélido e chuvoso.
Todavia, talvez a sina do poeta seja ter a existência infinita. Fausto conclui a grande viagem, porém suas canções permanecem. Fausto é, não é possível trata-lo com conjugações no passado, pois sua obra e memória permanecem vivas e trazendo calor aos nossos peitos. Se, como cantara o autor, “Nasci da paixão temporal/Do parto dos vendavais/Cresço no fragor da luta/Numa força bruta/P’ra além dos mortais” [11], ele ainda o é no fragor da coragem, das contestações e dos porquês.
Muito obrigada, Fausto. Delicadamente para ti.
Notas:
[1] Os versos em aspas integram a canção “Canto dos Torna-viagem”, de José Mário Branco, mais especificamente a sua Letra 2, da qual participa Fausto.
[2] Versos da canção “Por este rio acima”.
[3] Versos da canção “Por que me olhas assim?”.
[4] Versos da canção “Como um sonho acordado”.
[5] Versos da canção “Porque não me vês”.
[6] Versos da canção “Uns vão bem e Outros mal”.
[7] Versos da canção “Navegar, navegar”.
[8] Versos da canção “Rosalinda”.
[9] Versos da canção “Atrás dos tempos”.
[10] No ano de 1973, enquanto cursava o mestrado em Relações Internacionais, Fausto Bordalo fora forçado a abandonar tal curso para cumprir serviço militar na guerra colonial – o que se impunha enquanto represália à sua participação no movimento estudantil. Fausto recusou cumprir com a imposição, permanecendo na clandestinidade até o 25 de Abril de 1974.
[11] Versos da canção “Olha o Fado”.