Por Leo Vinicius Liberato
No Primeiro Ato ficava claro para razoável entendedor que aquela ópera era uma tragédia, isto é, terminava em uma. Foi no intervalo do Segundo para o último Ato naquele fim de 14 de novembro que vi a mensagem no celular: “Nossa colega do [estado em que estava lotada], [nome dela] faleceu. Encontraram o corpo dela hoje à tarde. Parece que se suicidou na segunda ou terça”. O Terceiro Ato era o abraço do personagem na morte.
Em tempos de home office um suicídio em casa é no local de trabalho? Embora para efeito de nexo com o trabalho não se possa afirmar e nem negar que tenha sido no local de trabalho, os servidores da Fundacentro com os quais tenho contato sentiram, receberam, assumiram como relacionado ao trabalho. Impossível não pensar isso diante do que temos sido submetidos há quase seis anos… diante de todos os alertas dados… diante do conhecimento sobre organização do trabalho e riscos psicossociais que os gestores do governo passado e do atual governo fazem questão de negar continuamente.
Já era sabido [1], e motivo de indignação [2] e denúncia pública [3] que a gestão de Pedro Tourinho de Siqueira — que se tornou presidente da Fundacentro em 2023 e saiu em 2024 para se candidatar a prefeito de Campinas pelo PT — estabeleceu uma política sistemática e agressiva de impedimento de atividades que vários Analistas em C&T [Ciência e Tecnologia] sempre desenvolveram ou participavam na Fundacentro. Política essa que continua com o atual presidente José Cloves da Silva. Se a prudência manda deixar neste momento ainda no campo da hipótese e da probabilidade essa política de assédio sobre Analistas em C&T ter sido um fator para o suicídio de uma Analista em C&T que também estava tendo suas atividades impedidas, no entanto é inequívoco que essa política de assédio sobre Analistas em C&T foi o fator mais importante para o adoecimento e afastamento de um outro Analista em C&T da Fundacentro. Não se tratou apenas de uma escolha de Pedro Tourinho e de José Cloves da Silva de imporem esse risco psicossocial com suas previsíveis consequências, tratou-se de uma escolha informada, o que acrescenta muito à responsabilidade deles, para além da responsabilidade inerente ao cargo. A escolha informada de colocar em risco a saúde e vida dos trabalhadores foi e é uma escolha (necro)política de Pedro Tourinho e José Cloves da Silva.
Aqui é pertinente abrir um parêntese. O suicídio relacionado ao trabalho é só o topo do iceberg num órgão público. Abaixo desse pico haverá quase certamente uma quantidade bem maior de adoecimentos, e abaixo dos adoecimentos uma quantidade ainda maior, potencialmente englobando a maioria ou quase totalidade, de trabalhadores desmotivados e desengajados do trabalho como forma de defesa.
A tragédia ocorreu na semana seguinte do prazo para os servidores em home office incluírem o planejamento de atividades para o próximo ciclo do PGD (Programa de Gestão e Demandas). Pode ser mera coincidência, mas qualquer investigação que busque o nexo com o trabalho deve investigar essa possível relação, e com ela o fato das Unidades Descentralizadas da Fundacentro (todas as Unidades menos a sede em São Paulo) estarem desde o governo anterior subordinadas à Coordenação Geral de Gestão Corporativa (CGGC), inclusive para aprovação do planejamento do PGD. É a CGGC que opera esse impedimento de atividades de Analistas em C&T. Em fevereiro de 2023, período em que a Fundacentro estava sem presidente, 74 servidores (hoje são cerca de 160 na Fundacentro) subscreveram uma carta ao Ministro do Trabalho, Luiz Marinho. Nela escreveram: “a CGGC foi criada no governo anterior e vem tendo um papel avassalador na gestão de nossa instituição, impondo práticas de assédio institucional”, e solicitaram que “a CGGC seja extinta em um contexto de alteração regimental e reestruturação da instituição” [4]. Mas não só a CGGC, uma espécie de RH com superpoderes, foi mantida por Pedro Tourinho, como a vocação e tendência totalitária da CGGC e seu “papel avassalador na gestão (…), impondo práticas de assédio institucional” teve respaldo de Pedro Tourinho e de José Cloves da Silva, com a CGGC minando a autonomia e o regimento da Comissão Interna de Saúde do Servidor Público (CISSP) e da Comissão Interna da Fundacentro (ambas possuem parte de seus membros eleitos pelos servidores). Extremamente expressivo dessa continuidade e amplificação “do papel avassalador” e totalitário da CGGC é o fato de, em setembro de 2024, a chefe da CGGC ter se tornado substituta do presidente da Fundacentro, José Cloves da Silva.
A colega Analista em C&T que tirou a própria vida também respondia a um Processo Administrativo Disciplinar (PAD), junto com outros colegas. PAD esse aberto pela presidência da Fundacentro no atual governo, referente a fato ocorrido durante o governo anterior, quando os servidores tentavam trabalhar e manter a saúde sob um assédio institucional de natureza organizacional que atingia principalmente os servidores das Unidades Descentralizadas. Pelo que foi levantado informalmente até o momento junto a colegas próximos dela, é provável que esse PAD tenha sido também um fator relacionado ao trabalho a levar ao trágico desfecho. A abertura de PADs na Fundacentro por si só perpetua o contexto de assédio quando seus conteúdos não possuem fundamento ou são claramente persecutórios, ou, como no caso desse PAD, não levam em conta o próprio contexto de desmonte e assédio organizacional no qual os servidores estavam e estão submetidos.
A política deliberada de manter fatores de risco grave e iminente
No atual governo, isto é, nas gestões de Pedro Tourinho e José Cloves da Silva, têm sido abertos Inquéritos e PADs contra servidores por terem denunciado o assédio ocorrido durante o governo passado. Pode ser difícil de acreditar, mas Pedro Tourinho e José Cloves da Silva abriram Inquérito e PAD, respectivamente, contra uma servidora que, em licença do trabalho, criticou em 2022 figuras que já eram ex-presidentes da Fundacentro durante o governo Bolsonaro. A servidora, utilizando seu direito constitucional de livre manifestação do pensamento, afirmou em vídeo que aqueles ex-presidentes eram exemplos de má gestão no serviço público e que sob a gestão deles foi estabelecido assédio institucional. Um desses ex-presidentes se tornou réu em Ação Civil Pública do MPT sobre o assédio institucional na Fundacentro. Em suma, Pedro Tourinho e José Cloves da Silva continuaram utilizando a máquina pública para perseguir servidores, em cumplicidade no mínimo tácita com os gestores do governo Bolsonaro. Um claro desvio de finalidade do aparato correcional da Fundacentro, buscando impedir que os servidores da Fundacentro exerçam o direito de livre manifestação do pensamento, conforme o Artigo 5º da Constituição, mesmo fora do trabalho. Evidentemente, aguardo um Inquérito e um PAD por ter escrito este texto.
A imagem abaixo é muito simbólica da continuidade do assédio na Fundacentro e da cumplicidade entre gestores do governo Bolsonaro e do atual governo do PT. Nela o corregedor que serviu na gestão Bolsonaro agradece o ex-presidente Felipe Portela, réu por assédio institucional na Ação Civil Pública do MPT, assim como agradece a Pedro Tourinho, que o premiou com o cargo de Auditor da Fundacentro, dobrando o valor do cargo comissionado recebido por ele. Mais uma escolha política e informada de Pedro Tourinho que expõe a adesão e continuidade das práticas estabelecidas pelos gestores do governo anterior. Continuidade essa diretamente relacionada ao sofrimento psíquico imposto aos servidores da Fundacentro ainda hoje.
José Cloves da Silva tem ignorado os pedidos de servidores para revogar a abertura do absurdo PAD contra a referida servidora que afirmou em vídeo que os gestores do governo anterior fizeram má gestão e estabeleceram assédio institucional na Fundacentro. Se existe uma ação urgente, necessária e prioritária para reduzir o risco de outro suicídio na Fundacentro, é a suspensão de todos os PADs abertos. Risco esse ainda maior do que antes, pois, como é sabido, a ocorrência de um suicídio aumenta a probabilidade de ocorrerem outros, seja pelo efeito de contágio ou pela deterioração ainda maior do tecido social e do sentimento de impotência. Colocar o conteúdo de um PAD acima da vida e saúde dos trabalhadores é algo indefensável por alguém que esteja gerindo uma instituição dedicada à segurança e saúde no trabalho. O contexto de assédio contínuo, por anos na Fundacentro, e o risco à saúde e vida dos servidores numa situação em que chegamos ao ponto do adoecimento e suicídio, é fundamento mais do que suficiente para José Cloves da Silva suspender os PADs. Novamente, trata-se de uma escolha política, uma escolha política informada. A escolha política de manter os PADs constitui uma política deliberada de colocar a saúde e a vida dos trabalhadores em risco grave e iminente. Em nome de que?
Alertas não faltaram antes que o primeiro suicídio ocorresse, vindo de diferentes servidores. Para dar um exemplo, em 2023 fui à primeira reunião do Grupo de Trabalho de Saúde Mental que estava sendo montado na Fundacentro. Na presença de vários servidores e do Diretor de Pesquisa Aplicada, Rogério Bezerra da Silva (ex-assessor de Pedro Tourinho quando foi vereador de Campinas), apontei, com a veemência necessária, que o risco de suicídio era iminente na Fundacentro, que os fatores estavam dados, principalmente com a abertura de Inquéritos e PADs persecutórios pela atual gestão contra quem resistiu e denunciou o assédio no governo passado. Salvo engano, apontei o histórico recente de ideações suicidas de servidores da Fundacentro. Rogério Bezerra da Silva ignorou solenemente o alerta, sem sequer uma palavra. O negacionismo dos fatores de risco psicossociais estabelecidos por eles próprios e pela gestão passada tem sido o tom das gestões de Pedro Tourinho e José Cloves da Silva. As pessoas que foram postas na Fundacentro pelo partido que a controla demonstram um desprezo pela vida e saúde dos trabalhadores tão grande quanto o desprezo pelo conhecimento estabelecido no campo da saúde do trabalhador. Algo irrefutável diante das trágicas e alertadas consequências.
Uma lição também fica bem clara. Os servidores de uma instituição especializada em segurança e saúde no trabalho estarem sendo submetidos a situações extremamente degradantes para a saúde, demonstra que, principalmente no momento histórico no qual nos encontramos, o conhecimento técnico dissociado da organização e luta dos trabalhadores para mudar a realidade tem menos serventia que um papel higiênico.
A próxima tragédia já está anunciada
Um caso de suicídio arquivado sem consequências aumenta consideravelmente os riscos para a saúde mental de todos os que “permaneceram” (…). Não raro — vários são os casos recenseados — um suicídio agrava brutalmente a degradação do tecido social da empresa no seio da qual, em um lapso de tempo relativamente breve, se assiste a outro, ou a vários suicídios que se encadeiam (Dejours e Bègue, Suicídio e Trabalho: o que fazer? Brasília: Paralelo 15, 2010, p. 23).
Pedro Tourinho foi nomeado como presidente da Fundacentro em 2023, já com a previsão de que sairia em 2024 para ser candidato a prefeito de Campinas pelo PT. Portanto, diferentemente do que diz o slogan do governo, ele não foi posto na Fundacentro para reconstruí-la. Nunca se tratou de intenção de gerir a Fundacentro, de reconstruí-la, mas de usá-la. Isso ficou claro quando se viu a velocidade com que projetos da presidência foram estabelecidos em 2023, sem preocupação com absolutamente nenhuma mudança organizacional numa instituição que vivia (e vive) um assédio organizacional dos mais severos, e sem preocupação com regras de fluxo de projetos. Na própria fala do Diretor Rogério Bezerra da Silva em uma reunião com servidores, a relação utilitária desse grupo que controla atualmente a Fundacentro foi explicitada. Segundo ele próprio, a Fundacentro estava sendo usada como plataforma para esse projeto da presidência lançado rapidamente em 2023. A estrutura e as possibilidades jurídicas de uma fundação pública também estão sendo instrumentalizadas para gerir verba e concessão de bolsas da Secretaria Nacional de Economia Solidária (Senaes). Inclusive faria bem o Ministério Público Federal olhar com lupa os editais dessas bolsas e as seleções dos bolsistas.
Evidentemente, as mudanças organizacionais mais do que necessárias e já tardias, para desfazer o assédio organizacional e os fatores de risco psicossociais na Fundacentro não serão realizadas por um grupo político que veio para a Fundacentro como abutres na carniça. Com os pactos [5] que realizaram e que só agravaram os riscos psicossociais ao ponto da tragédia, esse grupo que controla a Fundacentro é um impedimento para que as mudanças organizacionais ocorram e os fatores de risco sejam eliminados ou reduzidos. É uma ilusão achar que qualquer mudança significativa virá dos gestores atuais da Fundacentro. Na ausência de capacidade dos servidores de impor as mudanças necessárias, só uma intervenção externa, que afaste esses gestores e coloque pessoas comprometidas com a Fundacentro, com uma organização racional e com a saúde dos trabalhadores, e não com uma farra de cargos comissionados e do uso patrimonialista da instituição, pode evitar que as tragédias e adoecimentos se repitam.
Embebedadas com seus pequenos poderes, as pessoas em cargos de gestão na Fundacentro não são capazes de ouvir e se dar conta do risco que elas estão colocando a si mesmas. Existem formas diferentes de suicídio. Ele pode ser, por exemplo, associado a tentativas de matar aqueles que são vistos como fonte do sofrimento. Das ideações de violência e/ou suicidas no trabalho que testemunhei de servidores da Fundacentro nos últimos anos, o uso de taco de beisebol, arma de fogo e explosivos faziam parte da ideação em que gestores também faziam parte da cena. O suicídio é a forma encontrada de cessar um sofrimento que se torna insuportável. Esse sofrimento, associado ou desassociado de ideação suicida, pode levar também a ideações e ações de vingança. De 2000 a 2019, 40,5% dos atiradores em massa nos Estados Unidos tentaram ou cometeram suicídio na ação [6]. Quase o dobro das duas décadas anteriores. O número de atiradores em massa que concebem essa ação como uma forma ou etapa do suicídio deve ser muito maior, uma vez que a metodologia da pesquisa não permite apurar o desejo de ser morto pela polícia ou por outra pessoa durante a ação.
Mesmo as óperas que terminam em tragédia não têm sempre o mesmo final.
Repito:
- Se existe uma ação urgente, necessária e prioritária para reduzir risco de outro suicídio na Fundacentro, é a suspensão de todos os PADs abertos.
- A escolha política de manter os PADs constitui uma política deliberada de colocar a saúde e a vida dos trabalhadores em risco grave e iminente.
Além disso, qualquer outra medida que não vise uma mudança organizacional, desfazendo a organização assediadora estabelecida a partir de 2019, será mera perfumaria. Mudança que deve começar pela extinção da CGGC, um pleito dos servidores desde o início do atual governo. É difícil imaginar que as medidas necessárias ocorram sem o afastamento das pessoas em cargos de gestão e influência na Fundacentro, comprometidos que estão com uma necrorganização do trabalho, com uma necropolítica e com o ocultamento dos adoecimentos e tragédias que ocorrem na Fundacentro. Embebedados por pequenos poderes, ambições pessoais ou ressentimentos, estão presos a um negacionismo que não lhes permite perceber nem sequer o risco que uma política tão doentia gera a suas próprias vidas.
Leo Vinicius Liberato é Tecnologista da Fundacentro. Foi membro eleito da Comissão Interna de Saúde do Servidor Público (CISSP) da Fundacentro durante dois mandatos, de 2018 a 2022, durante os quais foi presidente da CISSP por dois anos. É doutor em Sociologia Política pela UFSC, com pós-doutorado no Departamento de Filosofia da USP.
Notas
[1] Servidores da Fundacentro em Santa Catarina escreveram Comunicação a Pedro Tourinho apontando o impedimento do trabalho de Analistas em C&T entre outras situações expostas que “demonstram quão doentia e retrógrada está nossa instituição”. Como se sabe, Pedro Tourinho ignorou tudo, assumindo responsabilidade pelos acontecimentos subsequentes. A Comunicação pode ser lida aqui: https://drive.google.com/file/d/1auVEtweBho9H7np356Sqm1TmQ5RaR-h1/view?usp=sharing
[2] Como por exemplo a denúncia feita durante apresentação na XII Semana de Pesquisa da Fundacentro em 14 de dezembro de 2024. Ver a partir de 2h27min no vídeo https://www.youtube.com/watch?v=7qxXQVOvWA4
[3] Uma seção inteira do artigo de título O Caso da Fundacentro, publicizado em março de 2024, tratava da política de assédio sobre Analistas em C&T na Fundacentro. Ver: https://aterraeredonda.com.br/o-caso-da-fundacentro/
[4] A carta pode ser lida aqui: https://drive.google.com/file/d/1-hyFUlaifgcrG9-Q45-EzEXO1IacFx-E/view?usp=drive_link
[5] Sobre esses pactos, sem esgotar o tema, escrevi com certos detalhes em O Caso da Fundacentro, disponível aqui: https://aterraeredonda.com.br/o-caso-da-fundacentro/
[6] Girgis, R. R., Hesson, H., Brucato, G., Lieberman, J. A., Appelbaum, P. S., & Mann, J. J. (2024). Changes in Rates of Suicide by Mass Shooters, 1980-2019. Archives of Suicide Research, 1-10. https://doi.org/10.1080/13811118.2024.2345166
As fotografias que ilustram o artigo são de Henri Cartier-Bresson (1908-2004)