Por Ian Caetano

Karl Marx certa vez disse que aprendeu mais sobre o social lendo Charles Dickens e Honoré de Balzac do que com um sem fim de teorias económicas que estudou. A afirmação, evidentemente, é um paroxismo iconoclasta, contudo não deixa de ter um fundo de verdade. Necessitamos de estudos sistemáticos sobre os eventos que nos antecedem, bem como necessitamos deles sistematizados para poder fazer algo que não nos incorra repetir as tragédias, anteriormente experimentadas, no futuro.

A arte, entretanto, traz a subtil análise do sensível, aquela que pega os detalhes, por vezes ocultos, para além da frieza dos dados quantificados ou do padrão documental gélido dalgum período ou desventura. Quando na escola, nas aulas de história, a estudar o período da ditadura civil-militar (1964-1990; sim, coloco o governo Sarney nesse conjunto), com frequência falamos de: Herzog; de Mariguella; de Lamarca; dos mortos da Guerrilha do Araguaia; dos sequestros de diplomatas; dos exilados; dos quantos assassinados não explicados e jamais devidamente sepultados… mas não eram estes meros números planificados numa tabela… estas pessoas não eram produto do éter. Tinham pais, mães, filhos, filhas, amigos, amigas…

E é precisamente destes últimos que trata “Ainda Estou Aqui”. Filme do célebre diretor Walter Salles (que também dirigiu o magistral “Central do Brasil”), a obra trata das agruras e misérias de viver em um regime de tal modo opressor que não tira das pessoas apenas o direito ao contraponto, mas também o direito à felicidade, e observa tal fenómeno pela óptica dos que ficaram, não dos que padeceram.

A obra trata de um fato verídico ocorrido com a família Paiva, onde um ex-deputado progressista e sua família tentam viver de maneira otimista numa realidade completamente desafiadora vis-à-vis tal objetivo. Rubens Paiva, apesar de não mais formalmente ocupar cargo público, ainda participa da vida política e, modesta e moderadamente, auxilia os que mais engajados estão por um futuro não ditatorial, cumprindo uma tarefa simplesmente empática e humana: dar informes aos que tiveram seus parentes “confiscados” pelo regime.

Bastou isso. Dado dia, é “convidado” a prestar esclarecimentos aos militares quanto ao teor de suas atividades. É então conduzido a lugar incerto e sua família “gentilmente” colocada em prisão domiciliar, sob supervisão de agentes da ditadura.

Eunice Paiva, esposa de Rubens, vê-se então no dilema de tranquilizar as filhas e os próximos enquanto ela própria não consegue sequer tranquilizar a si mesma. A presença hostil dos jagunços da ditadura e o silêncio quanto ao que fizeram com ou para onde enviaram teu companheiro apenas elevam a tensão e o medo. Ademais, o complicado de lidar com filhas de diferentes idades e que, cada uma a seu modo, vai tomando ciência de um triste fato: o pai não regressará. O filme é marcado pelas vírgulas visuais de, em momentos parcos de pequenas alegrias, passarem camburões do exército, como que a avisar: “não estejam tão felizes assim”, uma fuligem a turvar os raros instantes de pequenas esperanças.

A fotografia do filme — ora estática, ora em movimento — passa bem a perspectiva da promessa de mudança — em geral protagonizada pelos mais jovens — e da crueza da percepção de que tal mudança talvez demore muito — a agonia representada pelos mais experientes. A cor também oscila, entre o sépia aconchegante e o azul escuro claustrofóbico. Falando de fotografia, aliás, o filme magistralmente usa esse objeto como um artificio da busca pela memória, aludindo — sem ser demasiado explícito — ao fato de que a maior parte das questões relativas à ditadura civil-militar jamais foram devidamente esclarecidas. Por vezes, na obra, vemos filmes em Super-8 e fotografias anexadas aqui e acolá, como um lembrete sub-reptício de que temos de devidamente sanar os crimes e excessos que naquele período ocorreram e não aderir à retórica requentada de que: “agora é olhar para frente”. Olhar para frente significa, em verdade, perceber e entender certos inaceitáveis absurdos do nosso passado. Significa preservar a memória.

O predomínio temático do filme é o obnubilado no qual vive nossa protagonista: Eunice. Uma estrutura familiar que desmorona como castelo de cartas, com as filhas a querer respostas sobre o que está a ocorrer, a vigilância constante do seu lar pelos agentes da ditadura, o não dito sobre o paradeiro de seu companheiro e as despesas e contas que se acumulam.

Nisso, vê-se nossa protagonista forçada a decisões duras: vender a casa; anular projetos; migrar de estado; demitir a empregada doméstica que tinham; enviar a filha mais velha (que tinha já inclinações à contestação) ao exterior para preservá-la de eventuais represálias, etc.

Com o passar do tempo, tanto a esperança de rever Rubens, quanto a do futuro que idealmente edificaram, perde cor, restando apenas a torturante realidade: ele já não está lá. E, contudo, o problema é que ainda está, porque nunca foi devidamente esclarecido seu paradeiro. Como num umbral, nem podem saber dele, nem ter o devido luto.

A amarga dificuldade, agora, é, por um lado, colar os cacos que ficaram do cerne de Eunice e, por outro, um pedido de justiça: “queremos saber o que fizeram com Rubens”. Um processo judicial e político que se arrasta anos a fio e que compromete tempo e angústia emocional de todos envolvidos: amigos; ativistas; parentes. É necessária uma soma considerável de anos até que uma resposta algo vaga seja dada, mostra singela de como operam com descaso os regimes ditatoriais em relação à dignidade humana. É evidente que falarmos de genocídio em massa, de campos de concentração e perseguição a minorias mostra o quão violento é esse tipo de regime, mas, por vezes, esquecemo-nos destas pequenas variáveis: os que ficam. Há traumas irreparáveis: não saber do paradeiro de um ente querido, o que com ele fizeram, o que dele fizeram, quais pessoas estão envolvidas no seu paradeiro…

Um breve comentário, do ponto de vista técnico: A atuação de Fernanda Torres, Selton Mello e Fernanda Montenegro é absurda. Digna de estrelar em qualquer panteão das atuações mais magistrais de todos tempos. A direção de Walter Salles, igualmente, não deve nada a nenhum diretor do norte global, o que só mostra nossa capacidade artística, pois, com orçamento infinitamente menor, fazemos cousas que muito filme nababesco não entrega. As cenas mais extremas são entregues com brilhantismo pelas atrizes e atores e muito bem conduzidas por uma direção de câmera afiada. E quando falo aqui de “extremo”, não trato de violência pornográfica, mas de uma subtil e fina interpretação calcada nos detalhes e nos silêncios. Há uma cena icônica, quando Eunice volta de um período de cárcere e está a tomar banho, esfregando compulsivamente a pele com uma bucha, como que a tentar remover, junto com a sujeira, as memórias daquela experiência horrível. A hipóstase do asco ao vilipêndio promovido por aquele governo deste período nefasto da nossa história.

Em resumo: um filme esteticamente apaixonante, atuações ao máximo e uma história que nos faz refletir: é razoável tratar com relativismo ou até naturalidade a banalização do ocorrido durante nossa ditadura? É razoável aceitar que certos espectros do nosso dégradé político contemporizem com aquele período e teçam, mais grave, vênias a ele? É uma obra que nos coloca de maneira crua — ao mesmo tempo que impressionista — tais questões.

Uma obra minimalista que consegue com êxito extrair do quantum o cosmos.

Ian Caetano é cientista social

4 COMENTÁRIOS

  1. Sim, você ainda pode me vencer
    Mas você sabe que não vou desistir
    Já provei do sangue em minha face
    A dor já faz parte do total

    Você é covarde demais!
    Pra entender
    O quanto é intenso!
    Agora todos os extremos
    Insistir que o erro é dos outros!

    O tempo já não me importa mais
    Pois ainda estou aqui!
    Eu ainda estou aqui!
    Aceite, estou aqui!

    Dead Fish – Queda livre

  2. Salve, Ian,

    A ditadura produziu essa hegemonia anti comunista na qual estamos até o pescoço, até nossa esquerda é de direita, já pensou? Está, para mim, é a principal cicatriz que temos de lidar e encarar diariamente.
    Abraços, muito bonito seu texto.

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