Por Jan Cenek

Eu cursava faculdade de economia. Estava mais ou menos na metade do curso. Momento em que o pessoal da turma começava a substituir as camisetas e as bermudas por roupas sociais, porque iniciavam estágios em bancos e grandes empresas. Tenho contato com poucos ex-colegas. Imagino que, atualmente, a maioria tenha perdido a ilusão no futuro e na carreira, o que não anula a fascinação daqueles primeiros dias vestindo roupas sociais. Nada mais fascinante – para um estudante de ciências econômicas – do que vestir roupas sociais. Eu não tinha grandes esperanças: trabalhava há algum tempo, não era estagiário, usava calças jeans e camisetas, lia muitos livros comprados em sebos e poucos manuais de economia. As roupas sociais, a carreira e o futuro não me fascinavam. Mas havia um professor que me intrigava. Vou chamá-lo de L. Não acredito que meus ex-colegas de turma leiam os textos que escrevo, mas, mesmo assim, vou dificultar a identificação porque se trata de uma história baseada em fatos reais. O professor L talvez tenha sido vitimado pela reforma da previdência, pode ter perdido o emprego em empresa multinacional, talvez esteja ganhando a vida exclusivamente com o dinheiro das aulas de microeconomia. Daí a importância de preservar a identidade. L explicava os comportamentos e as preferências dos consumidores e das empresas, dava exemplos citando mercados específicos. Meus colegas de turma quase aplaudiam. Era quando o professor L humildemente erguia o livro texto de microeconomia, batia o indicador na capa e dizia “está tudo aqui”. Só que de vez em quando ele emendava um “mas tem o Machado de Assis”. Às vezes ele dizia “mas tem o Machado de Assis” no meio da explicação sobre o comportamento dos agentes econômicos, sem se preocupar em conectar uma coisa com a outra, como se fosse um desabafo. Eu não entendia quase nada de microeconomia, mas entendia perfeitamente o que o professor L queria dizer com aquele “mas tem o Machado de Assis”. Era um protesto contra as simplificações. Era um alerta sobre o horizonte bancário. Era a teoria do medalhão virada do avesso. Era um grito desesperado de um leitor. Era um narrador machadiano intervindo na história. Nada mais deliciosamente existencial do que aquele “mas tem o Machado de Assis”.

Milan Kundera [1] divide a história do romance em três tempos. O Primeiro Tempo vai até o final do século XVIII; tem Rabelais, Cervantes, Sterne e Diderot como referências; e caracteriza-se por: “1) a liberdade eufórica da composição; 2) a vizinhança constante das histórias libertinas e das reflexões filosóficas; 3) o caráter não sério, irônico, paródico, chocante dessas mesmas reflexões.” [2] O Segundo Tempo prevaleceu durante o século XIX; tem Balzac, Stendhal, Zola e outros como referências; e caracteriza-se pela verossimilhança, a realidade é descrita com exatidão e detalhes, o romance se torna um documento histórico. O Terceiro Tempo começa no século XX; tem Kafka, Musil, Broch e Gombrowicz como referências iniciais, continuando com Sabato, Fuentes e outros; as características dos Terceiro Tempo são: retorno à estética dos primeiros romancistas, utilização da reflexão ensaística, liberdade de composição, digressões, renúncia à verossimilhança e ao realismo psicológico, retomada do não-sério e do jogo [3]. Kundera dá um exemplo interessante para diferenciar os três tempos do romance: Sancho Pança tem cento e três dentes quebrados durante suas aventuras com Dom Quixote. O espírito zombeteiro e não-sério que predomina no livro de Cervantes teria se tornado incompreensível no Segundo Tempo do Romance devido ao “imperativo da verossimilhança” [4], ninguém teria cento e três dentes quebrados num romance de Zola. Para Kundera, os grandes romancistas do Terceiro Tempo teriam retomado e reinventado o espírito zombeteiro e não-sério a la Rabelais, Cervantes, Sterne e Diderot.

A divisão “toda pessoal” [5] da história do romance formulada por Milan Kundera se torna ainda mais interessante quando bardo tcheco agrega a música à reflexão sobre os três tempos, ver, por exemplo, a defesa de Stravinski contra a Adorno no texto A escandalosa beleza do mal, presente nos Testamentos Traídos [6]. Mas voltemos ao romance. Durante algum tempo tive vontade de escrever uma carta para Milan Kundera. A carta que nunca redigi teria como título a frase do professor L: Mas tem o Machado de Assis. Como Kundera encaixaria o “Bruxo do Cosme Velho” nos três tempos do romance? Machado é uma pedra no meio do caminho. Os livros didáticos registram que o “Bruxo do Cosme Velho” inaugurou o realismo no Brasil com a publicação das Memórias Póstumas de Brás Cubas, em 1881. Só que a história, narrada por um “defunto autor”, tem muito mais a ver com o Primeiro Tempo do Romance, com o espírito zombeteiro e não-sério, do que com o realismo e a verossimilhança. O próprio Machado [7] registrou no início das Memórias Póstumas ter escrito com “a pena da galhofa e a tinta da melancolia”, adotando “a forma livre de um Sterne, ou de um Xavier de Maistre”, com algumas “rabugens de pessimismo”. Por “forma livre de um Sterne, ou de um Xavier de Maistre” entenda-se a profissão de fé do “Bruxo do Cosme Velho” nos princípios estéticos dos primeiros romancistas, ou, utilizando as palavras de Kundera [8] sobre os compositores modernos para escrita machadiana: “uma inimitável felicidade do ser, felicidade que se manifesta pela irresponsabilidade eufórica da imaginação, pelo prazer de inventar, de surpreender, até de chocar pela invenção.” É essa felicidade da criação, esse prazer de inventar, que autorizam um “defunto autor” a contar sua história e permitem que um escudeiro tenha cento e três dentes quebrados. Ou, para dar um exemplo do Terceiro Tempo do Romance, é essa felicidade da criação, esse prazer de inventar, que autorizaram o romancista Juan Goytisolo a conceder cerca de duzentos anos de vida a Marx, para que ele estivesse vivo em Londres, acompanhasse pela televisão e comentasse o fim do socialismo dito real [9]. São os “sortilégios do narrador que inventa”, que “se deixa levar por suas fantasias e por seus excessos” [10].

Desisti de escrever uma carta perguntando a Kundera como encaixar o “Bruxo do Cosme Velho” nos três tempos do romance quando encontrei um texto de Carlos Fuentes intitulado O milagre de Machado de Assis [11]. Fuentes foi grande amigo de Kundera, que incluiu o escritor mexicano entre os grandes romancistas, além dedicar-lhe uma bela carta aberta parabenizando-o pela obra e pelos setenta anos de idade [12]. No texto O milagre de Machado de Assis, Fuentes cita Kundera e, creio, registra o que o tcheco diria sobre o brasileiro. Isso porque Fuentes parte dos ensaios de Kundera para pensar os romances do “Bruxo do Cosme Velho”. Se eu escrevesse uma carta a Kundera intitulada Mas tem o Machado de Assis, a resposta poderia ser E tem o Carlos Fuentes, sugiro que leia o texto dele publicado na Folha de São Paulo em 01 de outubro de 2000. O que Kundera define como Primeiro Tempo do Romance, Fuentes define como Tradição de La Mancha. O que Kundera define como Segundo Tempo do Romance, Fuentes define como Tradição de Waterloo. Fuentes: “A tradição de Waterloo afirma-se como realidade. A tradição de La Mancha sabe-se ficção e, mais ainda, celebra-se como ficção. Waterloo oferece fatias de vida. La Mancha não tem outra vida afora a do seu texto, feito à medida em que é escrito e é lido. Waterloo surge do contexto social. La Mancha descende de outros livros. Waterloo lê o mundo. La Mancha é lida pelo mundo. Waterloo é séria. La Mancha é ridícula. Waterloo baseia-se na experiência: diz o que já sabemos. La Mancha baseia-se na inexperiência: diz o que ignoramos. Os atores de Waterloo são personagens reais. Os de La Mancha, leitores ideais.” Fuentes dá um exemplo interessante para diferenciar as tradições La Mancha e Waterloo: Dom Quixote; Tristam Shandy; Jacques, o Fatalista; e Brás Cubas sabem que são personagens.

Tanto para Kundera quanto para Fuentes, um grande romance só é possível dentro de alguma tradição. Fuentes: “não há criação sem tradição que a nutra, assim como não há tradição sem criação que a renove”. Para Carlos Fuentes, o milagre de Machado de Assis ocorreu porque o escritor brasileiro é um legítimo herdeiro de Cervantes. A tradição de La Mancha não foi totalmente suplantada pelo realismo, ela reapareceu no Rio de Janeiro com um homem negro, pobre, autodidata, epilético, míope, que aprendeu francês numa padaria. Fuentes destaca, e isso aumenta o milagre de Machado de Assis, que não existia “uma grande tradição novelesca, nem brasileira nem portuguesa.” O “Bruxo do Cosme Velho” nutriu, renovou e revigorou a arte do romance com “a pena da galhofa, a tinta da melancolia e as rabugens de pessimismo”. Ao espírito zombeteiro e não sério dos primeiros romancistas (“pena da galhofa”), Machado agregou o banzo e o ceticismo do Brasil escravista (“tinta da melancolia e rabugens de pessimismo”). O Brasil não era, não é e provavelmente nunca será um país sério. O “Bruxo do Cosme Velho” sabia que não dá para levar a sério o que não é sério. Se é assim, melhor enfrentar a melancolia e o pessimismo com a galhofa. Machado inaugurou uma espécie de sabedoria da desconfiança e do riso, que coloca todas as certezas e todos os valores sob suspeita. Se nada pode ser levado a sério, melhor rir e desconfiar de tudo, exceto, talvez, da arte e do romance. Eis o ensinamento do “Bruxo do Cosme Velho”.

Kundera lamentou a guinada realista que interrompeu o Primeiro Tempo do Romance. Mas tem o Machado de Assis. Fuentes lembra que o convite ao jogo e ao sonho reapareceram no romance com o “Bruxo do Cosme Velho”, no Rio de Janeiro, no século retrasado. Mas não é só isso, Machado de Assis retomou e revigorou a estética dos primeiros romancistas, não tropeçou na verossimilhança, antecipou muito do que fariam os escritores do século XX, escreveu com espírito zombeteiro e irônico, permitiu-se ampla liberdade de criação, colocou todas as certezas e valores sob suspeita, fez uso de digressões e da reflexão ensaística sempre com a “pena da galhofa”. Se é tudo isso – e realmente é – dá para registrar, usando os termos de Carlos Fuentes e Milan Kundera, que Machado de Assis é um milagre porque é uma ponte que atravessa e interliga os três tempos do romance.

Notas

[1] Milan Kundera. Os testamentos traídos. Rio de Janeiro: Nova Fronteria, 1994.

[2] Kundera, 1994, op cit., p. 71.

[3] Kundera, 1994, op cit., p. 67.

[4] Kundera, 1994, op cit., p. 54.

[5] Milan Kundera. Um encontro. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. p. 97.

[6] Kundera, 1994, op cit., p. 82-83.

[7] Machado de Assis. Memórias póstumas de Brás Cubas. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2016. p. 53

[8] Kundera, 1994, op cit., p. 80.

[9] Juan Goytisolo. A saga dos Marx. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

[10] Kundera, 1994, op cit., p. 54.

[11] Carlos Fuentes. O milagre de Machado de Assis. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs0110200003.htm

[12] Milan Kundera, 2013, op cit., p. 75-78.

1 COMENTÁRIO

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here