Por Isadora de Andrade Guerreiro
Ultimamente tem vindo a público notícias e análises sobre a relação entre as milícias cariocas e a atividade imobiliária irregular que as sustenta e expande seu controle territorial. As importantes pesquisas no tema, no entanto, não devem fazer com que esperemos que as dinâmicas na capital paulista sejam as mesmas. Em São Paulo, a presença hegemônica do Primeiro Comando da Capital (PCC) nas dinâmicas dos mercados ilegais imprime um caráter diverso à recente intensificação do mercado imobiliário informal nas periferias. Foi publicado no final do ano passado um dossiê que trata das relações entre produção do espaço e ilegalismos no Brasil, no qual publiquei um artigo que desenvolve as especificidades paulistanas do tema. O artigo é resultado de pesquisa coletiva do Observatório de Remoções nos últimos cinco anos, e envolve trabalho de campo em periferias dos quatro extremos da cidade. Trarei aqui, resumidamente, as principais questões trabalhadas no artigo, que convido à leitura.
Primeiramente, é importante frisar que o desenvolvimento do mercado imobiliário informal em periferias, particularmente em favelas de São Paulo, não é exclusivamente promovido por pessoas ligadas ao PCC. Muito pelo contrário, é necessário observar o fenômeno como uma transformação mais estrutural do espaço, que se relaciona com o desenvolvimento da própria sociedade brasileira em meio ao neoliberalismo e à financeirização da economia – que privatiza e fragmenta políticas públicas, elimina força de trabalho e aumenta a disputa por terra, particularmente a periférica, no âmbito de intensificação da produção imobiliária popular por empresas de capital aberto. Estas transformações, que se dão em todo o mundo, têm particularidades numa sociedade de passado escravista recente, de economia dependente e cuja população nunca acessou formalmente, de maneira significativa, nem a terra, nem o trabalho. Nesta conjuntura, o rentismo popular – entre a formalidade e a informalidade – se intensifica seja como complemento de rendimentos ou aposentadoria, seja como diversificação de investimentos (de origem formal ou informal, ou eventualmente ilegal), num cenário de disputa por terra cada vez mais escassa.
Tais transformações recentes fazem com que não seja mais possível definir as periferias brasileiras como territórios exclusivos de reprodução social, onde as necessidades básicas das famílias populares e trabalhadoras são atendidas pela autopromoção do espaço e da casa, eventualmente com comércios, serviços e espaços para renda vinculados à unidade residencial. Essas dinâmicas continuam existindo, mas não são mais aquelas que definem o caráter do espaço periférico e suas dinâmicas de transformação. Desenvolvo no artigo que a crise do assalariamento (com ascensão do empreendedorismo), a mudança de perfil socioeconômico da população, o acesso ao crédito, as políticas públicas de habitação e, no caso específico de São Paulo, a formação de um ambiente de mercado multiescalar com arbitragem por operadores de mercados ilegais, são todos elementos que reconfiguraram a produção do espaço periférico. Seu caráter atualmente é de conflito entre a produção rentista popular e os espaços da reprodução social, sejam os privados, sejam os comuns ou comunitários.
Tais atividades imobiliárias são marcadas por algumas características específicas, que diferem muito da produção do espaço periférico observada num momento anterior de desenvolvimento urbano do período industrial. Primeiramente, ao invés do espaço homogêneo das “faltas e precariedades” das periferias, observamos a produção de localizações diferenciais seja por políticas ou intervenções públicas, seja pela diversidade de territorialidades produzidas a partir de arranjos e disputas pelo espaço pelos mercados empreendedores locais. Em segundo lugar, identificamos o fenômeno da verticalização padronizada de edificações, com grande rapidez construtiva, reprodução tipológica e centralização produtiva de maquinário e força de trabalho. Isso decorre de formas variadas de acesso ao consumo de materiais de construção, como crédito direto nas grandes franquias – que contam atualmente com maior gama de produtos industrializados populares –; e recursos e contatos em rede para o acesso a equipamentos como bombeamento de concreto usinado, máquinas de perfuração para fundação, tratores e caminhões, etc. Por fim, temos a presença de dinâmicas de rentabilização por locação de espaços (comerciais e residenciais), com formação de monopólios locais e regionais de ativos imobiliários e diversificação de agentes especializados, não necessariamente moradores do mesmo território (embora necessitem de alianças locais).
Essa produção imobiliária se dá por meio, principalmente, da diversificação de investimentos de empreendedores locais ou próximos, que nas últimas duas décadas passaram a ter acúmulo de capital a partir de um mercado popular pujante e segurança de investimento em um ambiente de negócios arbitrado pela normatividade hegemônica e pela proteção do PCC. Neste sentido, é importante reiterar que tal produção imobiliária não é realizada “pelo PCC”, enquanto organização que centralizaria estratégias de negócios, articulação de agentes e capitais e depois ganharia rendimentos diretos ou de taxas – algo que seria mais próximo à produção imobiliária das milícias no RJ. No entanto, o PCC se mostra presente de maneira central nesta dinâmica de duas formas.
Formas de presença do PCC no mercado imobiliário informal
A primeira destas formas de presença do PCC na dinâmica imobiliária das periferias paulistanas tem a ver com a criação e gestão do ambiente de negócios informais, irregulares ou ilegais, variados, nos quais se incluem o imobiliário e a partir do qual este pode se desenvolver com segurança, dado seu caráter de alto investimento a longo prazo. A segunda se dá quando “irmãos” (batizados pela organização) ou donos de biqueiras ou agentes de negócios ilegais (comerciantes que não necessariamente são batizados) são eventualmente os próprios empreendedores imobiliários.
A primeira forma é mais indireta, e pode correr ao largo de qualquer relação com pessoas ou capital de negócios ilegais – embora envolva graus diversos de informalidade, emula, em todas as etapas, processos e agentes formais da produção imobiliária. No entanto, ela não só se beneficia, mas só pode acontecer, por conta da conformação de um ambiente de mercado multiescalar, com agentes empreendedores variados e com tendência de deslocalização (não são necessariamente moradores do território, mas têm alianças locais), que têm confiança dos negócios assegurada pela arbitragem do PCC e, no limite, pela possibilidade do uso da violência na resolução de conflitos. Um segundo aspecto é a criação de um ambiente de “mercado aberto” (termo local) com competitividade, permitindo diversificação de negócios, possibilitando a presença de agentes variados de crédito e investimento através da consolidação de um mercado pujante – criminal ou não – nos territórios, “pacificados”[1] e estabilizados pela sua normatividade e controle da violência, o que gera acumulação de capital em busca de reinvestimento. A “pacificação” significa que o PCC criou um mercado de proteção dos negócios informais, através de acordos e compra de agentes públicos; e, também, pela arbitragem interna lastreada em normatividade legitimada nas periferias, que, na década de 1990, baixou consideravelmente o número de homicídios pela quebra de cadeias de vingança e formação de alianças baseadas no formato de irmandade[2].
A segunda forma de presença do PCC no mercado imobiliário informal, na qual vemos mais diretamente a presença de empreendedores associados à facção, se diferencia da primeira pela ameaça constante da possibilidade do uso da violência contra aqueles que impeçam o desenvolvimento destes negócios em “mercado aberto”. Enquanto a produção imobiliária de empreendedores não vinculados aos mercados ilegais se dá principalmente em localizações mais consolidadas e estáveis (dentro do tecido urbano do território, com pouca visibilidade externa e, muitas vezes, com menor acessibilidade), pouco disputadas e mais seguras; os edifícios produzidos por agentes ligados ao, ou membros do PCC, se dão em áreas de abertura de novas fronteiras, seja expandindo territórios por tomada de terras, intensificando a verticalização por meios intimidatórios de expulsão[3], seja ocupando áreas livres de uso comum ou comunitário (incluindo vias e calçadas), ou, ainda, de preservação ambiental ou de risco. Nestes casos, é necessário ter mais capacidade de mobilização de recursos financeiros e políticos para a compra de agentes públicos de fiscalização, além de ter o potencial de uso da violência, intimidando proprietários, antigos moradores, associações, coletivos ou movimentos comunitários ou populares que resistam à lógica da tomada de terras para uso rentista e especulativo.
Disputa de poder pelo domínio da forma de produção do espaço
É reconhecido amplamente que a produção de periferias das décadas de 1970 e 1980 foi parte constitutiva da ascensão de forças políticas democráticas, principalmente vinculadas a movimentos sociais, responsáveis em parte pela luta pela criação de um Estado de Direitos, particularmente de toda a era dos direitos sociais. Tal conformação se deu por conta da necessidade de coesão comunitária, coletividade na produção da casa e do bairro e nas lutas para suas melhorias, regularidade fundiária e chegada de equipamentos urbanos. Naquele momento, construir território também era, imediatamente, construir formas de poder popular e pertencimento de classe – cuja estabilidade de trabalho nunca foi alcançada.
As transformações na produção de periferias paulistanas aqui analisadas mostram um grande deslocamento político em curso. Se, por um lado, há mais riqueza em circulação nesses territórios, a tendência à inquilinização com monopolização de propriedades e agentes externos de investimento fazem com que tal riqueza não permaneça ali, configurando territórios de extrativismo rentista que atualizam a precariedade em novas formas.
Nesta nova precariedade, o acesso à casa e à cidade acontecem – o que antes não ocorria –, porém através do mercado (informal), extrativo e violento, sem nenhuma forma contratual que promova segurança – quiçá “direitos”. O território permanece com uma população em constante rotatividade, que pode ser retirada a qualquer momento para a reestruturação dos negócios. Além disso, não há nada que a una: tudo é alcançado pelo mercado informal de maneira individual, os espaços comuns e comunitários – físicos e de decisão – são tomados por aqueles que monopolizam o território, e qualquer relação com o poder público se dá por meio de um clientelismo renovado e articulado com estas forças que descrevemos aqui.
A produção de novas periferias através destas dinâmicas aponta que, embora as classes populares tenham mais mobilidade – espacial, financeira e política –, elas se encontram completamente inseguras, o tempo todo “no fio da navalha”, caráter que parece ser o novo ethos do mundo uberizado do empreendedorismo. Uma sociedade do risco que, quanto mais ameaçada, mais gera rendimentos. Uma população que não constrói pertencimento, laços comunitários e alianças políticas em torno da noção de “direito” ou lutas de caráter mais universal; mas sim estratégias de prosperidade para si e para os seus – o que envolve não mais apenas a dimensão da sobrevivência, mas a construção de outro tipo de “poder popular”, que já vemos despontar como forte tendência na esfera pública.
[1] FELTRAN, G. S. (2011). Fronteiras de tensão: um estudo sobre política e violência nas periferias de São Paulo. São Paulo, Editora Unesp.
[2] FELTRAN, G. S. (2018). Irmãos: uma história do PCC. São Paulo, Companhia das Letras.
[3] STIPHANY, K. (2023). “Vivienda en alquiler informal en São Paulo: una realidad ampliamente ignorada”. In: LINK, F.; MARIN-TORO, A. (orgs.). Vivenda em arriendo em América Latina: desafios al ethos de la propiedad. Santiago, RIL Editores.