Mike Nelson / AFP

Por Ademar Lourenço

Os anos 2000 são uma espécie de limbo histórico, um período pouco discutido. A década de 60 do século XX é idealizada como uma espécie de passado mágico, com Beatles, Maio de 68 e protestos contra a Guerra do Vietnã. Os chamados “anos 80” têm um forte apelo estético. Mas o período entre a “Batalha de Seattle”, no finalzinho dos “anos 90”, e a Primavera Árabe, no começo de 2011, talvez pareça aos mais jovens como uma época em que “não aconteceu nada de importante”. Essa impressão é errada.

Um exemplo é a maior manifestação da história da humanidade. Em 15 de fevereiro de 2003, mais de 10 milhões de pessoas protestaram em 600 cidades em mais de 50 países nos 5 continentes contra a invasão do Iraque pelos Estados Unidos. Talvez não tenha sido o maior ato em números, mas, pela primeira vez, uma série de manifestações foi organizada de forma global com esse nível de articulação. O evento foi eternizado no clipe da música “Boom”, do grupo System of a Down.

A “Batalha de Seattle”, citada no primeiro parágrafo, foi um grande ato em 1999 durante uma reunião da Organização Mundial do Comércio. Se tornou um marco do que foi chamado de “movimento antiglobalização”. A pauta era denunciar os ajustes econômicos que retiravam direitos e cortavam verbas da área social no mundo todo. Durante o início dos anos 2000, vários protestos como este aconteceram durante reuniões de cúpula, como no Fórum Econômico Mundial.

George P. Hickey / Sociedade Histórica do Estado de Washington

Pouca gente sabe que foi a partir da cobertura da “Batalha de Seattle” que surgiu a primeira grande rede social do mundo. O Centro de Mídia Independente era um “site de publicação aberta” em que cada pessoa poderia subir sua foto ou seu texto sem a mediação de um editor. Algo revolucionário para a época. A internet não era controlada por empresas como Meta e X, as pessoas não tinham seu consumo de mídia manipulado por algoritmos e qualquer filme, série ou música podia ser facilmente baixado de graça.

A internet era vista como um meio de se libertar da mídia tradicional e promover a livre circulação de conteúdo. “Steal this Album”, ou “Roube este Álbum”, do System of a Down, foi um exemplo do espírito da época, junto com os documentários de Michael Moore e filmes como “Matrix”.

Havia muita esperança entre a juventude ativista. Um sentimento de que novas formas de luta iriam conseguir se contrapor a novas formas de opressão. Os velhos métodos de militância eram questionados. Durante os Acampamentos da Juventude, nos Fóruns Sociais Mundiais de Porto Alegre, se discutia um outro mundo possível. O levante do Exército Zapatista de Libertação Nacional era uma das maiores inspirações.

Foi a época em que o movimento LGBTQIA+ teve uma forte projeção. Muitas pessoas estavam “saindo do armário” e ajudando a normalizar a sexualidade que não segue os padrões heteronormativos. Até o fim dos anos 90, era considerada uma aberração na maioria dos lugares ver dois homens ou duas mulheres andando de mãos dadas. Direitos como casamento civil eram considerados uma utopia distante. As gigantescas paradas em defesa da diversidade conseguiram mudar essa realidade.

A América Latina foi uma região em que esse período foi muito fértil. Em 2001, na Argentina, o presidente Fernando de La Rua foi obrigado a fugir de helicóptero da Casa Rosada depois do povo tomar a sede do governo. Em 2003, na Bolívia, uma grande revolta popular derrotou o governo favorável ao imperialismo. Em 2006, a Assembleia Popular dos Povos de Oaxaca chegou a ameaçar o poder do próprio Estado, com a tomada de prédios estratégicos.

No Brasil, foi a época em que surgiu e se desenvolveu o “Movimento Passe Livre”. Alguns anos depois, em 2013, o MPL iria impulsionar a maior onda de protestos da história do país. Tudo começou com a “Revolta da Catraca” que parou a cidade de Florianópolis em 2004 contra um aumento da passagem de ônibus. Em outras cidades também aconteceram grandes levantes contra os aumentos das passagens.

George P. Hickey / Sociedade Histórica do Estado de Washington

Após essa década, no início dos anos 2010, surgiu uma onda muito intensa de levantes populares, que teve seu epicentro no Egito, quando milhões de pessoas derrubaram um governo ditatorial. Parecia que o acúmulo político do período anterior tinha chegado a um ponto crítico. Era a hora de tudo dar certo. Deu errado. Muito errado. Hoje o fascismo parece uma besta com capacidade de engolir o mundo.

Talvez por isso a década de 2000 não seja muito lembrada. Para muitos, existe a sensação de que tudo foi perdido. De que tudo foi em vão. De que é melhor nem lembrar do que aconteceu. “Todos esses momentos se perderão no tempo, como lágrimas na chuva”, como diria o personagem Roy, do filme Blade Runner.

É um problema não fazermos um balanço político aprofundado do passado recente. Hoje há aqueles que pensam que, desde a queda da União Soviética, a superação do capitalismo se tornou inviável, entramos em um período defensivo que vai durar décadas e nossa única esperança está em vitórias eleitorais. Essa visão errada da realidade vem exatamente de pessoas que viveram a ressaca dos anos 2000 e não conseguiram processar bem o que aconteceu.

Fica parecendo que grandes mobilizações e levantes populares com bandeiras progressistas são uma coisa distante, lá da década de 60 do Século XX. Os fatos mostram outra coisa. Tudo o que foi descrito neste texto aconteceu nos últimos 25 anos. Não é um passado longínquo e inalcançável. É parte do tempo em que vivemos.

A história não pode ser vista de forma esquemática e generalista. O nosso passado recente foi fértil. O nosso futuro próximo também pode ser. Não sabemos quanto tempo vai durar esse período defensivo em que vivemos. O que sabemos é que a história não está defina para as próximas décadas. O que foi vivido nos anos 2000 não será perdido no tempo como lágrimas na chuva. Não é hora de morrer.

As fotografias que ilustram este artigo são da “Batalha de Seattle” de 1999

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