Por Leo Vinicius

Em 11 de setembro de 2021 os motoboys que trabalhavam com aplicativo em São José dos Campos, São Paulo, iniciaram uma greve por tempo indeterminado. A paralisação durou seis dias e foi a mais longa da categoria no país até então. Foi um marco, pois as paralisações de motoboys não costumam ser por tempo indeterminado e em geral são de um ou dois dias. Essa greve inspirou que motoboys de outras cidades, principalmente do interior de São Paulo, iniciassem as suas também com tempo indeterminado nas semanas seguintes. Foram os casos de Jundiaí, que também durou seis dias, e de Paulínia, que resultou na greve mais longa da categoria até hoje: nove dias.

No início de 2020 os motoboys de São José dos Campos criaram um grupo de Whastapp chamado Buzinaço, para organizar manifestações em estabelecimentos em que algum motoboy reportava problema com pagamento ou de outro tipo. Essa experiência de ação coletiva foi importante para desencadear a greve de setembro de 2021.

Completando 4 anos daquela marcante greve em São José dos Campos, conversei sobre ela com Elisson de Lima, conhecido como Cabeça, que teve papel destacado na organização.

Leo Vinicius: Eu vi que você comentou numa live no Youtube que aquela greve só tinha rolado porque “os motoboys acreditaram no pessoal que agitou a nossa greve”. Deu a entender que as pessoas que tomaram essa iniciativa já tinham um respaldo da categoria, eram uma referência pro pessoal ter confiança. Como foi construída essa referência? Eu sei que tem a história do grupo do Buzinaço. Foi só o Buzinaço ou teve algo para além do Buzinaço que fez ter respaldo da categoria?

Cabeça: Eu acho que o que ajudou bastante [para] o pessoal pegar confiança foi o trabalho que faço em grupos de motoboys. A gente faz ação social. A gente vai na comunidade, entrega brinquedo, faz Natal solidário, dia de Páscoa, essas coisas. Depois tivemos problema com um estabelecimento aqui. Um amigo nosso teve uns problemas. Foi quando foi criado o grupo do Buzinaço. E depois do grupo do Buzinaço eu joguei esses negócios que estavam acontecendo, o pessoal reclamando, e como eu era OL, então… tipo assim, ‘se o cara que é OL tá reclamando, achando que tá ruim e vão parar, então vamos abraçar a causa’. Então acho que o que ajudou mais, além dessas coisas, foi devido na época eu ser OL, Operador Logístico. E puxar esse bonde aí, porque se eu não fosse Operador Logístico não sei se eu teria conseguido puxar tão forte assim não.

Leo: O que a gente via nos Breques e nas paralisações é que era mais difícil os OLs pararem do que os Nuvens, porque OLs tem o supervisor e tal. E aí em São José dos Campos todo mundo fez a greve junto, participou, os Nuvens e os OLs. Mas a iniciativa foi dos OLs. Pra você, o que explicaria essa diferença em relação a SJC com os OLs? Que relação vocês tinham com os chefes, supervisores? Eu imagino que vocês deviam ter uma relação melhor com os chefes. Foi combinado com os chefes das OLs, com os supervisores, eles apoiarem de certa forma a greve?

Cabeça: Apoiar, apoiar eles não apoiaram. Porque querendo ou não mexeu no bolso deles. Mas eles respeitaram porque a gente sempre teve um bom diálogo. Nos três primeiros dias eles respeitaram muito a gente. Disseram ‘a gente vai respeitar, não vamos logar ninguém’. Quando chegou no quarto, no quinto dia aí começou a choradeira. Começaram a querer falar, ‘ah vamos precisar logar’ e que não sei quê. Falei, beleza, se quiser logar os caras você loga, mas o seguinte, os caras não vão pegar pedido. Vieram com o ‘ah que eu to passando fome’. Dissemos que se tiver passando fome, qualquer coisa dá um toque, a gente dá um jeito de fazer um rateio, tá todo mundo quebrado aqui, mas num rateio a gente ajuda você aí’. Mas não logaram, não logaram. Até então. Mas isso foi na minha base. Na base da qual eu prestava serviço [havia quatro bases de OL em SJC]. A outra tinha um motoboy que estava com a gente, que também conseguiu travar. Outra logou os caras, só que os caras não conseguiram pegar pedido.

Leo: Então eles não apoiaram mas também não ficaram pressionando. Só depois que começou a pesar no bolso…

Cabeça: Foi. Porque até então eles também tinham umas dores. Pra você ter uma ideia, quando o iFood na época veio através do Johnny [funcionário do iFood] pra vir falar comigo, os caras da base de OL pediram o contato com o cara. Porque eles não tinham contato com o iFood. Eles também abraçaram a causa no início por causa disso.

Leo: Essa decisão de não trabalhar e continuar a greve, dentro das equipes era tomada só pelos motoboys, não era tomada pelo chefe da equipe, né? Ele não participava das decisões, certo?

Cabeça: Não, quem participava era só nós os motoboys. Acabava o dia, dava dez horas da noite, dez e meia que era a hora que fechava o shopping, a gente tinha um ponto específico pra se reunir. Era onze horas e ali a gente decidia entre nós, os motoboys. E aí o líder de base mandava mensagem pra gente perguntando, ou então chegava vídeo pra ele que a rapaziada gravava, e aí que ele ficava sabendo.

Leo: Por que os estabelecimentos apoiaram e de que forma eles apoiaram? Como eles foram convencidos a apoiar a greve e fechar o delivery? Já havia laços com os estabelecimentos antes?

Cabeça: A gente tinha bastante contato com os estabelecimentos. Só que até então começou a ter muita discussão. Apoio, apoio de estabelecimento a gente não teve. Foi muito pouco estabelecimento. Depois do terceiro dia é que começou a dar uma crescida, de alguns estabelecimentos nos apoiarem. Porque a gente chegava lá, conversava com o dono no máximo respeito possível, ‘nós estamos aqui, fazendo a paralisação assim, assim, assado, se o senhor puder desligar o aplicativo de vocês desliga; se puder pegar pedido somente pelo Whatsapp qualquer coisa a gente arruma um motoboy pra fazer as entregas pra vocês, pra vocês não ficarem prejudicados’. [Eles diziam] ‘não não, a gente vai desligar’. Teve dois ou três estabelecimentos que acabaram aceitando, pegando motoboy pra fazer entrega. A fama de motoboy é aquela coisa, que motoboy é arruaceiro, quebra tudo, e acelera, empina… Essa é a fama do motoboy. E aqui na nossa cidade, devido ao Buzinaço… muitos estabelecimentos ficaram sabendo dos Buzinaços que estavam acontecendo, que a gente tava indo na porta dos estabelecimentos, que a gente tava indo cobrar os donos de estabelecimentos. Então creio eu que isso ajudou bastante para fazer eles desligarem. Até porque também no segundo ou no terceiro dia o iFood mesmo desligou a plataforma.

Leo: Teve estabelecimento que no final pressionou vocês pelo fim da greve? Ameaçou chamar polícia, esse tipo de coisa?

Cabeça: Não, não. Teve alguns que chegaram a falar que se o iFood liberar a plataforma ia ter que ligar. Falamos que podiam ligar só que ninguém ia pegar pedido. Teve um estabelecimento sim que chegou a falar que ia chamar a polícia. Falou ‘vou ter que abrir o meu estabelecimento, vou ligar a plataforma, e o motoboy vai vir aqui retirar o pedido’. Aí falamos, ‘beleza, pode vir, mas se ele vier pegar o pedido a gente não vai deixar ele sair. Se ele tentar sair o prejudicado vai ser ele e o seu pedido’. [Ele respondeu} ‘eu vou chamar a polícia, vou colocar a polícia na porta’. [Respondemos que] ‘não tem problema pra nós, a gente pega ele na esquina ali, na rua de trás, isso é o de menos, fica tranquilo’. Foi só um mesmo que teve essa pressão. Teve dono de estabelecimento que chegou a ir nos pontos de paralisação que a gente tava. Os estabelecimentos estavam tentando entrar em contato com o iFood para o iFood entrar em conta com a gente, pra poder resolver essa situação.

Os estabelecimentos começaram a fazer isso porque eles começaram a ter problema com o iFood. Naquela época aqui, o iFood soltava muita promoção pra cliente. Então uma coquinha de 200ml saía por 50 centavos, 1 real. O cara ia na plataforma do iFood, pedia cinco, seis, sete. Estourava de entrega. Só que os estabelecimentos não tavam tendo os recursos de volta, não tavam recebendo. E na época também não tinha o código de coleta, o código pra pegar com o cliente. Então tinha muita gente que agia de má fé, e aí o pedido sumia… Então os estabelecimentos também estavam com problema com o iFood. Isso ajudou bastante.

Esse estabelecimento [que falou de chamar a polícia] fica próximo da [rodovia] Dutra e de uma base da Polícia Federal, e esses policiais vão muito lá. E vai Polícia Militar também, então ele se achou no direito de fazer isso. Só que não adiantou nada.

Leo: Os estabelecimentos então nem chegaram a pressionar os motoboys para o fim da greve?

Cabeça: Não, não, não [não chegaram a pressionar] O fim da greve só aconteceu mesmo devido a gente ter conseguido… Aqui em São José na época da greve existia uma promoção, só que essa promoção era limitada. Tipo num raio de 3 km, de um ponto da cidade. Então se você fosse pegar um pedido desse ponto da cidade e fosse entregar pra outro, lá tocava entrega mas não tocava promoção. Era promoção de 1,50 ou 2 reais, alguma coisa assim. E aí como a gente ficou seis dias parados, a negociação foi assim: ‘vocês soltam promoção pra gente, pra gente recuperar esses seis dias aí, durante o final de semana inteiro mas pra cidade inteira, qualquer parte da cidade’. E aí eles aceitaram esse acordo e aceitaram fazer uma reunião com a gente presencialmente.

Leo: Essa era uma questão que eu ia fazer. Quais foram os resultados da greve? Teve a reunião dia 28 de setembro de 2021. Saiu alguma coisa da reunião do dia 28?

Cabeça: Da reunião do dia 28 saiu a taxa mínima, o valor da taxa mínima. Só que só foi reajustado no ano seguinte.

Leo: Fizeram esse compromisso na reunião de ajustar a taxa mínima.

Cabeça: Isso, fizeram esse compromisso com a gente. Depois teve o Fórum dos entregadores [Fórum organizado pelo iFood] no final do ano, que foi onde a gente pressionou também. Mas o reajuste foi só no ano seguinte que teve. Na época a gente tava brigando também… era a taxa mínima, o fim dos bloqueios indevidos, a promoção – a gente conseguiu a liberação da promoção pra cidade inteira – , e o código de coleta. Essas quatro foram coisas que a gente conseguiu conquistar. Não através dessa reunião especificamente. Essa reunião a gente conseguiu só o valor da taxa mínima. Esses outros pontos que falei a gente foi conseguindo depois, no decorrer. Lá no Fórum dos entregadores a gente conseguiu tudo isso daí. Só que também o iFood demorou. Demorou um ano pra soltar o reajuste. O código de coleta eles colocaram até rápido. O fim dos bloqueios demorou um pouco, mas conseguimos recuperar essas contas de pessoas bloqueadas indevidamente. Fizemos um acordo com o iFood e o iFood deu uma oportunidade de novo pra esse pessoal. E foi isso.

Leo: Essa questão dos bloqueios indevidos, como é que está isso hoje em dia? Melhorou bastante em relação ao iFood pelo menos, com o fato também de ter o código? Aqueles problemas que davam com os clientes, melhorou bastante ou continua mais ou menos…?

Cabeça: Melhorou. Melhorou muito isso daí. Melhorou demais, por causa do código de coleta. A gente tem um código de coleta que a gente passa pro estabelecimento e pegamos um código com o cliente, que é os quatro últimos números do telefone. Quando colocou esse negócio do código aqui em São José caiu de uns 90 pra uns 10%. Não vi mais os caras reclamando aqui em São José ‘ah minha conta foi bloqueada’. Teve um ou outro que teve a conta bloqueada, mas quando a gente descobriu foi porque o cara que fez coisa errada mesmo. Injustamente hoje em dia nem se ouve mais falar disso.

Leo: Ocorreram outras paralisações depois daquela aí em São José dos Campos?

Cabeça: Depois daquela paralisação de seis dias, houve uma paralisação esse ano. Depois daquela de seis dias foi muito difícil parar de novo. Porque o iFood liberou um monte de conta, não teve mais problema com bloqueio, essas coisas. E então a rapaziada pegou e ficou de boa: ‘tá de boa pra trabalhar, tá sossegado’. Agora nessa paralisação que teve foi de dois dias. Até porque muitas pessoas que participaram do breque de seis dias, a maioria não está mais trabalhando de motoboy. Muitos já saíram fora já. Porque foi na época de pandemia, logo depois da pandemia a greve, então tinha muita gente que era de fábrica, essas coisas, que tava rodando com a gente. Mas esse [Breque nacional] que teve agora do dia 31 de março ao dia 1º de abril, a gente conseguiu fazer tranquilo. Só que a gente tomou a decisão, todos nós… perguntei pro pessoal ‘ei pessoal vai fazer a greve de um dia, vai fazer a paralisação nacional ou a gente vai ficar mais dias?’. Teve uma porcentagem de pessoas que queria ficar mais dias. A gente fez uma votação e de 150 motoboys, 50 queria fazer mais dias e os outros 100 não. E como a gente sempre teve uma democracia, o que vale é o maior, o que der maior voto já era. E o que acontece, se eu levantasse a mão primeiro, eu ia puxar todo mundo. Aí pensei, ‘não, não vou levantar a minha mão, vou deixar o pessoal votar pra eu depois dar o meu voto’. Porque muita gente vai no embalo. Aí deu essa votação, 100 pessoas queriam participar do primeiro dia só. E foi bacana, pessoal respeitou bastante. Tivemos muita rapaziada nova, que tinha seis meses, um ano de iFood e já percebeu como o iFood tava arregaçando. E não duvido muito não se logo logo não vai ter uma paralisação também não. Porque esse aumento que o iFood deu de 1 real foi meio que uma enganação pro motoboy. Complicado. Mas, estamos esperando aí pra ver.

Leo: Greve em geral tem os seus limites por vários fatores, né? É grana que o pessoal deixa de ganhar, que imagino que tenha sido um fator para o término. Mas além disso teve alguns outros fatores? Claro, vai desgastando, o pessoal vai cansando… Quais fatores você elencaria como determinantes praquela greve ser encerrada no sexto dia?

Cabeça: Primeiro foi o que você falou, a questão financeira. Isso aí foi o que pegou bastante. Você tá sentado e você tá ali na base com o pessoal e você vê o pessoal com o semblante caído, preocupado porque tem algo pra pagar e tal. E o cansaço. O cansaço foi bem puxado. Porque no começo foi eu sozinho. Hoje aqui em São José eu não puxo sozinho um breque, porque hoje tenho outros aliados, que vieram comigo daquele primeiro breque [a greve de seis dias]. Mas no primeiro era tudo eu. O estabelecimento ligava, ‘ah, fala com o Cabeça’, ‘ah o iFood tá ligando, fala com o Cabeça’, ‘ah o motoboy tá com problema, fala com o Cabeça’. Era tudo eu, então era muita coisa pra pensar. Aí a mulher dentro de casa cobrando… Foi um negócio muito louco. Parar [a greve] foi uma decisão coletiva, não foi só minha não. A gente chegou no dia lá e falou ‘rapaziada, é o seguinte, o iFood entrou em contato, o iFood aceitou a nossa proposta de aumentar o valor da promoção e soltar pra cidade inteira’, porque na época era 1,50 se não me engano a promoção. E o iFood aumentou pra 3 reais a promoção. E aí o pessoal falou ‘ó Cabeça, a gente conseguiu o que a gente queria, a gente queria é um contato do iFood, a gente queria que o iFood desse uma atenção pra gente. A gente conseguiu uma coisa que várias capitais não tinham conseguido. O pessoal lá de São Paulo os motoboys tinham ido na porta do iFood e o iFood não deu atenção pros caras, e nós conseguimos um contato do iFood aqui. O cara falou com a gente e soltou. Então a gente cumpriu o nosso papel, vamos voltar’.

O cansaço falou muito alto. O estresse emocional foi cabuloso. Depois eu acho que fiquei uma semana sem falar em grupo de motoboy, sem falar com ninguém, porque foi bem puxado.

Leo: No início de outubro daquele ano, algumas semanas após o fim da greve, foi criada a Associação aí de vocês, ou pelo menos no CNPJ, a Associação dos Motoboys do Vale do Paraíba e do Litoral Norte. Você participou da criação da Associação? E por que viram a necessidade ou acharam que era uma boa ideia criar a Associação?

Cabeça: Na época eu não participei da criação. Fui até convidado pra participar. O cara que criou a associação, ele tava junto comigo no Buzinaço. Era eu e ele. Mas quando foi na greve do iFood eu fui sozinho, ele não me acompanhou. Até porque ele trabalha de CLT também. Aí depois ele criou essa Associação. Hoje é que a galera aqui em São José tá começando a aceitar essa Associação. Porque entrei como vice-diretor dessa Associação nesse mês de maio agora. Quando eu entrei na Associação só tinha três associados. A Associação foi criada em 2021, mas a categoria não aceita o presidente. Porque, tipo assim, não é motoboy conhecido, motoboy visto. Ele é um cara que trabalha de CLT e faz uns bicos de moto. Então a rapaziada não aceitou. Agora que eu entrei como vice-diretor, puxei uns meninos que participaram comigo da greve, hoje a Associação tá com 89 pessoas. Graças a Deus. Já conseguimos dar uma erguida nela. E estamos devagar, mas hoje a gente entende que pra gente conseguir conquistar alguma coisa a gente precisa de uma Associação. Isso aí a gente vê pelos outros estados e cidades. Teve uma época logo depois da greve, no mesmo ano da greve, que o iFood ofereceu me ajudar a criar uma Associação aqui na minha cidade, me ofereceram uma base de OL e tudo. Mas não aceitei. Não aceitei porque achei que se eu aceitasse eu estaria me vendendo pra eles. Então eu procurei não aceitar isso daí. Que nem outros colegas meus que acabaram aceitando em outros estados, infelizmente. Hoje a gente entende que a gente precisa de uma Associação pra conquistar algo pra categoria. Hoje através dessa Associação a gente conseguiu aqueles bolsões em frente do semáforo pra moto. A gente conseguiu também a faixa azul [faixa exclusiva pra motos]. Já tem um ano que ela foi aprovada, só não colocaram ainda, estamos pressionando eles.

Leo: Ela serve para ser uma referência, na hora que tem que dialogar com o poder público, essas coisas, né?

Cabeça: Até o próprio iFood tinha falado pra gente que só ia conversar com a gente quando a gente tivesse uma Associação, que ele não conversaria mais diretamente com entregador.

Leo: Na greve de vocês, vocês conseguiram parar mesmo os estabelecimentos. Eu não sei se em Jundiaí e Paulínia eles tiveram essa mesma capacidade.

Cabeça: Eles tiveram um êxito bastante bom. Se eu não me engano Paulínia teve apoio dos estabelecimentos. Os estabelecimentos apoiaram. Jundiaí eu sei que teve um probleminha, mas os caras conseguiram segurar. Mas sei que Paulínia foi, modo de dizer, um pouco mais fácil porque eles tiveram os estabelecimentos do lado.

Leo: O que que você acha que fez essa diferença aí em São José dos Campos ou mesmo nessas cidades que você teve algum contato com o pessoal – Jundiaí, Paulínia – para conseguir fazer essa greve de seis dias? Qual o “segredo”? Porque na maioria das cidades já é difícil paralisar um dia, dois. Por que vocês acham que conseguiram fazer essa diferença aí?

Cabeça: Creio eu que o que fez a diferença da gente conseguir segurar bastante tempo essa greve foi justamente devido aos problemas que estavam tendo aqui na cidade. Questão de bloqueios, estabelecimentos maltratando o motoboy. Porque essa greve também foi pra gente poder dar um choque de realidade nos estabelecimentos, porque a gente tava tendo muito problema com estabelecimento aqui. Eles estavam maltratando a gente demais. Qualquer coisinha eles falavam que iam mandar pro iFood bloquear a conta. Aí o cara já ficava com medo. E tinha um estabelecimento aqui em São José, que o irmão da dona do estabelecimento trabalhava dentro do iFood, então teve muita conta boqueada devido a esse estabelecimento. E foi um dos estabelecimentos que a gente travou e travou mesmo. Inclusive eu fui lá pessoalmente nesse estabelecimento, porque eu falei pros caras: ‘eu não tenho medo de ser bloqueado, se eu for bloqueado eu boto os caras todos no pau’. Então isso serviu também. O porquê deu certo é porque todo mundo pensou a mesma coisa: ‘tamo fodido, fodido e meio, vamo embora, botar o pé na jaca’. Foi isso. Não tem um “por que” assim.

As outras cidades eu creio que tentaram fazer também uma greve longa porque, por São José dos

Campos ter sido a primeira cidade que fez a greve mais longa da história dos motoboys, foi a primeira cidade que conseguiu contato diretamente com o iFood e com a Associação das plataformas, que é a Amobitec. A Amobitec também entrou em contato comigo. Então a gente foi a primeira que conseguiu. Na cabeça dos caras foi ‘bom, se os caras conseguiram promoção pra cidade, pra gente conseguir também vamos ter que fazer a mesma coisa’. E o iFood entendeu isso e depois soltou a nota dizendo pro pessoal que não ia mais entrar em contato com ninguém, que ia criar um Fórum dos entregadores e isso e aquilo e tal, e aquela embromação…

 

As ilustrações reproduzem obras de Cy Twombly (1928-2011).

 

1 COMENTÁRIO

  1. A entrevista é simples, rápida, direta e no ponto. Fiquei com a impressão de que na última resposta de Cabeça há alguma frase truncada que “passou” na revisão e veio a público cortada.

    É interessante ver como a associação de SJC tem cara, jeito e corpo de “associação pré-sindical”. A própria orientação do iFood vai nessa linha: “Até o próprio iFood tinha falado pra gente que só ia conversar com a gente quando a gente tivesse uma Associação, que ele não conversaria mais diretamente com entregador”. De certo modo, estão reaparecendo nesse setor dito “de ponta”, “tecnológico” etc. formas de organização próprias de um contexto de relações laborais pouco regulamentadas (os próprios sindicatos pré-CLT surgiram sob a forma jurídica de associações civis). Não é a primeira cidade onde vejo entregadores formarem associação depois de lutas. Em algumas, o iFood entrega a associação “pronta” a alguém escolhido a dedo; em outras, os próprios entregadores se viram e formam a sua própria associação. Enfim, luta-se com o que se tem à mão, aprende-se com os resultados, e vai-se levando como dá.

    Acrescento informações do “outro lado”: recentemente, a Associação Brasileira de de Bares e Restaurantes (ABRASEL) acionou o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) acusando o iFood de uma série de “práticas anticompetitivas” como expansão para atendimento físico (“iFood Salão”), venda casada de sistema de pagamentos com taxa superior à média do mercado, domínio da logística informática, etc. A própria ABRASEL noticiou o fato aqui: https://abrasel.com.br/noticias/noticias/abrasel-aciona-cade-contra-ifood-por-abuso-de-poder-economico/. Nem é necessário comentar a enorme diferença de poder de mobilização política e econômica entre a ABRASEL e a Associação dos Motoboys do Vale do Paraíba e do Litoral Norte, mas talvez valha a pena acompanhar essa disputa que acontece no “outro lado” porque pode haver algum “respingo” dela que termine de algum modo prejudicando os entregadores.

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