Comecei a suspeitar de que talvez a busca deles não fosse por Cesárea e que talvez inclusive eles não fossem os protagonistas, que o livro não fosse sobre eles em última instância. Por Henrique Dimitri
De uma entrevista do chileno Roberto Bolaño (1953-2003), autor da novela Os detetives selvagens:
“Muchas pueden ser las patrias, se me ocurre ahora, pero uno sólo el pasaporte, y ese pasaporte evidentemente es la calidad de la literatura. Que no significa escribir bien, porque eso lo puede hacer cualquiera. ¿Entonces qué es una escritura de calidad? Pues lo que siempre ha sido: saber meter la cabeza en lo oscuro, saber saltar al vacío, saber que la literatura es básicamente un oficio peligroso.”
“Muitas podem ser as pátrias, me ocorre agora, mas um só o passaporte, e esse passaporte evidentemente é a qualidade da literatura. Que não significa escrever bem, porque isso qualquer um pode fazer. Então o que é uma escritura de qualidade? Pois o que sempre foi: saber meter a cabeça no escuro, saber saltar no vazio, saber que a literatura é basicamente um ofício perigoso.”
Achei que essa citação seria uma boa forma de começar a falar de Os detetives selvagens, já que é uma obra tão genial e complexa que qualquer palavra sobre ela resulta perigosa. Então, começando pelo mais simples, que nesse caso não tem nada de simples, que é o enredo. Bom, a princípio os protagonistas são Arturo Belano e Ulisses Lima, jovens poetas na Cidade do México em meados dos anos 70, fundadores do realismo visceral, um movimento de vanguarda que ninguém sabe ao certo do que se trata, mas que aparentemente tem como eixo o repúdio ao grande cânone da literatura mexicana, Octavio Paz, e a toda literatura e política “oficiais” nos meios da época. Ou seja, eram odiados e deprezados por todos, quando não apenas solenemente ignorados. Acontece que os realistas viscerais foram outro grupo vanguardista que já havia existido no México dos anos 20, embora sua história tenha se perdido quase que por completo e ninguém sabe ao certo se era um movimento literário, artístico, político ou qualquer outra coisa. Na verdade, nem mesmo sua existência é certa. Arturo e Ulisses decidem então partir numa busca a qualquer custo para encontrar Cesárea Tinajero, cuja existência também é incerta e seria a suposta fundadora do primeiro realismo visceral. Não se conhece nenhum escrito dela nem de nenhum viscerrealista, mas por alguma razão eles têm fé de que nessa busca está a chave de algo muito grande. E essa busca durará mais de 20 anos e os levará à Espanha, Nicarágua, França, Itália, Israel, Angola, Libéria e meio mundo.
Só que o fascinante é que, apesar de Arturo e Ulisses serem os protagonistas da obra como um todo, eles quase sempre são mostrados como meros coadjuvantes, e muitas vezes mal aparecem na história. É que a estrutura narrativa durante quase todo o tempo é em forma de uma investigação: um investigador oculto vai colhendo ao longo dos anos depoimentos dos diversos personagens que em todas as partes do mundo tiveram algum contato com Arturo ou Ulisses, o que acaba sendo uma “desculpa” para que eles falem de si mesmos, e na maioria dessas histórias o papel dos “protagonistas” é secundário ou até quase nulo, embora sempre importante para compor o painel de suas personalidades. Eles nunca são olhados de frente, diretamente, mas sempre com a visão periférica, com o canto do olho, como se a possibilidade de um olhar direto pudesse ofuscar, e assim seguem sendo sempre fantasmas, sempre um passo adiante do investigador oculto. Se eles muitas vezes parecem ser meros espectros, Cesárea Tinajero aparece tão de relance que soa a um mito, e comecei a suspeitar de que talvez a busca deles não fosse por Cesárea, e que talvez inclusive eles não fossem os protagonistas, que o livro não fosse sobre eles em última instância. Talvez eles não fossem os detetives selvagens do título, mas sim aquele(s) que está oculto durante todo o livro, que segue os rastros de Arturo e Ulisses por todos os continentes, que vai colhendo os depoimentos e juntando as partes do quebra-cabeça. Pesquisei na internet e encontrei algumas teorias acerca de quem seria esse investigador oculto, já que fica claro em muitos momentos que os depoimentos dos personagens são orais e se dirigem a um interlocutor concreto, que talvez não fosse a mesma pessoa ao longo do tempo. Mas, claro, não existe uma resposta, todas as teorias, inclusive a minha, são apenas interpretações possíveis.
A linguagem fortemente poética é outro ponto alto, embora não seja uma poesia lírica, mas crua, suja, popular, cheia de gírias e palavrões, e não por isso menos bela. Na verdade a linguagem vai variando de acordo com o personagem que narra a história, e essa pluralidade de vozes e de linguagens é trabalhada com maestria, varia de acordo com os mais diversos fatores: a nacionalidade, o nível educacional, a filiação política e estética, a área de especialização da pessoa, a fase da vida em que se encontra… No depoimento de um bem-sucedido advogado espanhol metido a poeta e com o ego nos ceús, por exemplo, a linguagem jurídica rebuscada é dominada com perfeição e muita ironia, com uma compulsão por citações em latim nos momentos mais inapropriados, um retrato tragicômico de tantos juristas “literatos” que se vê pelas faculdades de Direito… Interessante também é que uma mesma personagem vai adotando tons de discurso diferentes ao longo da vida, e o da maturidade é notadamente distinto do da juventude.
A estrutura narrativa quebra totalmente as convenções, na linha de Rayuela (O jogo da amarelinha), de Cortázar: trata-se, na verdade, de vários livros dentro de um labirinto, e de acordo com o caminho percorrido, pode ser lido de várias formas. Por isso mesmo, cada um lê um livro distinto, cada um lê a si próprio. Cortázar não queria o leitor preguiçoso, passivo, mas o leitor que construísse ativamente a história, e é exatamente isso que ocorre na novela de Bolaño: o leitor se sente como que conduzindo uma investigação, e ele próprio tem que juntar as pistas e montar o quebra-cabeças, já que no livro nada é conclusivo, os depoimentos muitas vezes são contraditórios e alguns dos momentos mais importantes são apenas sugeridos, ou narrados de forma que o foco não é a questão principal… Só que deixar o papel de leitor passivo é difícil, e por isso não se trata tampouco de uma obra fácil, não pela extensão de mais de 600 páginas, mas pela falta de um fio condutor explícito, de uma história acabada e completa, o que para mim é o grande mérito da obra, porque assim é a vida. E esta sensação de que muito do importante não foi dito se complica ainda mais quando se sabe que a vida de Arturo Belano tem semelhanças muito fortes com a vida de… Roberto Bolaño! Ambos são chilenos nascidos em 1953 que emigraram para o México quando jovens, voltaram ao Chile pouco antes do golpe de Pinochet, foram presos e conseguiram escapar, percorreram toda a América Latina até voltar ao México, onde se tornaram poetas marginais iconoclastas e depois “misteriosamente” partiram numa vida de peregrinação por várias partes do mundo vivendo precariamente de subempregos até poderem viver modestamente de literatura na Espanha… em busca de algo. E Roberto Bolaño também fundou um movimento vanguardista “anti-Octavio Paz”, o infrarrealismo, juntamente com Mario Santiago Paspaquiaro, que serviu de inspiração para Ulisses Lima. Além do que muitos artistas reais são personagens ativos e importantes do livro, algumas vezes explicitamente, como nos casos de Octavio Paz e Carlos Monsiváis, e diversas outras com nomes trocados.
Pinturas de Chirico e de Edward Hopper.