Por Paulo Arantes
A primeira parte deste artigo pode ser lida aqui.
2.
Mas pensando bem, a enormidade de nosso psicanalista é quase uma evidência. Como a bem dizer está na cara, ninguém vê. Basta no entanto olhar para o Estado e a sua Constituição, por ela mesmo definido em 1988 como sendo Democrático e de Direito. O que poderia então restar da Ditadura? Nada, absolutamente nada, respondem em coro, entre tantas outras massas corais de contentamento, nossos cientistas políticos: depois do período épico de remoção do chamado entulho autoritário, passamos com sucesso ainda maior à consolidação de nossas instituições democráticas — entre elas a grande propriedade da terra e dos meios de comunicação de massa: quem jamais se atreveria a sequer tocar no escândalo desta última instituição? —, que de tão fortalecidas estão cada vez mais parecidas com um bunker. Na intenção dos mais jovens e desmemoriados em geral, um trecho bem raso de crônica: o bloco civil-militar operante desde 1964 arrematou o conjunto da obra inaugurando a Nova República com um golpe de veludo, afastando Ulisses Guimarães da linha sucessória de Tancredo, o qual, por sua vez, havia negociado com os militares sua homologação pelo Colégio Eleitoral, de resto, legitimado pela dramaturgia cívica das Diretas. Neste passo chegamos à próxima anomalia institucional, um Congresso ordinário com poderes constituintes. Assim sendo, poderemos ser mais específicos na pergunta de fundo: O que resta da ditadura na inovadora Constituição dita Cidadã de 1988? Na opinião de um especialista em instituições coercitivas, Jorge Zaverucha, pelo menos no que se refere às cláusulas relacionadas com as Forças Armadas, Polícias Militares e Segurança Pública — convenhamos que não é pouca coisa —, a Carta outorgada pela Ditadura em 1967, bem como sua emenda de 1969, simplesmente continua em vigor. Simples assim. [17]
Porém suas conclusões não são menos dissonantes do que as repertoriadas até agora. A começar pela mais chocante de todas (se é que este efeito político ainda existe), a constitucionalização do golpe de estado, desde que liderado pelas Forças Armadas, que passaram a deter o poder soberano de se colocar legalmente fora da lei. Passado o transe da verdadeira transição para o novo tempo que foi o regime de 64, este saiu de cena, convertendo sua exceção em norma. Tampouco o poder de polícia conferido às Forças Armadas precisou esperar por um decreto sancionador de FHC em 2001. Desde 1988 estava consagrada a militarização da Segurança Pública. A Constituição já foi emendada mais de sessenta vezes. Em suma, trivializou-se. Acresce que este furor legislativo e constituinte emana de um executivo ampliado e de fronteiras nebulosas, governando rotineiramente com medidas provisórias com força de lei. Como além do mais, o artigo 142 entregou às Forças Armadas a garantia da Lei e da Ordem, compreende-se o diagnóstico fechado por nosso autor: sem dúvida, “há no Brasil lei (rule by law), mas não um Estado de Direito (rule of law)”. Num artigo escrito no auge da desconstitucionalização selvagem patrocinada pelo governo FHC, o jurista Dalmo Dallari assegurava que na melhor das hipóteses estaríamos vivendo num Estado de mera Legalidade Formal, na pior, retomando o rumo das Ditaduras constitucionais. [18]
A esta altura já não será demais recordar que a expressão Ditadura Constitucional — revista do ângulo da longa duração do governo capitalista do mundo — foi empregada pela primeira vez por juristas alemães para assinalar os poderes excepcionais concedidos ao presidente do Reich pelo artigo 48 da Constituição de Weimar [19] . Desde então, a favor ou contra, tornou-se uma senha jurídica abrindo passagem para o que se poderia chamar de Era da Exceção, que se inaugurava na Europa como paradigma de governo diante do desmoronamento das democracias liberais, desidratadas pela virada fascista das burguesias nacionais que lhes sustentavam a fachada. Resta saber se uma tal Era da Exceção se encerrou com a derrota militar do fascismo. Ocorre que três anos depois de 1945, mal deflagrada a Guerra Fria, já se especulava, a propósito da emergência nuclear no horizonte do conflito — para muitos um novo capítulo da Guerra Civil Mundial, iniciada em 1917 — se não seria o caso de administrar, formal e legalmente, como se acabou de dizer, um tal estado de emergência permanente mediante uma Ditadura Constitucional. Na recomendação patética de Clinton Rossiter, um capítulo clássico na matéria: “nenhum sacrifício pela nossa democracia é demasiado grande, menos ainda o sacrifício temporário da própria democracia” [20]. Como a Bomba não veio ao mundo a passeio nem para uma curta temporada, sendo além do mais puro nonsense a idéia de um controle democrático de sua estocagem e emprego, sem falar na metástase da proliferação nuclear, não haverá demasia em sustentar a idéia de que sociedades disciplinadas pelo temor de um tal acidente absoluto passaram a viver literalmente em estado de sítio, não importa qual emergência o poder soberano de turno decida ser o caso.
Voltando à linha evolutiva traçada por Agamben: aquele deslocamento de uma medida provisória e excepcional para uma técnica de governo, baseado na indistinção crescente entre legislativo, judiciário e executivo, transpôs afinal um patamar de indeterminação entre democracia e soberania absoluta — o que acima se queria dizer evocando a terra de ninguém em que ingressamos entre Legalidade Formal e Estado de Direito. Não surpreende então que, à vista do destino das instituições coercitivas descritas há pouco e do histórico de violações que vêm acumulando no período de normalização pós-ditatorial, alguns observadores da cena latino-americana falem abertamente da vigência de um Não-Estado de Direito numa região justamente reconstitucionalizada, notando que a anomalia ainda é mais acintosa por ser esse o regime sob o qual se vira — é bem esse o termo — a massa majoritária dos chamados underprivileged [21] . Não-direito igualmente para o topo oligárquico? No limite, a formulação não faz muito sentido: como Franz Neumann demonstrou em sua análise da economia política do IIIº Reich, o grande capital pode dispensar inteiramente as formalidades da racionalidade jurídica idealizada por Max Weber [22]. Olhando todavia a um só tempo para a base e o vértice da pirâmide, seria mais apropriado registrar a cristalização de um Estado Oligárquico de Direito [23]. Porém assim especificado: um regime jurídico-político caracterizado pela ampla latitude liberal-constitucional em que se movem as classes confortáveis, por um lado, enquanto sua face voltada para a ralé que o recuo da maré ditatorial deixou na praia da ordem econômica que ela destravou de vez, se distingue pela intensificação de um tratamento paternalista-punitivo [24]. Se fôssemos rastrear esse arranjo social-punitivo não seria muito custoso atinar com sua matriz. Aliás custoso até que é, tal o fascínio que ainda exerce o invólucro desenvolvimentista no qual se embrulhou a Ditadura.
De volta ao foco no bloco civil-militar de 1964 que não se desfez — menos por uma compulsão atávica das corporações militares do que inépcia das elites civis na gestão da fratura nacional, consolidada por uma transição infindável, sem periodicamente entrar em pânico diante de qualquer manifestação mais assertiva de desobediência civil, como uma greve de petroleiros ou de controladores de vôo — a democracia meramente eleitoral em que resvalamos, continua Zaverucha, se perpetua girando em falso, círculo vicioso alimentado pela ansiedade das camadas proprietárias, pois ainda não estão plenamente convencidas, como nunca estarão, de que o tratamento de choque da Ditadura apagou até a memória de que um dia houve inconformismo de verdade no país.
3.
Ao inaugurar seu primeiro mandato anunciando que encerraria de vez a Era Vargas, o professor Fernando Henrique Cardoso deveria saber pelo menos que estava arrombando uma porta aberta. Pois foi exatamente esta a missão histórica que a Ditadura se impôs, inclusive na acepção propriamente militar do termo “missão”. Erraram o alvo em agosto de 1954; reincidiram em novembro de 1955; deram outro bote em 1961, para finalmente embocar em 1964, arrematando o que a ciência social dos colegas do futuro presidente batizaria de “colapso do populismo”.
Aliás foi esse — dar o troco ao getulismo — o mandato tácito e premonitório que a endinheirada oligarquia paulista delegara à Universidade de São Paulo, por ocasião da sua fundação em 1934. No que concerne à Faculdade de Filosofia, entretanto, a encomenda não vingou. Pelo contrário, muito à revelia, nela prosperou uma visão do país decididamente antioligárquica, desviante da Moderação Conservadora, e que Antonio Candido chamaria de “radical”, redefinida como um certo inconformismo de classe média, nascido do flanco esquerdo da Revolução de 30, para se reapresentar encorpado, depois da vitória da aliança anti-fascista na Segunda Grande Guerra, na forma de uma “consciência dramática do subdesenvolvimento” a ser superado com ou sem ruptura, conforme as variações da conjuntura e das convicções predominantes, ora de classe ou mais largamente nacionais, e cujo ímpeto transformador foi precisamente o que se tratou de esmagar e erradicar em 1964. Quiseram no entanto as reviravoltas do destino que aquele antigo voto piedoso fosse enviesadamente atendido, quem diria, pelo que havia de mais avançado na sociologia de corte uspiano, que passou a atribuir o sucesso acachapante do Golpe à inconsistência de uma entidade fantasmagórica chamada Populismo. Só recentemente este mito começou a ser desmontado, e redescoberto um passado de grande mobilização social das “pessoas comuns”, trabalhadores surpreendentemente sem cabresto à frente [25]. É bom insistir: foi justamente a capacidade política de organização daquelas “pessoas comuns” o alvo primordial do arrastão aterrorizante que recobriu o país a partir de 1964. E o continente. Num estudo notável, Greg Grandin, recuou essa data para 1954, marcando-a com a deposição de Jacobo Arbenz na Guatemala, estendendo a ação dissolvente do Terror Branco, desencadeado desde então, no tempo e espaço latino-americano, até os derradeiros genocídios na América Central insurgente dos anos 80. A seu ver, ao longo de mais de três décadas de Contra-Revolução — é este o nome — no continente, perseguiu-se de fato um só objetivo: extinguir “o poder formativo da política enquanto dimensão primordial do encaminhamento das expectativas humanas”. A Guerra Fria latino-americana (se fizermos questão de manter a nomenclatura consagrada) girou basicamente em torno desse eixo emancipador. [26]
Como falei em Contra-Revolução é preciso sustentar a nota. Começo por uma evocação. Até onde sei, uma das raras vozes na massa pragmático-progressista na ciência social uspiana a não se conformar com o fato consumado na transição pactuada com os vencedores, mas sobretudo a contrariar a ficção da democracia consolidada, foi a de Florestan Fernandes. Trinta anos depois do golpe, ainda teimava em dizer que a Ditadura, como constelação mais abrangente do bloco civil-militar que a sustentara, definitivamente não se dissolvera no Brasil. O que se pode constatar ainda relendo sua derradeira reflexão a respeito, enviada ao Seminário organizado por Caio Navarro de Toledo [27]. Não estou desenterrando esta opinião dissonante apenas para registrar a dissidência ilustre que nos precedeu na resposta à pergunta O que resta da Ditadura? É que sua visão daquela novíssima figura da exceção — nos termos de nossa problematização de agora — segundo o paradigma da Contra-Revolução Preventiva (aliás, quanto à terminologia mais adequada, é bom lembrar que os próprios generais golpistas nunca se enganaram a respeito) entronca numa respeitável, porém soterrada pelo esquecimento, tradição explicativa da guerra social no século passado, que uma hora próxima interessará ressuscitar, quanto mais não seja por vincular a normalidade de agora à brasa dormida do Terror Branco que varreu a América Latina por 3 décadas, como se acabou de sugerir. Refiro-me — apenas para registrar — ao estudo pioneiro de Arno Mayer, Dinâmica da contra-revolução na Europa (1870-1956) [28]. Relembro a propósito que um ano depois, em 1972, Marcuse publicava um livro com o título Contra-revolução e revolta [29], cujas páginas de abertura, escritas no rescaldo repressivo na virada dos 60 para os anos 70, principiam evocando a nova centralidade da tortura na América Latina (Pinochet e a Junta Argentina ainda não haviam entrado em cena …), as novas leis de exceção na Itália e na Alemanha, para assinalar então o paradoxo de uma contra-revolução se desenrolando a todo vapor na ausência de qualquer revolução recente ou em perspectiva. Enigma logo explicado quando começaram a pipocar as revoluções, em Portugal, no Irã, na Nicarágua etc. Está claro que Marcuse sonhava alto: sendo largamente preventiva, a contra-revolução em curso antecipava a ameaça de uma ruptura histórica cuja precondição dependia da interrupção do continuum repressivo que irmanava, na concorrência, o socialismo real ao progressismo capitalista, já que só assim a esquerda poderia se desvencilhar do fetichismo das forças produtivas.
Retomando o fio. Arno Mayer estava sobretudo interessado em descartar o conceito encobridor de Totalitarismo, bem como o que chamava de eufemismo da “Guerra Fria”, cuja função era escamotear o verdadeiro conflito em curso no mundo desde que as “Potências” vitoriosas na Primeira Guerra Mundial formaram uma outra Santa Aliança sob liderança americana para esmagar a revolução européia iniciada em 1917 e que nos anos 20 já assumira as proporções de uma Guerra Civil Mundial em que se confrontavam Revolução e Contra-Revolução, para além da mera rivalidade de sistemas em disputa por uma supremacia imaginária [30]. Pois bem: a tese inovadora de Greg Grandin mencionada acima está ancorada nesta visão cujos possíveis limites não são por certo os do estereótipo. Sobretudo o clichê que costuma colocar na vasta conta da Guerra Fria e seu efeito colateral mistificador dito “guerra suja” o complexo social-punitivo que se consolidou com a generalização do estado de exceção contemporâneo na segunda metade do século XX latino-americano [31]. Concedendo o que deve ser concedido a essa fantasia de contenção ou concorrência letal entre capitalismo e comunismo, a Longa Guerra social Latino-americana, como seria mais correto dizer, em lugar de afirmar que a Guerra Fria fez isto ou aquilo neste ou naquele país, foi sim uma fase mais ampla e intensificada daquela Guerra Civil Mundial, devendo portanto ser entendida como Revolução e Contra-Revolução. Sabemos quem venceu e como. A pálida sombra de democracia que hoje passa por tal em nosso continente, segundo Grandin, é o real legado do Terror contra revolucionário e como Greg escrevia no auge do Projeto para um Novo Século Americano, não pode deixar de observar: a definição de democracia que hoje se vende mundo afora como a melhor arma na Guerra contra o Terror é ela mesma um produto do Terror. Estudando os casos do Chile e da Nicarágua, William Robinson chega a uma conclusão análoga quanto à “baixa intensidade” dessas democracias pós-terror contra-revolucionário [32]. No capítulo argentino de seu livro O estado militar na América Latina [33], Alain Rouquié, por sua vez, esbarra na mesma perplexidade a que aludimos várias vezes ao longo do presente inventário de violações e patologias positivadas: a violência sem precedentes históricos — e estamos falando da Argentina —, desencadeada pelo golpe de março de 1976, que o aproxima de uma verdadeira ruptura contra-revolucionária. Mesmo assim, como entender a persistência desse verdadeiro Golpe de Estado Permanente cuja máquina de matar continua a todo vapor mesmo depois da guerrilha ter sido militarmente anulada? Ainda mais espantoso, prossegue Rouquié, é menos a dimensão terrorista contra-revolucionária dessa última metamorfose da violência policial-militar do que a convivência sem maiores états d’âme da classe política tradicional com a demência assassina do aparelho repressivo.
Portanto tem lá sua graça meio sinistra que os ideólogos do regime dito trivialmente neoliberal acenassem com o espantalho do populismo econômico dos… militares para implantar reformas desenhadas nada mais nada menos do que pela engenharia anti-Vargas do estado de exceção fabricado nos laboratórios do Plano de Ação Econômica do Governo (PAEG), por Roberto Campos e Octávio Gouvêa de Bulhões (1964-1967). Assim, começando pelo fim, ao contrário da opinião corrente tanto à direita quanto à esquerda (esquerda biograficamente falando), a celebrada Lei de Responsabilidade Fiscal — criminalizante para os entes subnacionais, “excepcionando” porém a União no que tange principalmente o serviço da dívida pública —, longe de iniciar uma nova fase das finanças públicas brasileiras, simplesmente arremata um processo iniciado pela ditadura nos anos 70, como se demonstra no breve e fulminante estudo de Gilberto Bercovici sobre a persistência do direito administrativo gerado pela tabula rasa do Golpe [34]. Do Banco Central ao Código Tributário, passando pela Reforma Administrativa de 1967, a Constituição de 1988 incorporou todo o aparelho estatal estruturado sob a Ditadura. É preciso voltar a lembrar também que o discurso da Ditadura era o da ortodoxia econômica, que o mesmo Estado delinqüente, cujos agentes executavam uma política de matança seletiva, se declarava, nas constituições outorgadas, meramente subsidiário da iniciativa privada, e que assim sendo as estatais deveriam operar não só com a eficiência das empresas privadas mas também com total autonomia em relação ao governo “oficial”, mas não em relação ao sorvedouro dos negócios privados. Vem da Ditadura a consagração da lógica empresarial como prática administrativa do setor público. A única inovação da celebrada Reforma Gerencial do Estado foi “trazer como novidade o que já estava previsto na legislação brasileira desde 1967”. Até as agências reguladoras — cuja captura é perseguida por todo tipo de formações econômicas literalmente fora da lei, numa hora de flexibilização jurídico-administrativa totalmente ad hoc, o que vem a ser a lógica mesmo da exceção — podem ser surpreendidas em seu nascedouro, o decreto-lei 200/1967, editado com base nos poderes excepcionais conferido pelo Ato Institucional nº 4.
Restauração “neoliberal” do governo de exceção por decretos administrativos? Seria trocar uma mistificação ideológica — o presumido verdadeiro fim da Era Vargas — por uma equívoco conceitual: como não houve interrupção, da Lei de Anistia ao contragolpe preventivo Collor/Mídia, passando pelo engodo de massas das Diretas, a idéia de uma Restauração não se aplica. “Neoliberal”, além de ser uma denominação oca para a reconfiguração mundial do capitalismo, dá a entender coisa pior, que a Ditadura, tudo somado, teria sido “desenvolvimentista”. Acrescentando assim, à vitória da Contra-Revolução, uma capitulação ainda mais insidiosa: do primeiro golpe, afinal, nos refizemos, à medida em que a carapaça autoritária foi se tornando um estorvo até para o big business; quando nos preparávamos para o reencontro — democrático é claro, apesar de todas as pactuações — com o nosso destino de desenvolvimento e catching up, veio um segundo golpe, se possível mais letal, pois neoliberalismo e “desmanche” são equivalentes, já que em contraste, a Ditadura não deixou de “institucionalizar”… É bom esfregar os olhos, pois a mesma narrativa prossegue: também nos recuperamos do golpe neoliberal, cuja substância terminou de derreter sob o sol da última crise, tudo somado novamente, reatamos com a normalidade dos nossos índices históricos de crescimento etc. O que foi contrabandeado nesse rodeio todo — percorrido no sentido anti-horário da esquerda, digamos, histórica — é que no fundo a Ditadura foi um ato de violência contornável e cuja brutalidade se devia muito mais ao cenário de histeria da Guerra Fria. Com ou sem golpe, a modernização desenvolvimentista cedo ou tarde entraria em colapso, de sorte que a rigor o regime militar nada mais foi do que o derradeiro espasmo autoritário de um ciclo histórico que se encerraria de qualquer modo mais adiante, e não o tratamento de choque que partiu ao meio o tempo social brasileiro, contaminando pela raiz o que viria depois. Seria o caso de observar que o giro argumentativo evocado acima é ele mesmo um flagrante sintoma da sociedade “bloqueada” que a Grande Violência do século XX brasileiro nos legou: no referido reconto, refeito ora com a mão esquerda ora com a mão direita, o trauma econômico simplesmente desapareceu, ele também [35]. E quando aflora, assume invariavelmente a forma brutal da idiotia política costumeira. Por exemplo, toda vez que um sábio levanta a voz para dizer que o país carece urgentemente de um “choque de capitalismo” — e logo numa ex-colônia que nasceu sob o jugo absoluto de um nexo econômico exclusivo.
NOTAS DE RODA-PÉ
[17] Ver Jorge Zaverucha, FHC, forças armadas e polícia (Rio de Janeiro: Record, 2005). E mais particularmente, sua contribuição para este volume “Relações civil-militares: o legado autoritário na Constituição brasileira de 1988”. No que segue, acompanho de perto o seu modelo explicativo, extrapolando um pouco na maneira de conceituar os resultados de suas análises.
[18] Cf. Dalmo de Abreu Dallari “O Estado de Direito segundo Fernando Henrique Cardoso”, revista praga nº3 (São Paulo: HUCITEC, 1997)
[19] Sigo em parte a recapitulação de Giorgio Agamben, Estado de exceção (São Paulo: Boitempo, 2004).
[20] Clinton Rossiter, Constitutional Dictatorship: Crisis Government in the Modern Democracies (1948), apud Agamben, op.cit. p.22.
[21] Cf., por exemplo, Juan Méndez, Guillermo O’Donnell e Paulo Sérgio Pinheiro (orgs.), Democracia, violência e injustiça: o Não-Estado de Direito na América Latina (São Paulo: Paz e Terra, 2000). Há um tanto de inocência nesta caracterização. A começar pelo lapso tremendo — quando se pensa na consolidação da impunidade dos torturadores e “desaparecedores” — que consiste em expressar sincera frustração causada pela quebra da expectativa de que “a proteção dos direitos humanos obtidas para os dissidentes políticos no final do regime autoritário seria estendida a todos os cidadãos”. De sorte que sob a democracia ainda prevalece um sistema de práticas autoritárias herdadas, seja por legado histórico de longa duração ou sobrevivência socialmente implantada no período anterior e não elimináveis por mera vontade política. Resta a dúvida: o que vem a ser um processo de consolidação democrática “dualizado” pela enésima vez em dois campos, um “positivo”, outro “negativo”. O autor cuja deixa aproveitamos, diria que a persistência da aliança com as instituições coercitivas asseguram aos integrantes do campo positivo um hedge face aos riscos futuros implicados numa tal assimetria entre os “direitos” dos primeiros e o “destino” desafortunado dos que circulam entre os campos negativos. Dúvida que também acossa os autores da referida obra coletiva: até quando democracias sem cidadania plena para a massa pulverizada das não-elites? O que vem a ser “um Estado de Direito que pune preferencialmente os pobres e os marginalizados”? Na gramática dos Direitos Humanos, como se costuma dizer, só pode ser erro de sintaxe.
[22] Franz Neumann, Béhémoth: structure et pratique du national-socialisme (Paris: Payot, 1987). Ver a respeito o excelente capítulo de William Scheuerman, Between the Norm and the Exception (Cambridge, Mass.: MIT Press, 1994, cap.5). Embora reveladora, não se tratava de uma circunstância trivialmente excepcional, como voltou a sugerir o mesmo William Scheuerman, agora a propósito da dinâmica mundializada da acumulação: a cultuada afinidade eletiva entre o capitalismo moderno e the rule of law, que Weber enunciara como uma cláusula pétrea, talvez tenha sido não mais que um efêmero entrecruzamento histórico. Cf.William Scheuerman, Liberal Democracy and the Social Acceleration of Time (Baltimore: John Hopkins U.P., 2004, pp. 151-158).
[23] Estou empregando abusivamente — et pour cause — uma expressão original, até onde sei, de Jacques Rancière, La haine de la démocratie (Paris: La Fabrique, 2005). Não posso me estender a respeito, mas desconfio que o argumento geral do livro nos incluiria no pelotão dos inconformados com o presumido escândalo libertário da Democracia. E por isso mesmo teimaríamos na absurda convicção de que “o conteúdo real de nossa democracia reside no ‘estado de exceção’” (p.23). Daí a necessária correção de tamanho disparate: não vivemos em campos de concentração submetidos às leis de exceção de um governo biopolítico etc, pelo contrário, num Estado de Direito, só que “oligárquico”. Quer dizer num Estado em que a pressão das oligarquias — de resto, como sabemos desde Robert Mitchels, a oligarquização é uma tendência inerente a toda forma de poder organizado — vem a ser justamente limitada pelo duplo reconhecimento da soberania popular e das liberdades individuais (cf. p.81). Nos dias que correm, impossível discordar de um tal programa garantista. E no entanto, para início de conversa, as derrogações emergenciais do Direito, que vão configurando a exceção jurídica contemporânea, são cada vez mais a regra. A bem dizer, toda norma, mesmo constitucional, contém algo como uma cláusula suspensiva. Numa palavra, mesmo nesse exemplar Estado europeu de Direito, porém oligárquico, o Direito está perdendo o monopólio da regulação (cf.François Ost, Le temps du droit, Paris, Odile Jacob, 1999, cap IV). Como me pareceria um igual e simétrico disparate suspeitar desse jurista, aliás belga, de ódio enrustido e ressentido da democracia, observo que o indigitado Agamben não está dizendo coisa muito diferente desse diagnóstico do “estado de urgência” em que ingressamos com a absorção do direito pelo imperativo gestionário. E o curioso é que Rancière também não, quando reflete sobre as patologias da democracia consensual. Pois então: a “exceção” normalizada de agora se confunde, desde seu renascimento histórico, com a ampliação dos poderes governamentais desencadeada durante a Primeira Guerra Mundial, mesmo entre os não-beligerantes, como a Suíça, com a quebra da “hierarquia entre lei e regulamento, que é a base das constituições democráticas, delegando ao governo um poder legislativo que deveria ser competência exclusiva do Parlamento” (Agamben, op.cit. p.19).
[24] Para esta caracterização do novo Estado “dual”, ver, por exemplo, entre tantos outros, Loïc Wacquant, Punir os pobres (Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2001). Um Estado de Direito tão punitivo quanto o regime que o precedeu, ou engendrou, funciona como uma polícia de fronteira, no caso a fronteira mesma do direito, que deixa de sê-lo quando atravessado por uma divisória apartando amigos e inimigos. Para um estudo recente do funcionamento desse Estado “bifurcado” na periferia da cidade de São Paulo, ver Gabriel de Santis Feltran, “A fronteira do direito: política e violência na periferia de São Paulo”, artigo posteriormente incorporado em sua tese de doutoramento, Fronteiras de Tensão, Unicamp, 2008.
[25] Cf. Jorge Ferreira, (org.), O populismo e sua história (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, em particular, Daniel Aarão Reis Filho, “O colapso do colapso do populismo”. E ainda do mesmo Jorge Ferreira, O imaginário trabalhista (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005).
[26] Cf. Greg Grandin, The Last Colonial Massacre: Latin –America in the Cold War (Chicago: Chicado UP, 2004)
[27] Cf. Caio Navarro de Toledo (org.), 1964: Visões críticas do golpe (Campinas: Edunicamp 1997)
[28] Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977; edição norte-americana de 1971.
[29] Tradução francesa de 1973 pela Editora Seuil.
[30] Para a genealogia da expressão Guerra Civil Européia, e depois, Mundial, ver Luciano Canfora, A democracia: história de uma ideologia (Lisboa: Edições 70, 2007, cap.XII).
[31] O constructo Guerra Fria já foi desmontado, por exemplo, entre outros, por Mary Kaldor The Imaginary War (Cambridge: Blackwell, 1990) e Noam Chomsky, Contendo a democracia (Rio de Janeiro, São Paulo: Record, 2003).
[32] Cf. Willian Robinson, Promoting Poliarchy (Cambridge, UP, 1996).
[33] São Paulo: Alfa Omega, 1984. pp 325-326
[34] Gilberto Bercovici, “ ‘O direito constitucional passa, o direito administrativo permanece’: a persistência da estrutura administrativa de 1967”. Ver ainda Gilberto Bercovici e Luiz Fernando Massonetto, “A constituição dirigente invertida: a blindagem da constituição financeira e a agonia da constituição econômica”, Boletim de Ciências Econômicas, vol.XLIX, Coimbra, Universidade de Coimbra, 2006.
[35] A idéia de uma sociedade assombrada por um grande “bloqueio”, reforçado pelos mais diversos mecanismos de denegação e banalização dos conflitos, pode ser rastreada nos escritos recentes de Maria Rita Kehl e Vladimir Safatle. É deste último a fórmula e argumento de que a monstruosa profecia nazi da violência sem trauma acabou se cumprindo neste quarto de século de normalidade brasileira restaurada. Cf. do autor “A profecia da violência sem traumas”, OESP, 06.07.2008, p.D-6, a propósito do filme Corpo, de Rossana Foglia e Rubens Rewald, que a seu ver desenterraram a “metáfora exata desse bloqueio”.
Muito bom o texto, isto é historia, todo o povo deveria ler e saber.