Num dos níveis, o protagonista de Bertolucci refere um símbolo coletivo. Ele é filho de uma burguesia já instalada que, durante a guerra, também teve o seu gesto “heróico” e que dele vive ainda hoje, na recordação de ações que o tempo quase esvaziou de significado. Por José de Sousa Miguel Lopes [*]

Introdução

Quando o inimigo te abraça com entusiasmo
e teus concidadãos te rejeitam com rancor,
é difícil que não te perguntes se não és, na realidade, um traidor.

Ursula Kroeber Le Guin, Os Despossuídos.

Receita para fazer um herói

Tome-se um homem,
feito de nada, como nós,
E em tamanho natural,
Embeba-se-lhe a carne,
Lentamente,
Duma certeza aguda, irracional,
Intensa como o ódio ou como a fome.
Depois, perto do fim,
Agite-se um pendão
E toque-se um clarim.
Serve-se morto

Reinaldo Ferreira, 1991

A Estratégia da Aranha [**], filme de Bernardo Bertolucci, baseia-se numa pequena ficção do escritor argentino Jorge Luís Borges – “Tema do Traidor e do Herói” -, texto que Borges situa num país oprimido e tenaz e que, na data em que o mesmo foi escrito (1944), ele “vislumbrou na Polônia, República de Veneza, algum Estado sul-americano ou balcânico”, para optar depois pela Irlanda. O episódio fala-nos de um rebelde, Fergus Kilpatrick, que, descoberto como traidor, se faz imolar ás mãos dos companheiros, para que a sua morte passe a ser olhada como um nefando crime cometido por algum desconhecido, o que apressaria o eclodir da revolta, que a partir daí passaria contar com seu heróico mártir. Partindo desta idéia, Bertolucci adapta-a às circunstâncias políticas e históricas da Itália e oferece-nos a sua perspectiva. Em lugar da Irlanda, a Itália; em vez de Fergus Kilpatrick, Athos Magnani.

Nesta digressão fílmica, Bertolucci constrói sua teia de aranha com os fios da verdade e da mentira, colocando a problemática do traidor e do herói como central, ao mesmo tempo que nos remete para a questão da identidade, do mito como sistema de legitimação e de significação, bem como das tradições inventadas e dos “lugares de memória” como mecanismos de manipulação. A temática tratada nos remete inevitavelmente para o interior da sala de aula, “locus”, por excelência, onde opera a memória histórica e lugar privilegiado onde se “difundem” os heróis e os traidores. Os discursos organizados dão à memória coletiva uma certa configuração a partir da definição do que será lembrado e de quais lembranças serão proibidas. Os conteúdos da História podem ser impedidos de contribuir para uma reflexão sobre o passado. Poderão ser esquecidos, em virtude da ação dos discursos organizados, ou não são visíveis, porque se encontram diluídos na memória coletiva. Que desafios se colocam ao professor no tratamento do diálogo entre memória e História? O que será preciso lembrar do processo histórico?

Em busca de uma identidade

A Tara (nome fictício, homenagem a E Tudo o Vento Levou), pequena cidade italiana do interior, chegam dois jovens que ali descem de um trem: um marinheiro e um outro enigmático passageiro. Ao marinheiro, perdemo-lo logo nas imagens iniciais, deixando-o sentado num banco de jardim. O outro, penetra nas ruas da cidade que se descobre sob o signo de uma figura lendária: Athos Magnani. Para os habitantes de Tara, Athos Magnani-pai é um herói da luta contra o fascismo, que havia sido morto porque preparara, com outras pessoas, um atentado terrorista contra Mussolini. É a rua Athos Magnani, é o monumento a Athos Magnani, o “Centro Cultural Athos Magnani”, etc. O desconhecido procura uma pensão e só aí se identifica. O seu nome é Athos Magnani, filho daquele outro que reina silencioso sobre o burgo. “Igual, igual, igual ao pai”, lhe dizem. O mesmo nome, o mesmo rosto, os mesmos olhos, os mesmos gostos, o mesmo corpo (o mesmo ator). Athos Magnani-filho vem a Tara chamado por Draifa que fora a “amante oficial” de seu pai.

Quem é Athos Magnani? As deambulações de seu filho por Tara levam-no à descoberta da verdadeira identidade do pai. Estamos em fins da década de 30. Em Itália, onde domina Mussolini, os “camisas negras”, o fascismo… Em Tara, um pequeno micro-cosmos. Athos Magnani é o líder da oposição (não confundir com Resistência, ainda que as duas se interpenetrem nas suas opções e ações).

Seus camaradas: um professor primário, um gerente de cinema. Do outro lado, o grande proprietário fascista, os “camisas negras”, os políticos do regime. No intervalo entre ambos, uma população amedrontada, expectante, estupefata.

Um dia o Duce anuncia que vem a Tara inaugurar o novo Teatro. A oposição reúne-se, planeja um atentado. Escolhem-se o local, o momento exato e as armas. É Athos Magnani quem fica encarregado da ação, durante a representação do “Rigoleto”. Sabe-se depois que o Duce cancelou a visita. A conspiração é descoberta. Athos Magnani confessa aos amigos que fora ele o traidor, aquele que informara as autoridades. Da delação não resultam vítimas pessoais, mas Athos Magnani tem de pagar. De que modo se irá processar este ajuste de contas?

O encontro tem lugar na parte alta da cidade, num mirante que assume o significado e as funções de um palco sobre os habitantes de Tara. Aí se irá assistir à metamorfose de Athos Magnani, que deixará de possuir um rosto, para passar a ser uma sombra, uma silhueta, um símbolo. Aqui se irá criar o mito.

O mito como sistema de legitimação e de significação

O mito nos remete para o fato de que uma sociedade não pode viver sem inculcar um ou mais mitos unificadores, sem instituir ritos de iniciação, sem se atribuir heróis tutelares, sem contar ou inventar uma saga que ficará na memória coletiva: mitos, ritos e heróis, saga com função de sedimentar a ação dos membros da sociedade, de lhes servir como sistema de legitimação e de dar assim uma significação preestabelecida às suas práticas e à sua vida. A sociedade pode assim se oferecer como objeto a ser interiorizado, ao qual cada um deve manifestar a sua lealdade ou mesmo se sacrificar.

Todo o mito, toda a saga tem por função provocar no outro uma comunicação afetiva com as ações dramáticas contidas na narração e assim inserir-se numa ordem e incitá-lo a comportamentos em conformidade com os da narração. Ao mesmo tempo permite aos membros de uma sociedade pensar o social e ação. Esta incitação pode em certos casos extremados, sobretudo quando se encoraja a fé nos ídolos e nas ideologias, nos mitos fundadores, preparar o caminho para a falta de espírito crítico e quem sabe mesmo, para o fanatismo. Não é este uma crença exacerbada em uma ilusão comum?

Existe um liame relativo entre alguns autores que se dedicaram ao estudo dos mitos políticos modernos e de suas representações. Essa conexão funda-se no argumento geral de que o mito político é discernível ou identificável nos momentos de profundas crises ou desconforto social. Ernst Cassirer (1976, p. 31) sustentou que as condições gerais que favoreceram a técnica dos mitos políticos modernos são encontradas nos movimentos que se seguiram à primeira guerra mundial, época histórica que Bertolucci retrata em seu filme. Para Cassirer, o mito se descortina a partir da tentativa de viver num universo ordenado e de superar o estado caótico em que as coisas e as idéias não assumiram formas definidas. Assim, o mito político, enquanto discurso ornamentado pela violência de imagens, pela ardência de desejos, sonhos, expectativas, temores e visões futuras, seria um fenômeno observado com maior contundência no período entre guerras, e resultado das crises sociais, econômicas e políticas sucessivas que culminaram em grande parte na ascensão de regimes totalitários e autoritários, do qual o contexto mussoliniano que Bertolucci trabalha em Estratégia da Aranha é, por demais, emblemático.

Ao lidar com materiais metodológicos apropriados da antropologia, e numa perspectiva interdisciplinar, Raoul Girardet (1987, p. 184-188) não se arriscou a determinar a gênese do mito político e verificou que não existe, invariavelmente, um momento especial. O mito nasce no instante em que o traumatismo social se transforma em traumatismo psíquico. Esse autor reconhece, como Cassirer, a manifestação do mito em períodos críticos. Restaurando equilíbrios rompidos, devolvendo a coerência, (re)edificando antigas certezas, o mito político mobiliza as potências sociais para reestruturá-las e reconquistar a identidade comprometida. Aí o papel fulcral que o mito Athos Magnani-pai vai passar a desempenhar. Em suma, o mito que ele ajuda a criar surge onde a trama do tecido social se rompe ou se desfaz.

Na teia da aranha

Ao penetrar nas ruas de Tara, caminhando ao encontro de Draifa, Athos Magnani-filho vai em busca de um rosto perdido, de uma personalidade até aí indefinida. Esta peregrinação encontra-se justificada num duplo plano. Numa perspectiva pessoal psicanaliticamente carregada de significações e sugestões, Athos Magnani-filho chega a Tara à procura do retrato esquecido do “pai”, de quem se quer libertar, adquirindo uma individualidade autônoma e percorrendo um caminho seu. A sua entrada em Tara é hesitante, mas os atos deliberados de revolta perante a herança paterna são freqüentes, culminando com a seqüência em que profere a inscrição da sepultura onde repousam os restos mortais de seu pai. Aí se cristalizam dependências e frustrações. Aí explode a necessidade de Athos Magnani-filho se afirmar como uma personalidade própria, independente.

A um outro nível, o protagonista de Bertolucci refere um símbolo coletivo. Ele é também uma geração que vive na sombra de uma oposição ao fascismo mussoliniano. Ele é filho de uma burguesia já instalada que, durante a guerra, também teve o seu gesto “heróico” e que dele vive ainda hoje, na recordação de ações que o tempo quase esvaziou de significado. A busca de identificação de Athos Magnani-filho terá, portanto, como conseqüência direta, uma independência que ultrapassa o próprio indivíduo. Daí a “aranha”, daí o uso da “estratégia”.

A aranha: Draifa que escreve a Athos Magnani-filho para o trazer até Tara; Athos Magnani-pai que o filho procura para que o seu destino se cumpra; Tara, a pequena cidade-teia, nas malhas da qual se deixa prender a vítima. Esbracejando, primeiramente, subjugada, depois. Qual a estratégia da aranha numa total assimilação a um passado já definitivamente enquadrado? Procurando a verdade sobre o pai, Athos Magnani-filho acaba por descobrir que a imagem deste assenta sobre uma mentira, ou melhor: sobre uma verdade “construída”, elaborada. Como primeira reação, procurará repor a verdade dos fatos, isto é, desmontar o mecanismo que fez do pai um “herói”. Mas, à medida que a teia se tece em seu redor vai progressivamente aceitando o que encontra, acomodando-se a uma situação, perdendo a rebeldia, esquecendo as palavras necessárias, trocando as intenções. No final do filme, acaba por presidir à homenagem que a Câmara presta ao “herói”, aceitando o discurso entronizador, em lugar das revelações urgentes. Athos Magnani-filho é agora um homem perdido, totalmente preso num espaço preciso (Tara, donde não partem mais trens, onde nem sempre chegam os jornais), num tempo que se prolonga (saudosista?) dos anos 30 até hoje.

A teia da aranha é também o movimento de câmara que deforma a lógica espacial (veja-se quando Athos Magnani-filho se movimenta à volta do busto do pai, o que temos é sempre a mesma visão), é a perda da cronologia e a presença imponente do tempo que domina o espaço. A identidade entre o pai e o filho realiza-se plenamente na gramática do filme, através dos movimentos de câmara, através das estradas, das pessoas mais velhas, dos lugares. Interessante poder reencontrar no filme outra especificidade do cinema que é esta de passar com desenvoltura do presente ao passado como se existisse uma única realidade temporal (ex: quando Draifa olhando para fora do campo diz a Athos Magnani-filho: “esta foi a última vez que vi teu pai”, enquanto por sobre os seus ombros, olhando através da janela, vemos Athos Magnani-pai).

O teatro no filme

O jovem Athos encontra Draifa, a amante oficial do pai, e três amigos dele: o provador de salames Gaibazzi, Costa, proprietário de uma sala de cinema, e o professor primário Rasori, além de um dos inimigos, o latifundiário e ex-fascista, Agenore Beccaccia, acusado, entre outras coisas, de ser o responsável pelo assassinato do pai. Draifa e os três amigos relembram, em uma série de flashbacks, o verão de 1936, os planos do atentado ao Duce, o seu insucesso devido a uma denúncia, e como o traidor, Athos Magnani-pai, deixou-se matar pelos companheiros.

Não sabemos quem é, o que faz ou o que pensa Athos Magnani-filho, que chega de trem à terra natal do pai, que ele não conheceu em vida. É apenas um homem de 30 anos – a idade de Bertolucci – que representa a geração que se habituou a venerar o heroísmo paterno, a coragem dos que lutaram pela democracia e pela liberdade nos anos tenebrosos do fascismo e da guerra. Bertolucci traz o seu personagem a visitar os lugares onde viveu o pai, fá-lo conhecer a mulher que ele amou, os amigos com quem conviveu e partilhou os ideais, os inimigos que ele odiou. A viagem de Athos Magnani pelo passado do pai é dolorosa como uma visita aos fantasmas do inconsciente, feita no divã do psicanalista. Para conhecer a verdade que torna um homem livre é preciso desmistificar. E desmistificar significa penetrar nas zonas nebulosas do inconsciente para trazer os mitos á luz da razão: aqui, os mitos serão fatos e os deuses, apenas homens.

O filho de Athos Magnani soube que o pai não fora exatamente o herói que o povo venera quando beija a lápide com o seu nome. Foi antes um homem dividido, cheio de contradições – o homem que Draifa conhecia – mas também corajoso e lúcido, como aparecia aos amigos e inimigos. É verdade que ele foi responsável pelo cancelamento do atentado planejado com entusiasmo e esperança pelos correligionários, denunciando anonimamente á polícia a existência da bomba. Mas é verdade que só ele conhecia o caráter infantil dos amigos, que nunca poderiam ser bem sucedidos na empresa para a qual não estavam á altura. Na verdade, foi um deles quem lhe sugeriu parte da trama teatral que cismava ao discutirem o caso do leão que se libertou do circo, o serviu morto numa bandeja. Faz parte da “receita para fazer um herói”, como tão bem ilustrou, de forma poética, Reinaldo Ferreira.

A traição talvez fizesse já parte do plano que levaria á sua morte. Esta era mais útil á causa do que o teria sido o atentado ingênuo. Foi uma morte preparada e encenada como uma representação teatral, como teatro tinha sido tudo quanto fizera em vida, desde as suas provocações de garoto rebelde aos “camisas negras” até ao complot que ele dirigia como encenador dirigindo os seus atores: observava a ação sem acreditar nela, controlava as emoções dos atores sem delas participar. Teatro é, em última análise, esse liberalismo progressista da burguesia, porque desligado do real: não correspondendo a uma exigência de classe, é apenas manifestação de individualismo e diletantismo.

Teatro é também a forma feliz que Bertolucci encontrou para este filme: os belos cenários que a câmara nos dá, sempre vistos do mesmo ângulo, frequentemente trazidos perante o espectador, fixos como se fossem pintados, e os personagens e figurantes reduzidos ao mínimo. Tara, a cidadezinha provinciana, não tem habitantes: é um palco onde evoluem personagens de teatro ali postos para servirem á ação.

Athos Magnani oferece a vida, mas esta morte assumirá o papel de tragédia. Com um suporte shakespeariano, ele próprio organiza o percurso a cumprir. Na mesma sala onde o Duce deveria ser assassinado, no momento preparado, aqui irá cair o traidor. Os autores da execução serão os seus camaradas, mas o crime será atribuído, por todos, aos fascistas. “Alguém de fora, contratado”, pensa-se na pequena cidade. A morte de Athos Magnani servirá para que o “fascismo seja cada vez mais odiado”. Daqui ao mito, vai o trajeto que o povo oferece a um revolucionário romântico, “barbaramente assassinado pelas forças da opressão”. Estamos perante o que Hobsbawm designa como uma tradição inventada.

Tradições inventadas e “lugares de memória”: os mecanismos de manipulação

A problemática tratada por Bertolucci em seu filme remete-nos inevitavelmente para as tradições inventadas, um dos mecanismos de manipulação da memória. Com efeito, as tradições inventadas são, muitas vezes, segundo Hobsbawm (1984, p. 9), as tradições consideradas antigas, mas que, na verdade, são bastante recentes, isto quando não são inventadas. As tradições inventadas podem estar significando reações ou situações que, ou assumem a forma de referência a situações anteriores, ou estabelecem seu próprio passado através da repetição quase obrigatória.

As tradições inventadas implicam uma continuidade com relação ao passado. E, no processo de invenção, a legitimação das tradições é atingida através das repetições ritualísticas de história sobre origens.

Consideramos que a invenção das tradições é essencialmente um processo de formalização e ritualização, caracterizado por referir-se ao passado, mesmo que apenas pela imposição da repetição. Os historiadores ainda não estudaram adequadamente o processo exato pelo qual tais complexos simbólicos e rituais são criados (Idem).

Ainda de acordo com Hobsbawm (idem), a tradição inventada é um conjunto de práticas que normalmente são reguladas por “regras tácitas ou abertamente aceitas”; tais práticas de natureza ritualística ou simbólica visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição ou sistematização que implicam, automaticamente, uma continuidade em relação ao passado.

Um conceito bastante pertinente ao entendimento da invenção das tradições é o de “lugares de memória”, de Pierre Nora (1993). A tese central de Nora refere-se ao desaparecimento da memória enquanto fenômeno coletivo e inconsciente dos agrupamentos humanos. O advento dos tempos modernos teria alterado a estrutura de uma memória coletiva enquanto locus de uma tradição, isto é, de manutenção de laços de continuidade. Segundo Nora, a memória coletiva teria sido substituída por uma memória histórica.

Os lugares de memória teriam passado a existir numa sociedade em que a operação da memória já não era mais natural, onde já não mais existia o meio ambiente da memória.

Para Nora, a memória é um processo vivido, conduzido por grupos vivos, portanto, em evolução permanente e suscetível de todas as manipulações. Em linhas gerais,

A memória é vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela está em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas deformações sucessivas, vulnerável a todos os usos e manipulações, susceptível de longas latências e de repentinas revitalizações (Nora, 1993: 09), grifo nosso.

Em contrapartida, a história é registro, distanciamento, problematização, crítica, reflexão. Os grupos de memória povoam suas lembranças, repetindo religiosamente aquilo que é e sempre foi (tradição). A história, como operação intelectual, dessacraliza a memória. Observemos o que diz o autor a este respeito:

A história é reconstrução sempre problemática e incompleta do que não existe mais. A memória é um fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente; a história, uma representação do passado. Porque é afetiva e mágica, a memória não se acomoda a detalhes que a confortam; ela se alimenta de lembranças vagas, telescópicas, globais ou flutuantes, particulares ou simbólicas, sensível a todas as transferências, cenas, censura ou projeções. A história, porque operação intelectual e laicizante demandam análise e discurso crítico. A memória instala a lembrança no sagrado, a história liberta e a torna sempre prosaica. A memória emerge de um grupo que ela une, o que quer dizer, como Halbwachs o fez, que há tantas memórias quantos grupos existem; que ela é, por natureza, múltipla e desacelerada, coletiva, plural e individualizada. A história, ao contrário, pertence a todos e a ninguém, o que lhe dá uma vocação para o universal. A memória se enraíza no concreto, no espaço, no gesto, na imagem, no objeto. A história só se liga às continuidades temporais, às evoluções e às relações das coisas. A memória é um absoluto e a história só conhece o relativo (Idem).

Os “lugares de memória” expressam o anseio de retorno a ritos que definem os grupos, a vontade de busca do grupo que se auto-reconhece e se autodiferencia, o movimento de resgate de sinais de pertencimento grupal. Diz o autor que

os lugares de memória nascem e vivem do sentimento de que não há memória espontânea, de que é preciso criar arquivos, de que é preciso manter aniversários, organizar celebrações, pronunciar elogios fúnebres, notariar atas, porque essas operações não naturais. É por isso que a defesa, pelas minorias, de uma memória refugiada sobre focos privilegiados e enciumadamente guardados nada mais faz do que levar à incandescência a verdade de todos os lugares de memória. Sem vigilância comemorativa, a história depressa os varreria. São bastiões sobre os quais se escora. Mas se o que eles defendem não estivesse ameaçado, não se teria, tampouco, a necessidade de constituí-los. Se vivêssemos verdadeiramente as lembranças que elas envolvem, eles seriam inúteis. E se, em compensação, a história não se apoderasse deles para deformá-los, transformá-los, sová-los e petrificá-los eles não se tornariam lugares de memória. É este vaivém que os constitui: momentos de história arrancados do movimento da história, mas que lhe são devolvidos. Não mais inteiramente a vida, nem mais inteiramente a morte, como as conchas na praia quando o mar se retira da memória viva (Nora, 1993: 13).

Os lugares de memória enunciados por Nora servem para indicar que, não podendo mais existir memória espontânea, teria sido necessário criar instrumentos para esta memória, como: criação de arquivos, manter aniversários, organizar celebrações, pronunciar elogios fúnebres e outros. Em quase todos estes instrumentos se enquadra a figura do herói.

Notas

[*] Moçambicano. Doutor em História e Filosofia da Educação, professor no Mestrado em Educação na Universidade Estadual de Minas Gerais e na Universidade Eduardo Mondlane de Moçambique. Tem vários trabalhos publicados no campo da educação, cinema e literatura no Brasil e em outros países. [email protected]
[**] La Stategia del Ragno, Itália, 1970, 100 min. Versão em DVD a sair em breve pela Versátil (18/04/2008).

Referências Bibliográficas

BORGES, Jorge Luis. Tema do Traidor e do Herói. In: Obras Completas, São Paulo: Globo, 1998.
CASSIRER, Ernst. O mito do Estado. Rio de Janeiro: Zahar, 1976.
FERREIRA, Reinaldo. Receita para fazer um herói. In: GERALDI, João Wanderley “Portos de Passagem”, São Paulo: Martins Fontes, 1991.
GIRARDET, Raoul. Mitos e mitologias políticas. São Paulo: Cia. das Letras, 1987.
HOBSBAWM, Eric. A Invenção das Tradições. São Paulo: Paz e Terra, 1984.
NORA, Pierre. “Entre Memória e História: a problemática dos lugares”. In: Projeto História, no 10. São Paulo: PUC, 1993 (07-28).

Ilustrações: imagens do filme e telas de Giorgio de Chirico.

(Concluirá na 2ª Parte)

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