A opção de uma ocupação menor (em número de pessoas) do que a tradicionalmente observada na movimentação de outras organizações sem teto reflete uma tentativa de fortalecimento dos laços comunitários das pessoas envolvidas nesse processo de luta. Por Passa Palavra
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“Foi aí, então, que a gente decidiu ocupar esse terreno. Depois de mais de um mês debaixo d´água e sem saber para onde ir. O bolsa-aluguel eu não ia aceitar não! Moradia é direito, é ou não é?”
Com essas palavras, Edna – integrante da Ocupação Alagados do Pantanal do Movimento Popular Terra Livre na Vila Curuçá – expressa a vontade das mais de 100 famílias que estão respondendo, por meio da mobilização, ao descaso do poder público frente às suas reivindicações. Mas a história da luta dos moradores na Ocupação da Vila Curuçá não começou agora. Alguns fatos anteriores ajudam a entender os motivos dessa ação e as propostas de organização desse movimento.
Os meses de dezembro de 2009 e janeiro de 2010 ficaram marcados pelas fortes chuvas e enchentes que atingiram a cidade de São Paulo. Vários bairros, dentre eles o Jardim Pantanal (Zona Leste), sofreram as conseqüências desses alagamentos. Dezenas de pessoas perderam seus pertences, roupas e alimentos – e tiveram de conviver diariamente com as águas que invadiam suas casas, conforme Edna relata.
A população moradora do Jardim Pantanal alega que, na verdade, o governo do estado de São Paulo foi o principal responsável por esses alagamentos do bairro. Segundo os moradores, a enchente foi causada pelo fechamento intencional das comportas da barragem da Penha e a abertura das comportas da barragem do Alto Tietê. Os moradores ainda entendem que essa ação teve como opção política clara a intenção de impedir que a Marginal Tietê fosse tomada pelas águas durante esse período de fortes chuvas. Algumas reportagens publicadas pelos órgãos de imprensa, com declarações de técnicos do governo estadual, confirmam essa idéia.
O descaso do poder público, porém, não para por aí. Algumas lideranças comunitárias e movimentos populares também chamam a atenção para outro crime que estaria sendo cometido pelo governo do estado de São Paulo. Cabe lembrar que uma grande área da várzea do Rio Tietê será desapropriada para a construção do mega-projeto do Parque Linear Várzeas do Tietê – uma das políticas compensatórias a ser concretizada, devido ao alargamento das pistas expressas da Marginal Tietê. Todavia, até aqui, poucas alternativas habitacionais foram apresentadas para as mais de 5.000 famílias que vivem na região e estão sendo removidas – muitas delas estão nessa localidade há mais de 20 anos.
Na intenção de acelerar o processo de retirada das famílias para a construção deste Parque Linear, os moradores acusam que a enchente foi provocada para que eles abandonassem suas casas rapidamente, facilitando assim sua remoção. Essa denúncia é confirmada pela constante criminalização, por meio de cartilhas e materiais elaborados pelo próprio governo estadual, daqueles que habitam a região onde será construído o parque. Os moradores são considerados, nesses materiais, os principais responsáveis pela poluição das várzeas. Já os movimentos organizados na região contestam essa informação. Em primeiro lugar, os moradores do Jardim Pantanal sempre lutaram por melhorias nas condições de habitação e saneamento no local. Além disso, a Prefeitura e o governo do estado, ao mesmo tempo em que atuam incisivamente para a retirada dessas famílias, silenciam sobre a poluição e erosão causada pelas grandes empresas (Suzano-Report, Nitroquímica, Bauducco), que também ocupam as várzeas nessa região.
Desde então, os moradores estão se organizando para denunciar esses acontecimentos e violações do direito à moradia por parte do município e governo do estado. Já existiam, anteriormente, algumas movimentações no sentido de regularizar e fortalecer a comunidade que morava nas imediações do bairro – parte dessas ações foi coordenada pelo Movimento pela Urbanização e Legalização do Pantanal (MULP), que há dez anos atua no local. Diferentes lutas pela obtenção de água e energia elétrica, além da constituição de comissões de formação política e a realização de assembléias mensais, permitiram que o movimento fosse organizado com a participação intensa dos próprios moradores – e não apenas impulsionado por lideranças comunitárias.
No entanto, as reivindicações e a organização avançaram fortemente devido às ameaças de remoção e às recentes enchentes ocorridas no local. Várias passeatas, fechamento de grandes avenidas, além da realização, em 08 de fevereiro de 2010, de um ato público em frente à prefeitura da cidade – em que moradores exigiam uma solução emergencial para o problema das enchentes e um projeto habitacional efetivo para a população da região –, evidenciam a resistência dos moradores às ações do poder público. Na ocasião, a polícia reagiu a esse descontentamento, lançando gás pimenta na cara de alguns manifestantes.
A Prefeitura de São Paulo, buscando uma solução rápida para a retirada das casas após esses alagamentos, ofereceu um auxílio-moradia (bolsa-aluguel) de R$ 300,00 por seis meses. Os moradores do Jardim Pantanal entendem, no entanto, que o valor é insuficiente para as famílias conseguirem um novo local para se instalarem. Além disso, alegam que, após o prazo estabelecido para o recebimento desse auxílio, não há qualquer garantia do poder público para continuidade desse benefício ou obtenção de moradias populares para os atingidos pelas enchentes.
O local escolhido para a ocupação Alagados do Pantanal, um grande terreno na Vila Curuçá (Zona Leste), é uma área decretada como de interesse social. O poder público, buscando uma resposta para acalmar os ânimos das famílias atingidas pelas enchentes, decretou que algumas áreas seriam destinadas para a construção de conjuntos habitacionais para os moradores das regiões afetadas pelas chuvas. Márcio, militante do Terra Livre, conta que a ocupação da Vila Curuçá tem como objetivo pressionar os governos municipal e estadual para que as casas comecem a ser construídas – já que quase seis meses se passaram (prazo, inclusive, do bolsa-aluguel) e, até aqui, nenhuma casa foi destinada aos moradores retirados do Jardim Pantanal.
Assim, a ocupação da Vila Curuçá por parte de algumas famílias que residiam no Jardim Pantanal ocorreu devido ao descaso do poder público e à falta de alternativas para aqueles que foram removidos de seus lares. Os moradores se organizaram, então, para lutar por seu direito à moradia. Uma das reivindicações do Movimento Terra Livre é que as famílias não irão aceitar que os conjuntos habitacionais, anunciados para serem destinados aos moradores removidos da região, sejam considerados a solução final para seus problemas. O movimento alega que os prédios a serem construídos pela Prefeitura e governo do estado serão vendidos às famílias – e não entregues em troca das casas derrubadas.
Alexandre, também integrante do Movimento Terra Livre, afirma que o processo anterior ao momento da ocupação foi construído coletivamente pelas famílias. Dessa forma, ele conta que, por meio de comissões organizadas no próprio bairro e vários debates de formação, a ação foi encaminhada como uma iniciativa de luta e pressão para denunciar a morosidade das instituições estatais e chamar a atenção para as reivindicações dos moradores.
A ocupação, até aqui, tem avançado em sua estruturação – consolidando sua organização interna por meio de comissões que executam as principais tarefas diárias. Além disso, as decisões relativas aos seus rumos políticos são tomadas em assembléias periódicas. A opção de uma ocupação menor (em número de pessoas) do que a tradicionalmente observada na movimentação de outras organizações sem teto reflete uma tentativa de fortalecimento dos laços comunitários das pessoas envolvidas nesse processo de luta. Algumas atividades, como a ciranda para as crianças e a feira cultural dos próprios moradores, que ocorrem todos os domingos, além da exibição de vídeos de lutas sociais na própria ocupação, também permitem o avanço na organização das famílias.
A população do entorno da ocupação Alagados do Pantanal tem, até esse momento, sido francamente simpática à mobilização das famílias. No mesmo dia da ocupação, já pela parte da manhã, os militantes elaboraram um material específico e percorreram as casas do bairro Vila Curuçá para relatar sobre o que havia ocorrido e quais as lutas e reivindicações dos ocupantes. Algumas pessoas, além de apoiarem a iniciativa, também expressaram solidariedade e ajuda às famílias que estão participando desta luta.
A polícia tem marcado presença desde a primeira semana, com duas viaturas constantemente colocadas em frente à ocupação. Um incidente marcou a atuação dos policiais logo nos primeiros dias da ocupação: durante a madrugada do dia 04 de maio, a Polícia Militar cortou a luz do acampamento, chegando até mesmo a invadi-lo em determinado momento. Pela manhã do mesmo dia, os moradores foram hostilizados por alguns policiais e os carros responsáveis pelo transporte dos donativos às famílias ficaram impedidos de entrar e sair da ocupação. Por fim, devido às denúncias do próprio Terra Livre e à solidariedade de várias organizações sociais, essas restrições foram contornadas.
Vários movimentos populares, estudantes e parlamentares têm prestado ajuda material e solidariedade à luta dos moradores da Ocupação Alagados do Pantanal. Dentre os vários apoios, a moção de apoio internacional do Movimento Teresa Rodriguez (MTR) – “piquetero”, de trabalhadores desempregados da cidade de Córdoba (Argentina) – se destaca, já que esse movimento popular argentino também tem como um de seus métodos de luta a organização de moradores para a ocupação de terrenos urbanos. E, assim como o Terra Livre, o MTR também pretende pressionar as instituições estatais para a concretização do direito à moradia.
A negociação, até esse momento, tem se dado no âmbito das Subprefeituras correspondentes à região do Pantanal e da Vila Curuçá (São Miguel e Itaim Paulista, respectivamente). No entanto, os avanços obtidos nas negociações ainda são insuficientes para as reivindicações das famílias por moradia popular. Uma das principais idéias do Terra Livre é que as futuras habitações sejam construídas e organizadas pelos próprios moradores – não sendo, portanto, prisioneiras dos modelos de habitação social oferecidos pela Prefeitura e governo do estado. Há pouco tempo, o proprietário do terreno entrou com uma liminar de reintegração de posse. Mas, por enquanto, as famílias acreditam que ainda exista a possibilidade de negociação e atendimento das reivindicações.
A ocupação Alagados do Pantanal evidencia o que está em jogo no processo de reordenação urbana de São Paulo. A cidade é, para os setores capitalistas, uma fonte de lucro. A resistência popular, no entanto, também permite vislumbrar que o espaço urbano pode ser uma forma de luta e de existência mais justa.
Para maiores informações sobre a Ocupação Alagados do Pantanal: http://www.terralivre.org/ e http://blogterralivre.wordpress.com/
Ilustrações: Algumas fotos utilizadas no artigo são de autoria de Sérgio K.