Vemos surgir na cidade de São Paulo uma onda de programas e intervenções urbanas que tem acelerado os processos de despejo. Se a periferia é o limite, para onde vão as pessoas depois de banidas pela especulação imobiliária? Conheça o caso da Vila Madeirite. Por Passa Palavra
No final do ano passado, não faltaram veículos jornalísticos que abordassem o tema das enchentes na cidade de São Paulo. Todos eles escancaravam o colapso a que chegou um modelo de grande metrópole e, com maior ou menor grau, acusavam as autoridades públicas de serem incompetentes no gerenciamento das questões sanitárias. Enquanto isso, para muitas comunidades pobres da periferia, os acontecimentos representavam muito mais do que desconfortos gerados por fenômenos sazonais. Para elas, ficava claro que passadas as tempestades não viria a bonança, pois, se as tragédias podem ter algo de natural em suas causas, são inteiramente sociais em suas consequências.
Assim, as chuvas de verão permitiriam que poderes públicos e empresas privadas acelerassem o projeto de reordenação do espaço que têm para a cidade, em cujas planilhas os moradores da periferia aparecem como obstáculos vivos a serem contornados, peças de reposição que devem ser remanejadas e compartimentadas conforme o interesse dos investimentos. Hoje sabemos, a exemplo do que ocorrera com os moradores do Jardim Romano, no extremo leste da capital, que o alcance e a gravidade destas tragédias são tecnicamente administráveis, e que seus efeitos, se bem conduzidos, podem render belos frutos políticos e econômicos [1].
Desde então, muitas comunidades espalhadas pelas chamadas áreas de mananciais da cidade receberam notificações oficiais informando-lhes que teriam de abandonar as suas casas, a princípio, sem sequer a promessa de que seriam indenizadas ou de que teriam o seu direito à moradia assegurado. Esta é a situação em que se encontra hoje a Vila Madeirite, um conjunto de barracos pertencente à Comunidade Parque Cocaia I, na região do Grajaú, zona sul de São Paulo. Logo após as primeiras enchentes, funcionários da EMAE (Empresa Metropolitana de Águas e Energia, grupo que tem os direitos de exploração de Serviços Públicos de Energia Elétrica no estado de São Paulo) estiveram no local e deram a notificação de despejo para as cerca de 50 famílias que vivem à margem da represa Billings. Coagidas e sem saberem como proceder, como é comum nestes casos, muitas pessoas assinaram o termo onde são chamadas de infratoras, e em que se exige sua “remoção imediata” para a derrubada das casas. No documento, a empresa ainda afirmava que não se responsabilizaria por qualquer dano ou prejuízo que pudesse ocorrer. Para piorar, alguns dias depois, foi a vez de funcionários da Prefeitura irem à comunidade e interditarem outras casas, fazendo eles próprios uma notificação parecida com a da empresa.
Depois de terem entrado em contato com a EMAE, a fim de encontrarem uma solução – pelo menos emergencial – para os seus problemas, as pessoas ameaçadas pela remoção compulsória foram instruídas a procurarem o poder público, através da Subprefeitura da Capela do Socorro; esta, por sua vez, repassou o problema para a EMAE. Ambas eximiram-se de qualquer responsabilidade, não apresentaram alternativas e reiteraram a afirmação de que as famílias eram invasoras e ainda acusadas de crime ambiental.
Após uma mobilização dos moradores, que marcharam até a Subprefeitura da Capela do Socorro, sucederam-se reuniões entre membros da comunidade e representantes do poder público (não só da referida Subprefeitura, mas também da Secretaria Municipal de Habitação e da Secretaria Municipal do Verde e do Meio Ambiente). Desde fevereiro foi firmado um compromisso formal de que todas as famílias que tiveram suas casas inundadas seriam atendidas por um programa habitacional. No entanto, há pouco mais de um mês, tal compromisso foi, pura e simplesmente, negado, e as negociações encerradas.
Conforme relatou Gorete, moradora da comunidade que acompanhou toda a negociação:
“Foi terrível. Primeiro eu falei com o Donizetti [assessor do Subprefeito da Capela do Socorro], ele me atendeu muito bem e falou que era para eu conversar com as famílias, [e perguntar] se elas queriam mesmo ir para [aceitar] o bolsa-aluguel, para não precisar ficar tendo uma reunião atrás da outra. Aí eu fui, conversei com todas as famílias, elas falaram que sim. Quando chega lá, ele já veio com uma conversa diferente: que não iria atender as famílias, porque a gente tinha entrado com uma denúncia no Ministério Público. Então aí, nessa última reunião, todas as famílias estavam felizes, ele disse que só atenderia se a gente retirasse a denúncia do Ministério Público. Quando nós perguntamos pra ele qual era o prazo que ele iria atender as famílias, ele disse que não tinha prazo. Aí nós falamos também que não ia tirar.”
O resultado é que, hoje, essas famílias têm o seu futuro completamente incerto, esperam dia após dia a chegada dos tratores e, por isso, não podem reconstruir seus barracos danificados pela chuva nem procurarem outro lugar para se alojarem, já que não dispõem de nenhum recurso.
Antecedentes
A comunidade do Parque Cocaia I existe desde 1975 (segundo a própria Prefeitura de São Paulo), e tem uma população de mais de duas mil famílias residindo em casas construídas entre a Av. Dona Belmira Marin e as margens da Represa Billings.
Segundo Gorete, que vive no Cocaia I há 22 anos, o lugar sempre foi tranqüilo. A primeira notificação teria aparecido há cerca de 8 anos, apenas para algumas pessoas que ocupavam áreas mais próximas à represa, de propriedade da EMAE. Mas ela conta que nesta ocasião “ficou tudo por isso mesmo”.
No final de 2008 é que começaram a se intensificar os rumores sobre uma ameaça de despejo desses milhares de moradores. Como resposta, algumas pessoas, orientadas pelo CEDECA-Interlagos (Centro de Defesa da Criança e do Adolescente), buscaram informações mais precisas, e descobriram que a ameaça era real, tendo a ver com o Programa Mananciais, um programa bilionário que recebe dinheiro do governo federal (via PAC – Programa de Aceleração do Crescimento), do governo do Estado de São Paulo e da Prefeitura, e que prevê intervenções em mais de 80 comunidades da região, afetando a vida de mais de 2 milhões de pessoas, até 2012.
Apesar de muita insistência, não foi possível a essas famílias terem acesso ao projeto para a área. No entanto, de acordo com o que consta na apresentação geral do Programa Mananciais, e com o que foi dito pelo Coordenador do programa, Sr. Ricardo Sampaio, qualquer intervenção urbanística seria antes discutida com os moradores e, nos casos em que as remoções fossem inevitáveis, as famílias teriam direito a uma alternativa habitacional ou à indenização, de acordo com sua própria escolha. Infelizmente, não é isso que tem ocorrido na prática, e em qualquer lugar que se pesquise não é possível descobrir qual é, concretamente, o projeto habitacional que os governos estadual ou municipal têm para região.
Foi em março de 2009 que aquilo que era ameaça começou a se tornar realidade. Numa parte do Parque Cocaia I conhecida como Jardim Toca, assistentes sociais da Prefeitura passaram em cerca de 130 casas realizando um cadastramento em nome da Secretaria Municipal de Habitação. Menos de uma semana depois, elas voltaram à comunidade com um cheque nominal de 8 mil reais para cada família, dizendo que elas teriam 10 dias para sair da área, sob risco de serem criminalizadas, já que seriam invasoras de uma área pública (posto que, naquela parte, o terreno é da Prefeitura). Sob essas e outras ameaças várias famílias pegaram o cheque e começaram a deixar as casas, que paulatinamente foram derrubadas pelo Consórcio Santa Bárbara. Um detalhe curioso: o cheque entregue pelas assistentes sociais é assinado pelo Consórcio, que teria entrado com 3 mil reais, enquanto a prefeitura teria entrado com 5 mil reais – isso segundo as assistentes sociais e o engenheiro responsável pela obra. Ademais, segundo várias testemunhas, houve tentativa de suborno às famílias, para que estas falassem às assistentes sociais e à empreiteira quem estaria “por trás” da organização da comunidade.
Frente a isso, iniciou-se um processo de organização e mobilização popular, e uma série de manifestações foram realizadas, até que a Secretaria de Habitação ofereceu um compromisso de que as famílias teriam direito a um apartamento do CDHU que seria construído na Divisa de Diadema, em cerca de dois anos.
“Com muita luta é que se conseguiu um contrato onde eles [a Secretaria de Habitação] especificam que se, no prazo de dois anos, não estiver pronta a moradia pras famílias, eles vão continuar pagando um aluguel até a entrega das casas. Mas até agora eles só falaram, ninguém sabe onde tá sendo construído, eles não informam nada, se vai sair mesmo essas moradias ou não” – relatou Gorete.
Ainda em março do presente ano, a Defensoria Pública do Estado entrou com uma ação contra a Prefeitura, exigindo a paralisação dos despejos e uma “concessão especial de uso para fins de moradia” do terreno do Jardim Toca. Até o momento, as medidas que a defensoria tomou em favor da comunidade têm sofrido sucessivas derrotas.
Outros casos
Em novembro de 2009, novamente agentes da Prefeitura foram ao Jardim Toca. Segundo uma série de relatos, como ocorreu anteriormente, o único contato do poder público com a população da área ocorreu por meio de ameaças, mentiras, intimidações. A posição da administração municipal era a de que, devido à realização de obras de drenagem, cerca de 40 famílias teriam de deixar a área durante quatro meses, recebendo em troca 400 reais por mês para pagar um aluguel, e tendo 15 dias para deixar suas casas (levando todos os seus pertences, incluindo torneiras e outros materiais).
Apesar dos termos indignos da proposta, os moradores a aceitaram, com a condição de que fosse feito um documento, assinado pela Prefeitura, que garantisse os termos do acordo, sobretudo o retorno dos moradores à comunidade após o término das obras. Após algumas negativas, numa reunião ocorrida no dia 27 de novembro com a Secretaria de Habitação e com o Coordenador do Programa Mananciais, Ricardo Sampaio (encontro que há vários meses era reivindicado pela comunidade), foi acertado – como atesta a ata assinada por todos que participaram da reunião – que a Prefeitura faria um documento contendo os termos do acordo, o qual seria enviado para apreciação de um advogado da comunidade, e posteriormente assinado pelos moradores, que só então receberiam o cheque-aluguel. Porém, dois dias depois agentes da Prefeitura retornaram à comunidade, coagindo moradores a assinarem uma intimação que exigia a saída imediata do terreno, sob pena de despejo realizado com auxílio da Polícia Militar. E para aumentar seu poder de convencimento, os membros da Defesa Civil e as assistentes sociais da Prefeitura diziam que as próprias lideranças comunitárias estavam recomendando que o documento fosse assinado; o que era absolutamente falacioso. Por fim, depois de uma grande novela, o documento exigido pela população foi feito, assinado, e as coisas transcorreram como antes combinado.
No mês seguinte, e apenas alguns metros dali, na Vila Brejinho, uma pequena comunidade vizinha, surgiria um novo problema: as enchentes haviam inundado algumas dezenas de casas, o que serviria de ensejo para mais uma onda de notificações de despejo. Como era de se esperar, no primeiro momento, o poder público nada oferecia em contrapartida. Depois de muita luta, manifestações, pressões , a conversa mudou, e os moradores da Vila Brejinho obtiveram alguma resposta:
“Eles pagaram 2.100 [reais] para as famílias e fizeram um contrato” – disse Gorete. “De seis em seis meses [a Prefeitura] estaria renovando o bolsa-aluguel até sair a moradia definitiva. Todas as famílias que foram removidas entraram no bolsa-aluguel.”
Veremos agora em setembro, quando vence este primeiro semestre, se a Prefeitura cumprirá com sua palavra.
Hoje e amanhã
Em relação à Vila Madeirite, Gorete lembra que seus moradores deveriam ter sido atendidos junto com as famílias da Vila Brejinho, como foi previamente acordado com o poder público.
“Elas [as famílias] estão apreensivas, com medo de que, de repente, eles cheguem e vão tirando todo mundo assim, sem nada, entendeu?”
Em reunião recente com a Secretaria de Habitação, diferentemente do que foi dito ao longo do ano passado, falou-se que o projeto de “urbanização” da área ainda não está pronto. Em todo caso, reiterou-se que de fato um grande número de moradores terá de ser removido da área. E é o que tem ocorrido, em condições semelhantes, em muitas outras comunidades: dezenas de famílias vão sendo removidas em troca de um cheque-despejo, como nas Favelas XIX e XX, no Jd. Noronha, no Cantinho do Céu, para ficarmos apenas com exemplos do distrito do Grajaú.
De acordo com a pouca informação disponibilizada pela prefeitura, para dar conta de toda demanda da região, incluindo regiões administradas por outras Subprefeituras, a Secretaria de Habitação promete construir apenas 2.207 apartamentos, distribuídos em dois conjuntos residenciais: Mata Virgem, que terá 407 unidades habitacionais, e Chácara do Conde, 1.800 unidades habitacionais.
Para confundir ainda mais os moradores, visitando uma das áreas onde supostamente serão construídos os apartamentos, o Conjunto Residencial Mata Virgem, e conversando com moradores e membros de uma associação de moradores local, descobriu-se que já “na época do Pitta” [prefeito de São Paulo entre 1997 e 2000] foram cadastradas centenas e centenas de famílias da região para os mesmos apartamentos. Uns meses depois, em outra reunião com a Secretaria de Habitação, nova surpresa: outras centenas de pessoas que foram despejadas do bairro da Pedreira, há mais de 5 anos, também receberam a mesma promessa. Ou seja, a Prefeitura tem contido a indignação dos moradores removidos criando-lhes a expectativa de que estarão incluídos num projeto habitacional que, definitivamente, disponibilizará um número de vagas bem aquém da necessidade real, se é que um dia ficará pronto.
Segundo o próprio coordenador do Programa Mananciais, na cidade de São Paulo atualmente há mais de 15 mil famílias em bolsa-aluguel, uma medida paliativa que garantiria condições mínimas de moradia até a conclusão de obras públicas de habitação popular. A expectativa é que esse número aumente muito nos próximos anos, pois se multiplicam os programas e as operações estatais e privadas que prevêem remoções.
Ressalte-se ainda que o banimento da população pobre e a violência da especulação imobiliária também se manifestam de maneiras mais sutis. Por uma perversa ironia do mercado, mesmo os programas sociais de habitação exercem grande influência neste processo. A própria Folha de São Paulo, em reportagem do dia 16 de junho, constatava que o Programa Minha Casa, Minha Vida fez dobrar o preço dos terrenos nas periferias das grandes cidades, e que entre março de 2009 e março de 2010 os preços dos aluguéis em São Paulo subiram em média quatro vezes mais do que o IGP-M [Índice Geral de Preços do Mercado]. Em diversas partes da cidade, e em particular na região do Grajaú, casas que há menos de um ano eram alugadas por 150 ou 180 reais, hoje não são encontradas por menos de 350 reais. É que o valor dos auxílios-aluguel acaba se tornando o piso dos preços cobrados na região, e precipitam uma tremenda valorização dos aluguéis.
Para se somar aos argumentos da preservação ambiental e da segurança das pessoas que vivem em áreas de risco, vem aí a Copa do Mundo de 2014. Com ela, esforços políticos e pesados investimentos internacionais deverão ser feitos no sentido de deixar a cidade à altura de um mega evento mundial. E, decerto, organizadores e fanáticos por futebol não admitirão que uma gentalha ouse atrapalhar a festa. Junto às grandes intervenções no sistema de transporte e às obras monumentais de pólos desportivos, ver-se-á pulular as Operações Urbanas, as operações Córrego Limpo e Defesa das Águas, os Programas Mananciais, os Parques Lineares, etc.
Até lá, pouco, ou quase nada, será feito em relação às verdadeiras fontes de poluição das reservas aquáticas – as grandes indústrias. Intactos permanecerão os condomínios de luxo e as mansões que se localizam igualmente em áreas de mananciais. Também não se realizarão as devidas obras de saneamento e não se garantirá a coleta de lixo nas comunidades próximas às represas. Talvez se evidencie que a tão propalada defesa da vida e do meio ambiente, na prática, constitui-se, hoje em dia, em um providencial instrumento para criminalização das populações pobres. E quando os novos verões vierem, estes últimos, muito provavelmente, voltarão a ser notícia nos jornais; já não mais como vítimas, é o que esperamos.
Mais informações sobre as mobilizações na região, veja em:
http://redeextremosul.wordpress.com/
http://cocaialuta.zip.net/index.html
Nota:
[1] Há fortes indícios de que as enchentes que atormentaram a vida dos moradores do Jd. Pantanal tenham sido causadas pelo fechamento intencional das comportas da barragem da Penha e a abertura das comportas da barragem do Alto Tietê. Órgãos da grande imprensa e posicionamento de técnicos do governo estadual fortalecem esta hipótese. (Veja aqui.)
O texto está muito bom, alias o que está acontecendo no Grajaú também está acontecendo em Parelheiros, porem de uma forma mais branda, dizem os burocratas: “precisamos congelar as áreas para que não ocorra novas invasões”.
Sou moradora de Parelheiros, já há uma cota estou tentando estreitar relações com vocês, mais tá dificil……..
Bem espero um retoro
Abraços
Léia
O proprietario que já tem imovel e compra um terreno em area de Manancial constroi uma casa e Aluga corre o risco de Perder esse Imovel;uma veis que é um Investimento
O Prietario de um Imovel em area de manacial que Alugo e venceu o Contrato o Proprietario pode entra com uma Ação de Despejo, mesmo em area de Manancial qual a chance de o Juiz autorizar o Despejo.