Para uma primeira abordagem deste tema, algumas histórias da “cultura revolucionária” no Portugal de 1974-1976. Por Manuela de Freitas
“E fez mais, às vezes, uma só canção / do que muita panfletada”.
Da canção Zeca (Carta a José Afonso), de José Mário Branco.
Depois da Revolução dos Cravos, a 25 de Abril de 1974, desaparecida a censura e abertas as estradas da comunicação, proliferaram em Portugal os grupos de teatro e de música que, para “levarem a cultura ao povo”, e salvo raras excepções, beneficiavam de toda a espécie de apoios monetários, logísticos e promocionais, com que produziam espectáculos e tinham a garantia de salas cheias, fosse qual fosse a oferta que proporcionassem.
Vamos aqui falar daqueles que, embora não tendo conseguido ofuscar nem perturbar os grandes exemplos que tivemos (e temos) de artistas revolucionários, muito contribuíram para a sua descredibilização, o que teve, e ainda hoje tem, nefastas consequências culturais e políticas. Líderes e militantes políticos para quem um acto cultural não era mais do que um panfleto para distribuir às massas; oportunistas para quem o povo era o alvo mais gratificante e o consumidor mais rentável; gente ignorante e sem talento que tinha finalmente a oportunidade de se exibir; activistas que se esgueiravam pelos palcos para contrabandear recados; burocratas que se desforravam dos artistas, “esses pequeno-burgueses improdutivos e privilegiados”, invadindo-lhes o terreno e criticando-os.
Algumas histórias vividas durante o PREC [“Processo Revolucionário em Curso”], de 1974 a 1976:
A luta de classes e a prisão
Quando o actor entregou o dinheiro da bilheteira para apoiar a greve dos operários da fábrica Tomé Fèteira, de Vieira de Leiria, ao militante do MRPP [Movimento para a Reconstrução do Partido do Proletariado, tendência maoísta], este felicitou-o, dizendo que a peça era sobre a luta de classes. Quando o actor lhe disse que não sabia muito bem o que era a luta de classes, o militante explicou-lhe que, quando tomassem o poder, o prenderiam. O actor limitou-se a avisar que, se o prendessem, não poderiam contar com mais espectáculos nem com mais apoios para greves.
O padre e o militante
Espectáculo no salão paroquial da aldeia. No intervalo, o padre furioso tentou pôr fim à sessão obrigando o público a abandonar a sala, enquanto o militante do PCP [Partido Comunista Português] de serviço explicava aos actores que era muito incorrecto ofender os sentimentos do povo que não estava preparado para aquelas coisas. Entretanto os espectadores pegavam nas cadeiras e levavam o grupo de teatro para o largo da aldeia, onde se fez a segunda parte à luz de lanternas que trouxeram de casa e onde ficaram em debate até às tantas.
A leitura dos símbolos
“Naquela cena em que o Homem está hirto, aprisionado, e a Mulher lhe passa as mãos pelo corpo, da cabeça aos pés, e depois as mergulha num pequeno vaso de barro… Só quem percebe de teatro é que consegue apreender a simbologia que permite aceder à leitura correcta dos sinais da encenação, não acham?!” dizia o encartado delegado cultural ao público que enchia o celeiro de Tarouca. Silêncio. Os actores tentaram desbloquear a situação, insistindo que o que interessava era que falassem sobre o que tinham visto. “Eu de teatro não sei nada, mas naquela altura vi como nos prendem ao trabalho para dele podermos fazer a massa do pão”, comentou timidamente uma mulher na primeira fila. “Só sei que somos troncos de onde se tira a seiva”, murmurou um homem, olhando de soslaio para o entendido delegado.
O sabão
Após o espectáculo na Herdade da Torrebela ocupada, os actores tiveram de pedir ao camarada para se calar e deixar falar os espectadores. Ressentido, começou a fazer críticas que o Grupo pôs à discussão de todos, o que muito o indispôs e fez aumentar a provocação. Foi então que um dos presentes se levantou e lhe disse: “Não vale a pena discutir consigo. É como lavar o focinho a um porco: gasta-se sabão e chateia-se o porco.” Às gargalhadas se acabou o debate.
A vara da azeitona
No pavilhão repleto de camponeses, de uma vila do Alto Alentejo onde uma das fontes de sustento é o varejo da azeitona, o jovem militante entusiasmado incitava o povo a falar, porque já havia liberdade e todos podiam dizer o que quisessem. “Ó amigo, você onde é que esteve? Não assistiu à peça? Que liberdade? Agora já ninguém me manda calar mas, se eu falar, parte-se-me a vara da azeitona”.
Algumas frases escritas, ditas ou cantadas por militantes da UDP [União Democrática Popular, tendência pró-albanesa, então ligada ao PC do B]:
– “Diante da montra de Natal cheia de goluseimas, uma criança pobre vomita porque o povo não gosta daquelas porcarias dos meninos ricos”.
– “Agora vamos apresentar música popular para mostrar que o povo tem a sua própria música e não precisa dos senhores dos concertos antigos”.
– “Casas para o povo, barracas para a burguesia!”
– “O espectáculo é muito fraco para apresentar em Lisboa. É bom para o Norte.”
– “Devem tirar da peça aquela cena em que um trabalhador caminha curvado sob o peso de uma grande carga. O povo nunca se verga.”
Mas a frase mais ouvida era: “Este espectáculo é muito bom mas o povo não o entende”, logo seguida de grandes elucubrações político-ideológicas. Quer se estivesse numa sala citadina, na cantina de uma fábrica ou num terreiro de uma aldeia. O que deu lugar a algumas situações embaraçosas:
– “Ali aqueles camaradas, que estiveram pouco atentos ao espectáculo e até nos perturbaram, agora vêm dizer que a gente não percebe e mais não sei quê dos trabalhadores… Nós percebemos a peça, não percebemos é nada do que eles dizem.” (numa sala em Lisboa, onde metade eram operários e metade estudantes).
– “Oiça lá…está a chamar-nos estúpidos?!” (dirigida a um jornalista local de esquerda, em Pinhel, Beira Alta).
– “Que isto não serve para a Província?! Então nós aqui estamos onde? Vocês é que parece que estão na Lua!” (Miranda do Douro, Trás-os-Montes).
– “Aqueles camaradas disseram que vocês os artistas não têm nada a ensinar aos operários. Não concordo nada e quero agradecer-vos, em nome dos que trabalhamos aqui, por nos trazerem estes espectáculos que falam das nossas vidas. Porque vocês têm tempo e meios para pensar nestas coisas e mostrá-las muito claramente em pouco tempo, o que é muito importante para nós que não temos tempo nem cabeça para pensar sobre elas” (refeitório da Lisnave, estaleiro naval na margem sul do Tejo, vanguarda das lutas operárias).
Felizmente para a esquerda e para a cultura, muitos daqueles militantes (a que chamávamos “limitantes”) desapareceram ou, para seu descanso e nosso, estão instalados onde sempre deviam ter ficado. E, quanto aos resquícios daquela esquerda, mal os artistas e intelectuais, imprudente e generosamente, se aproximam, logo renasce a tentativa, agora mais cuidadosa e tímida, de os manipular e de os utilizar como chamariz para as suas proclamações ou como aval e amplificador dos seus pequenos projectos.
Quem não compreende o papel da cultura na libertação dos povos – porque não sabe do que fala quando fala de cultura, de libertação e de povos – nunca poderá contribuir para que haja cultura de esquerda. Nem esquerda.
Muito boa contribuição à crítica do “limitantismo”,o estádio supremo da alienação. Acho muito importante todos estes testemunhos, que dão logo outra vida à crítica mais teórica.
De facto este testemunho é extremamente feliz e contribui bastante para compreender a dinâmica do PREC e a desmobilização que permitiu a «normalização» posterior ao 25 de Novembro.
Espero que continues a trazer reflexões e testemunhos deste género. Até porque «a esquerda» parece nada ter aprendido e nada ter esquecido no que diz respeito ao paternalismo com que encara «as massas», «o povo» e toda a gente que não declama a cartilha do costume.
Os conceitos de «povo», de «revolução» são diferentes consoante o projecto político; a prática social de um/a revolucionário/a é necessariamente anti-autoritária, quer explicite ou não uma posição ideológica próxima dum socialismo anti-autoritário ou de um comunismo libertário…
«Consciencializar» o povo é um verbo muito conjugado por muitos auto-designados revolucionários; essas pessoas vivem nos/dos fumos da adulação do seu ego alienado. Que absurdo, pretender iluminar as «massas»! As pessoas, os indivíduos, nas múltiplas instâncias colectivas auto-organizadas, atingem colectivamente a compreensão possível das situações. Aliás, é completamente impossível um grupo, seja ele qual fôr, no calor da acção revolucionária, não se enganar; o erro é fatal para quem tem de agir; temos de agir com os dados do momento. Mesmo tentando dar o melhor de nós prórpios, erramos; não pode haver chefes, ou gurus, ou sábios (vanguardas…) a «iluminar» as pessoas, elas é que têm de se auto-empossar.
Criemos as condições e sobretudo o desejo desse auto-empossamento, no que está ao alcance das nossas capacidades. Isso é a coisa mais importante para que um dia a revoluçlão triunfe. Por isso, este artigo é importante, na medida em que dá testemunho da enorme explosão social de 74-75: esta permitiu um início de auto-empossamento, mostrando que as pessoas são perfeitamente capazes de se auto-determinar, desde que percam o medo.
Solidariedade,
Manuel Baptista