Fica clara a tentativa de criminalizar o movimento social, algo que não é brincadeirinha ou jargão de militante, mas que acontece diariamente, acarretando em atos extremamente violentos e inclusive em mortes. Por Pedro Freire
Faço aqui um breve relato sobre o que aconteceu comigo e mais seis companheiros e companheiras que foram presos e alvos de tortura ontem, tanto por parte da Polícia Federal como da Polícia Militar.
Nos reuniremos ainda para escrever uma carta denunciando tudo o que aconteceu, todas as arbitrariedades e desrespeitos aos direitos humanos cometidos pela Polícia à mando do INSS [Instituto Nacional do Seguro Social], um dos maiores latifundiários urbanos e que apenas em 2010 promoveu quatro despejos de ocupações sem-teto no centro do Rio, jogando centenas de famílias na rua ao mesmo tempo em que seus imóveis continuam abandonados e servindo à especulação imobiliária.
Mas, por ora, escrevo este email apressado pra divulgar em parte o que vivemos ontem.
Primeiro, temos que esclarecer a mentira, levada à acusação jurídica, de que o movimento, através de seu “líder” – que a polícia identifica como sendo eu – sequestrou e agrediu o segurança com tapas e abuso de força física. Isso é um total absurdo! Nem eu e nem nenhum dos companheiros, dos ocupantes, agredimos o segurança ou o prendemos. Nós entramos no prédio quando a porta estava aberta, logo após a troca dos vigilantes, e num momento em que este conversava com uma pessoa na calçada. Nós apenas conversamos com ele e explicamos a ação, dizendo que o prédio estava agora ocupado por famílias que se organizam no movimento sem-teto e que nós estávamos pleiteando, na justiça, a propriedade do imóvel. Nem nós, nem mesmo o segurança – que era apenas um contra trinta famílias, por isso não reagiu – fomos agressivos e a resolução deste conflito foi rápida e pacífica. Inclusive, nós devolvemos todos os pertences dele, mostrando que não era nossa intenção roubá-lo, nem prendê-lo no prédio. Obviamente, se o prédio estava ocupado não havia sentido deixá-lo lá dentro, inclusive, pois, nesse caso os seguranças costumam alegar “cárcere privado” como forma de derrotar a ação do movimento.
Nossa luta é contra o Estado, e pra isso não recorremos da estrutura organizativa, das hierarquias, nem da tortura que este promove. Lutamos pela igualdade e pela democracia direta, não nos espantando, portanto, com a não “compreensão” por parte do Estado de nosso modo de lutar.
Estado, que desde o princípio mostrou-se violento.
Entrando dentro do prédio, ainda que ocupado por crianças, idosos e por uma mulher grávida, tivemos a entrada de alimentos e objetos proibidos, tendo que recorrer a baldes que eram lançados pela janela. Pela polícia, morríamos de fome lá dentro, assim seria melhor. Aliás, não, pois como eles mesmos gostaram de frisar pra mim enquanto eu era levado na viatura e quando invadem as favelas ou matam a população de rua: “nós estamos na polícia porque gostamos de matar”. Então, talvez a morte por fome não saciasse a necessidade de extermínio que eles carregam e que parecia se manifestar muito bem quando agrediram as pessoas que estavam prestando, pacificamente, solidariedade à ocupação e quando lançaram bombas e spray de pimenta para dentro do prédio.
A Polícia, mais uma vez, implementou o terror. Quando arrombou a porta do prédio, sem nenhum tipo de ordem judicial, apenas anunciou que “se não saíssemos agora, eles iam quebrar geral, a porra toda”. Saímos como lixo, tratados como bandidos da pior espécie. Tratamento que só se acentuou quando sete pessoas – que eram apoio da ocupação – foram espancadas, presas e jogadas dentro na traseira de uma viatura. Um espaço sem nenhuma ventilação, escuro, apertado, que precisa ser abolido IMEDIATAMENTE e que lembra os porões terríveis dos navios negreiros. Antes de ser tacado no “camburão”, com apenas uma notificação de que eu estava sendo preso sob a acusação de sequestro, eu ainda falei que tinha problemas respiratórios e que sofro de claustrofobia, mas parece que isso só os animou. Com o corpo machucado, ardendo com o spray de pimenta, sufocados, ficamos espremidos, praticamente enforcados pela polícia. Sessões de tortura que só prosseguiram quando fomos levados para a Delegacia da Polícia Federal (DPF) e tacados como bichos em duas salas. Sem nenhuma explicação ou qualquer diálogo, obrigaram eu e outro companheiro a tirar toda a roupa, alegando que podíamos ter “uma arma por baixo da cueca”. Piada, se não fosse o contínuo de uma agressão que ainda estava começando, pois a partir daí, perto das 13 horas, ficaríamos SEIS horas largados na cela sem direito a ir ao banheiro, usar celulares, comer, ou receber qualquer informação sobre o nosso caso e destino. Urinávamos em garrafas de dois litros, ao mesmo tempo em que gritávamos de dentro da cela pedindo que alguém abrisse a cadeia e falasse algo, o que só aconteceu com a chegada da nossa advogada e dos advogados da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro.
No corredor sujo e fechado, com apenas um ventilador para as duas celas, só começamos a ser recebidos pelo Delegado às 21 horas da noite, e o último a sair, no caso eu, saiu apenas às 4 horas da madrugada, após 15 horas de cárcere, prisão, tortura, sofrendo privações e deboches de alguns policiais. No final, ainda tivemos que pagar fiança para não dormir na cadeia.
Não parece excessivo, após contar rapidamente pedaços do que aconteceu ontem, lembrar que tudo isso aconteceu no mesmo dia, 13 de Dezembro, em que os militares anunciaram o AI-5, símbolo e motor da violência e da ditadura militar, defendido tanto pelo Delegado da Polícia Federal como pelos policiais militares que nos travavam como merda dentro da viatura.
Denunciar a mentira democrática desse país, tendo total consciência de que no momento em que as lutas populares do campo e da cidade crescerem e que o movimento popular aumentar as suas forças, novos golpes militares surgirão, com ditaduras mais explícitas, só que dessa vez promovidas também por aqueles que um dia foram torturados ao lutar por uma sociedade justa e democrática.
Pois, não temos vergonha nenhuma de dizer – sob risco de sermos considerados “caretas” e “velhacos” – que esta violência é estrutural do Estado e do capitalismo, especialmente à moda brasileira, e que a sociedade comunista, sem classes, sem Estado, com igualdade e liberdade, é o que buscamos e acreditamos como vida e justiça.
Veja aqui um vídeo sobre os acontecimentos.
É nessas horas que as forças repressivas põem em prática aquilo que treinaram e ensaiaram exaustivamente nas ocupações de morros contra os “potenciais criminosos”. O diabo é que o “potencial criminoso” somos todos nós.
Muito bom o texto. Mostra que é possível fazer movimento sem rebaixar o discurso, a prática e sem perder a coerência revolucionária.
Só acho meio estranha a insistência no trem de ser pacífico (várias vezes), quer dizer que se fosse violento tava justificada a repressão? Agora, como é documento público o melhor mesmo é não dar provas pra acusação.
Solidariedade! Vamos divulgando e lutando pra acabar com esse Estado de merda e criar uma vida diferente!