Falar em aviões de combate como o F-16 ou submarinos ou outro item de grande potência está ligado à necessidade de os países se posicionarem como potências no plano militar e obterem um estatuto internacional. Por Javier Gárate
Apesar do que se pretende mostrar, a América do Sul não é a exceção quando se trata de complexo industrial-militar (a relação entre os governos e a indústria armamentista em favor desta última, e as claras consequências de uma corrida armamentista sem fim), mesmo que ainda não se manifeste tão brutalmente como nos EUA, a pressão da indústria bélica na política é inquestionável. Mas qual seria a justificativa para todo este gasto com armas? Há anos não existem guerras entre os países da América do Sul, embora tenha havido um aumento das tensões, principalmente entre Colômbia e Venezuela. A retórica militarista dirá que isto se deve graças à política dissuasiva das forças armadas, com sua recorrente afirmação bélica: “armar-nos para a paz”. A verdade é que a redução de conflitos não é resultado da capacidade dissuasiva militar, mas produto de muitos fatores, entre eles, a interdependência econômica impulsionada pelo livre mercado. Sistema que apesar do discurso progressista dominante, é o denominador comum na região.
Potências militares
Justificativas para o fornecimento de armas não faltam, mas sobram. Nos últimos anos, a maioria dos países da América do Sul tem argumentado que os gastos militares aumentaram devido à necessidade de substituição de equipamentos obsoletos. Isso justifica o seu aumento de 150% nos últimos seis anos? Durante este período, aumentou de 24 bilhões [mil milhões] para 60 bilhões de dólares, segundo o Instituto Internacional de Estudos Estratégicos (IISS). O aumento tem sido sustentado por toda a região, os países com maiores gastos militares são: Brasil (27,124 milhões de dólares), Colômbia (10,005 milhões de dólares), Chile (5,683 milhões de dólares), Venezuela (3,254 milhões de dólares), Argentina (2.608 milhões de dólares). Em relação aos anos anteriores, os países que proporcionalmente mais aumentaram seus gastos foram: Equador, seguido pela Venezuela, Colômbia e Chile. Em relação ao PIB, Colômbia lidera (3,7%), seguida pelo Chile (3,5%), Equador (2,8%), Brasil (1,5%) e Venezuela (1,4%) de acordo com dados de 2009. (Fonte: SIPRI)
Vejamos alguns casos:
Brasil
O Brasil assinou recentemente um acordo para construir quatro submarinos Scorpène e um submarino nuclear com a empresa francesa DCNA; também já comprou aviões de guerra e outros armamentos. O Brasil busca tecnologia para revigorar sua própria base industrial-militar. Segundo o próprio discurso oficial isto é de grande importância. O ministro da Defesa do Brasil, Nelson Jobim, disse: “Nossa prioridade atual é apoderar-se de tecnologia na área de defesa, especialmente espaço cibernético e área nuclear… A primeira consequência desta política é o término das compras ‘em oferta’. De agora em diante cada compra importante deve incluir a transferência de tecnologia e a formação de parcerias com empresas brasileiras”.
Alguns dos países fornecedores de armas para o Brasil nos últimos anos são: Alemanha, Itália, Jordânia, Rússia, Espanha e os EUA. O maior acordo foi feito em 2009 com a França por 12 bilhões de dólares. Uma parte da compra envolve 50 helicópteros de transporte militar e cinco submarinos (um a propulsão nuclear), o resto é somente para transferência de tecnologia.
O Brasil justifica estas compras como uma necessária renovação de seu arsenal, mas como o ministro da Defesa afirma: o Brasil vê como um elemento estratégico no posicionamento internacional o desenvolvimento de sua indústria militar.
Colômbia
A Colômbia tem o maior orçamento de defesa em relação ao PIB. Como é sabido, este país recebe um grande aporte econômico por parte dos EUA, sob o argumento do combate ao narcotráfico, desde o ano 2000 o montante gasto soma mais de 6 bilhões de dólares.
Os principais países fornecedores de armas para a Colômbia são Israel, Espanha e os EUA. Nos últimos anos adquiriu uma importante quantidade de helicópteros, inclusive brasileiros.
A Colômbia justifica seu grande gasto militar devido à prolongada guerra contra as FARC e o combate ao narcotráfico. No entanto, nos últimos tempos o aumento da conflituosidade com a Venezuela tem sido usado como alegação para a necessidade de aumentar este tipo de despesa. Durante o período do ex-presidente Álvaro Uribe no poder, este tipo de despesa aumentou consideravelmente, cumprindo com a estratégia de derrotar militarmente as FARC, e cumprindo também com a estratégia das políticas de “segurança democrática”. Com a eleição de Juan Manuel Santos, é de se esperar que continuem essas práticas, e mesmo um aumento significativo na predominância do poder militar.
Chile
O Chile também argumenta que seu grande gasto militar decorre da necessidade de renovação de seu parque. No entanto, seu nível de regeneração não mostrou limites, criando um preocupante grau de incertezas, especialmente no Peru, o que levou este país, por sua vez, a aumentar suas despesas militares, ao contrário dos argumentos de seu presidente, Alan Garcia, contra uma corrida armamentista.
Aproveitando o bom preço do cobre durante a última década e a lei – herdada do tempo de Pinochet -, que estipula que 10% das rendas do cobre são para as Forças Armadas, o estado gastou bilhões de dólares em armamento.
Isso incluiu a compra de 2 submarinos Scorpène do consórcio franco-espanhol DCN/IZAR, com custos que ultrapassam 800 milhões de dólares, submarinos que por sua vez têm sofrido inúmeros problemas técnicos. Outros grandes investimentos militares no Chile correspondem a 44 aeronaves de combate F-16, que foram comprados da Holanda e dos EUA. A mais recente aquisição da Holanda, que custou 270 milhões de dólares, corresponde a 18 aeronaves usadas.
Este país também está interessado no desenvolvimento de “novas tecnologias”, tais como veículos aéreos não tripulados, mais conhecidos em inglês como drones. Em outubro de 2010 o Chile recebeu de “presente” de Israel o modelo Skylark como “boas-vindas” para o acordo de compra de três ou quatro aviões não tripulados.
Por sua vez, espera desenvolver sua própria tecnologia de aeronaves não tripuladas com a Universidade de Concepción, trabalhando em cooperação com o setor privado para tanto. Os aviões não tripulados são utilizados nos trabalhos da inteligência vigilante, por isto recomendamos aos movimentos sociais, especialmente ao movimento Mapuche, estarem atentos ao aparecimento destes robôs no ar. (Fonte: http://chiledefense.blogspot.com/)
Venezuela
A Venezuela nos últimos anos tem mostrado um aumento significativo nos gastos militares, como resultado da utilização dos lucros provenientes das receitas do petróleo, sob a justificativa de uma iminente invasão dos EUA, pela cooperação de sua serva Colômbia, especialmente após o acordo de estabelecimento de bases militares colombianas com presença de tropas das forças armadas estadunidenses.
O principal meio de aquisição de armas da Venezuela tem sido a Rússia, alegando que é um ato “anti-imperialista”. O primeiro-ministro russo, Vladimir Putin, durante uma visita a Caracas, revelou que as compras feitas pelo governo da Venezuela ultrapassam 5 bilhões de dólares. Durante sua declaração, deu a conhecer um relato sobre o setor de defesa, observando que os contratos estavam a cargo de 13 empresas russas, inclusive a IZHMASH, fabricante de fuzis.
Segundo dados do SIPRI, na última década, do total de importações de armas do país latino-americano 77,6% provêm da Rússia. Entre as aquisições, incluem-se caças Sukhoi, helicópteros Mi-17 e Mi-35, fuzis de assalto Kalashnikov (mais um convênio para instalar uma fábrica dos mesmos rifles e suas munições), tanques S-300 e mísseis antiaéreos.
Mercenários
É conhecida a presença de soldados privados chilenos e ativos no Iraque. Em princípio, muitos destes – em sua maioria ex-soldados do exército em busca de melhores soldos – recebiam contratos no valor de milhões como isca para executarem os trabalhos de segurança.
Um soldado privado chileno no Iraque em 2005 ganhou até 1.300 dólares por mês, enquanto soldados privados estadunidenses ganharam cerca de 700 dólares por dia. Atualmente, em 2010, estes militares privados sul-americanos que estão realizando o trabalho de segurança na embaixada da Austrália em Bagdá recebem o soldo mínimo: 310 dólares por mês. Muitos são contratados pela Blackwater, conhecida por crimes e torturas no Iraque. Nos últimos meses, veio à luz que a Blackwater, agora rebatizada Xa Service LLC – em um esforço para limpar a sua imagem –, no ano de 2005 realizou treinamentos ilegais na Colômbia (em convênio com o Departamento de Estado da Colômbia) onde as pessoas foram treinadas e enviadas como nativas (de países terceiros), apoiadas por um contrato com o Departamento de Estado dos EUA. Na própria Colômbia, mercenários são contratados por empresas militares privadas para fazerem trabalhos no exterior. No início deste ano (2010), foi divulgada a notícia de que 60 colombianos realizaram este trabalho no Afeganistão. Este caso se repete em muitos países, porque os soldados são tentados pelos salários atrativos, que por vezes nunca chegam a ver. O maior problema para realizar uma campanha contra esses mercenários é que as empresas contratantes em cada país atuam sob sigilo, no entanto, é de extrema importância investigar as empresas que prestam serviço de busca de ex-militares para companhias militares privadas.
Recursos naturais
Um dos argumentos comumente usados para justificar a necessidade de armas é o da proteção dos recursos naturais e da soberania do país. O Brasil tem realizado a compra de submarinos nucleares e a produção de arsenal militar, dada a necessidade de proteger os campos de petróleo e gás recentemente descobertos ao longo da costa, juntamente com a defesa dos recursos naturais da Amazônia. A Bolívia, pela necessidade de proteger os campos de gás e minérios das multinacionais apoiadas pelo imperialismo. A Venezuela, por sua riqueza em petróleo, como também o faz o Equador pelo petróleo e o gás, repetindo-se assim na maioria dos países. Esta argumentação tem a contradição que – na maioria dos casos – os militares não são mobilizados para “proteger” os recursos naturais, mas sim a exploração destes em detrimento das próprias comunidades. A fórmula é repetida de forma quase idêntica em cada país: a presença militar para proteger a exploração dos recursos naturais que – apesar da retórica nacionalista – é finalmente vendida a empresas estrangeiras que acaba sendo as grandes beneficiadas.
Panorama regional
Embora as fronteiras na região ainda não tenham uma verdadeira estabilidade, não se pode falar de uma situação de beligerância ativa entre a maioria dos países sul-americanos. A exceção à regra seria representada pelas relações entre Venezuela e Colômbia, que são bastante voláteis, porém, muito bem utilizada por ambos os governos como justificativa para armarem-se e protegerem-se. No caso da Venezuela, a ameaça imperialista dos EUA através da Colômbia, e esta, por sua vez, pela guerra contra o “terrorismo” – segundo o governo da Colômbia – por parte das FARC que estariam sendo apoiadas pela Venezuela. Outro caso semelhante, com menor polarização, são as relações entre Chile e Peru por questões fronteiriças, incluindo o acesso ao mar para a Bolívia, uma questão não resolvida, mas que não representa um risco a ponto de chegar a um conflito militar.
O melhor exemplo dessa falsa imagem da necessidade de defender-se dos vizinhos é a formação da UNASUL, com o correspondente Conselho de Defesa Sul-americano, a qual busca a integração militar na região. Ou seja, para realizar um elevado grau de integração, a ponto de propor uma força militar conjunta da América do Sul, tal como foi levantado pelo coronel Oswaldo Oliva Neto do Brasil, durante as primeiras sessões de formação do Conselho de Defesa. No entanto, sabemos por outros casos de cooperação regional, como a União Europeia com sua Agência Europeia de Defesa – de onde se promove o desenvolvimento da indústria militar da região, a capacidade de agir militarmente como um bloco em aliança com a OTAN [NATO] – que uma força militar conjunta sul-americana implicaria um aumento dos gastos militares para custear esta mesma força, com consequente pressão sobre os países para o incremento de seu parque militar a fim de ficar ao nível do padrão regional.
Outro dos objetivos do Conselho de Defesa sul-americano é promover a indústria armamentista de seus membros. O Brasil já é líder em termos de indústrias nacionais e não seria surpreendente que, como parte das políticas do Conselho de Defesa, desenvolvesse um plano para apoiar indústrias nacionais militares.
O intercâmbio de informação é um dos objetivos deste Conselho de Defesa, no entanto, não fica claro a que informação se refere. São conhecidos os riscos de cooperação militar quando se trata de combater os movimentos sociais, um exemplo infeliz foram as ditaduras militares dos anos 70 com a sangrenta Operação Condor no Cone Sul.
A pergunta é: qual é a necessidade de armas, se não houver risco de conflito na região? Pessoalmente eu acho que há duas grandes razões que se relacionam com o arsenal a que se referem.
Falar em aviões de combate como o F-16 ou submarinos ou outro item de grande potência está ligado à necessidade de os países se posicionarem como potências no plano militar e obterem um estatuto internacional. São amplamente conhecidos os planos de criar uma “OTAN do Sul”, o qual é necessário para obter o padrão exigido por esta aliança de guerra. Vários países sul-americanos têm feito parte das “Forças de Paz”, especialmente no caso do Haiti, onde a Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Equador e Peru participaram com tropas militares ou contingentes policiais. Se a OTAN do Sul se tornar uma realidade, as forças armadas sul-americanas farão parte de mais intervenções militares fora da região. Por outro lado, a compra deste arsenal está ligada às relações com os países do Norte. A União Européia e os EUA advogam pelo apoio ao desenvolvimento da América do Sul, que se manifesta nos acordos de livre mercado e da venda de armamento, favorecendo com essas políticas as grandes corporações e os militares.
Outro parque militar destina-se a controlar o “inimigo interno” para as políticas contra o “terrorismo”, “tráfico de drogas” e “segurança pública”, onde os policiais se dedicam ao controle social através da força, acompanhadas pela criminalização de movimentos sociais a partir do discurso governamental.
Enquanto movimento antimilitarista, temos uma grande responsabilidade de investigar o negócio da guerra e passar à ação. Existem muitas opções para realizar ações contra as empresas que lucram com a guerra. Uma ação muito clara que serve para mostrar a empresas e governos, mas também ao público em geral, é fazer-se presente em feiras de armas – que são muitas vezes disfarçadas como feiras do ar e do espaço – e realizar ações denunciando o lado sangrento do evento. Também na América do Sul, os constantes desfiles militares obrigatórios representam uma boa oportunidade para expressar a nossa oposição à indústria militar e ao militarismo.
Vemos-nos lá!
Originalmente publicado aqui.
Ilustrações de George Grosz
Tradução: Passa Palavra