As intenções declaradas para a construção dos muros cercando as favelas cariocas são inconsistentes e escondem os seus verdadeiros objetivos. Concretizando uma nova conjuntura na cidade, os muros respondem aos anseios de uma opinião pública cada vez mais conservadora e às demandas do mercado imobiliário. Por Eduardo Tomazine Teixeira
Há poucas semanas a Empresa de Obras Públicas do Estado do Rio de Janeiro (EMOP) iniciou a construção de um muro de três metros de altura e 634 de comprimento no entorno da favela Dona Marta, na Zona Sul da cidade. A construção inaugura um programa que prevê o cercamento de outras dez favelas, totalizando onze quilômetros de extensão. A respeito da empreitada do Governo do Estado, assim se manifestou o semanário Isto É, em sua edição de 17/04/2009: “Primeiro passo para frear a expansão das favelas, controlar a criminalidade e preservar o que resta de mata nativa, o projeto de muros vai permitir o crescimento ordenado do Rio de Janeiro.” Dotada de incrível concisão, podemos considerar esta definição como a mais completa acerca das intenções declaradas pelo Estado do Rio (apoiado pela Prefeitura) com a construção do tal muro. No entanto, estas intenções – bem como a cobertura realizada pela grande imprensa – escondem a sua falta de consistência, deixando na sombra também os seus verdadeiros interesses.
Analisados brevemente, os argumentos para a construção do muro desmoronam tal como areia. Primeiramente, e observando apenas a partir de um ponto de vista instrumental, caso a construção do muro visasse sinceramente obstaculizar a expansão horizontal das favelas cariocas, a escolha das áreas para a sua construção revelaria uma grande desinformação, por parte do aparelho estatal, dos dados que ele mesmo produz, e, por conseqüência, um erro estratégico. Afinal, estudos do Instituto Municipal de Urbanismo Pereira Passos (IPP) indicam que as onze favelas eleitas apresentaram, entre 1999 e 2008, uma média de crescimento (horizontal) de 1,18%, ao passo que a média de crescimento global das favelas cariocas foi de 6,9%. A favela Dona Marta, que recebeu os primeiros blocos de concreto da empreitada, decresceu em 1% no mesmo período [1].
Como os dados não falam por si sós, os defensores do muro poderiam argumentar que estas favelas, embora cresçam mais vagarosamente que as demais, avançam diretamente sobre as áreas de preservação ambiental nas encostas verdes do município, e, relembrando, um dos motivos para a realização da obra é “preservar o que resta de mata nativa”. No entanto, o mesmo IPP demonstra que 69,7% das construções em encostas acima da cota de 100 metros acima do nível do mar [2] foram realizadas irregularmente pelas classes alta e média, e grande parte destas construções avança justamente sobre as áreas de preservação ambiental. Apenas 30% das encostas acima da cota 100 são ocupadas por favelas. Aqui, mais uma vez, a construção do muro não parece seguir os critérios da eficácia no que compete aos objetivos almejados.
No entanto, há ainda observadores, como o secretário executivo do Instituto Terra de Preservação Ambiental, Mauricio Ruiz, que sustentam a construção do muro por representar ele “uma demarcação que permite um monitoramento constante” [3]. Ora, com esta declaração o ambientalista está a apostar num suposto desconhecimento da população a respeito das tecnologias de satélite e processamento digital de dados, as quais fornecem os instrumentos para o sensoriamento de áreas muito distantes, como a Floresta Amazônica ou a inabitada Antártica. Ferramentas primárias e disponíveis gratuitamente ao grande público, como o Google Earth, estão aí para demonstrar que, em uma metrópole como a do Rio de Janeiro, sabe-se muito bem, dispensando qualquer muro “delimitador”, para onde se estende o tecido urbano.
Mas o muro não concretiza apenas as intenções dos ambientalistas que fingem ignorar a desigual apropriação ambiental das classes e o que se precisa para monitorá-las. Afinal, o desenho dos muros serviria também para controlar a criminalidade, por razões como a que nos fornece o comandante do 2º Batalhão da Polícia Militar (situado no bairro de Botafogo, onde se encontra a favela Dona Marta), tenente-coronel Gileade Albuquerque: com o muro, restringir-se-á um dos acessos à “comunidade” [4]. Com esta justificativa oblitera-se o fato de que a maior parte dos carregamentos de armas, munições e drogas não se faz sorrateiramente por meio da mata atlântica circundante às favelas, mas através de veículos que circulam pelos logradouros públicos da “cidade formal”, não raro mediante a anuência corrupta do próprio aparato policial. Tal argumento agride também o bom senso ao supor que muros de três metros de altura impediriam a fuga dos traficantes de drogas. Ademais, murar as favelas como pretexto para controlar a criminalidade reveste a preconceituosa pressuposição de que a criminalidade pertenceria exclusivamente aos espaços favelados. Como tem demonstrado o pesquisador Marcelo Lopes de Souza [5], as favelas representam apenas um subsistema no amplo sistema da economia da droga, o qual se inicia fora das favelas e cujos benefícios econômicos mais substanciais também estão longe de permanecer entre os seus muros, azeitando de maneira cada vez mais fundamental os negócios e a política ditos formais.
Por fim, murar as favelas supostamente permitiria o crescimento ordenado do Rio de Janeiro. Mas o que se está a considerar como crescimento ordenado? Quem são os desordeiros, e quem são aqueles que detêm a “ordem”? Ordeira, em matéria de regular o crescimento urbano, seria a Prefeitura, que descumpre a Lei Federal 10.257 ao não revisar o Plano Diretor decenal do município; plano que, em breve, completará uma década sem ser revisado? [6] Ordeiro seria o recente modelo de expansão das elites urbanas cariocas para a Zona Oeste da cidade, que despeja esgoto sem tratamento na Lagoa de Sepetiba, ou seriam as ricas construções nas encostas verdes? Seriam ordeiros os “condomínios” de classe média e alta que, à revelia da lei de ordenamento do solo (Lei Federal 6.766), privatizam parcelas do espaço público fechando seus logradouros? Desordeiros, afinal, são sempre os outros, os pobres, os quais, aliás, são os que têm menos escolhas espaciais para residir, restando-lhes as áreas ou mais distantes, ou de maior risco, e sempre menos providas de estrutura técnica e social.
Ora, as objeções levantadas nos seis parágrafos acima estão longe de serem exaustivas, mas já nos ajudam a perceber a inconsistência de todas as intenções declaradas para a construção dos muros no entorno das favelas. Não obstante isso, um muro de onze quilômetros e muitos milhões de Reais [7] pode ser qualquer coisa, menos inútil. No entanto, se ele não serve para conter a expansão das favelas, não protege a mata nativa, não controla a criminalidade e não permite o crescimento ordenado, para que serve então?
O jornalista Elio Gaspari muito cedo tratou de “desconstruir” o muro, acusando-o de ser uma construção de um imaginário que há muito regula as políticas urbanas conservadoras no Rio de Janeiro. Ele se refere a uma certa “demofobia”, ou seja, o medo do povo. Para os demófobos, os culpados por todos os vícios e crimes da cidade seriam os pobres e suas formas de vida. De fato, este “estado de espírito” e seu discurso já legitimaram muitas intervenções contra os pobres. Entre 1902 e 1906, durante a reforma Pereira Passos, seguindo os moldes das reformas do Barão Haussmann em Paris, os cortiços da população trabalhadora eram considerados insalubres, focos dos “miasmas” disseminadores das epidemias que assolavam a cidade, e por isso foram derrubados para dar lugar a amplas, luxuosas e modernas avenidas. Sem receberem indenizações do Estado, muitos dos moradores dos cortiços e casas de cômodo derrubados passaram a ocupar as encostas das áreas próximas ao Centro, adensando, assim, as primeiras favelas do Rio de Janeiro [8].
Décadas mais tarde, durante o regime militar brasileiro, levou-se a cabo uma série de remoções de favelas que tinham como justificativa, entre outras razões, os estigmas forjados na esteira do “mito da marginalidade”, segundo o qual os favelados seriam “economicamente parasitários”, “culturalmente desajustados” e “politicamente subversivos” [9]. O que vemos ocorrer hoje é aquilo que o já mencionado Souza chamou de “atualização do mito da marginalidade”, atualização engendrada a partir da década de 80, em que os favelados passaram a ser temidos como “traficantes ou traficantes em potencial”. Além disso, o hoje insustentável discurso higienista parece ter sido substituído por um discurso ambientalista conservador que legitima as remoções de favelas e absurdos como a construção do tal muro.
Mas mitos e discursos, apesar de povoarem o imaginário e animarem as práticas preconceituosas de grande parte dos cidadãos comuns, muito freqüentemente saem da boca dos políticos e dos grupos econômicos para legitimar seus interesses, que são políticos e econômicos. Com efeito, o modelo de gestão urbana adotado nas últimas duas décadas, reduzindo a administração da cidade à lógica empresarial, tem mostrado claros sinais de fadiga por conta da sua conseqüência inevitável: a intensificação insuportável dos problemas urbanos.
Além disso, muitas oportunidades de negócios, como a recuperação de áreas obsolescentes (a “revitalização” da Zona Portuária é um dos exemplos) e a revalorização de algumas parcelas de bairros nobres são atravancadas, justamente, pela incômoda presença dos pobres. O discurso da “ordem”, tendo como corolário a política intitulada como choque de ordem, é o discurso da legitimação de um novo grupo político alçado à Prefeitura do Rio de Janeiro, nutrindo-se dos anseios de uma população acossada pela escalada da violência e que, em um número expressivo, teve seu patrimônio depreciado pela vizinhança das indesejadas favelas. Com essa base, os gestores do espaço urbano carioca têm o caminho aberto para pôr em prática uma série de medidas conservadoras que beneficiam diretamente os interesses do mercado imobiliário.
A construção do tal muro e sua grande aceitação (celebração até) pela opinião pública devem ser vistos, portanto, como marcos da nova conjuntura política do Rio de Janeiro. O fato de uma proposta semelhante feita pelo então secretário estadual de desenvolvimento urbano e meio ambiente em 2004, Luiz Paulo Conde, ter sido duramente criticada pela imprensa, vendo-se obrigado a recuar, nos sugere isso. Com a violência “ordeira”, os políticos, que pensam quadrienalmente e em termos de campanha, apresentam-se como eficazes e granjeiam apoio. Ao fim, usam dessa violência para tentar remover ou conter os obstáculos aos grandes interesses econômicos que moldam o espaço urbano e ajudam a eleger prefeitos e governadores.
Mas ações como o muro ou o “choque de ordem” são fadadas ao fracasso (o que não significa que deixem de ter continuidade e até sirvam como modelos). Fracassam porque se propõem a combater aquilo que são os subprodutos inevitáveis da ordem que se esforçam para manter. Afinal, como conter o crescimento das favelas sem políticas sistemáticas de habitação popular? Como tirar das ruas os trabalhadores informais diante do desemprego estrutural? Como controlar a criminalidade, se o seu descontrole pode ser considerado um dos pré-requisitos da sustentação do sistema atual?
Mas até a opinião pública convencer-se de que nada muda, políticos acedem a cargos mais elevados, e muitos negócios lucrativos são firmados. Não é, pois, por mero acaso ou erro estratégico que as onze favelas eleitas para serem “agraciadas” com os muros estão todas encravadas na zona de maior valor imobiliário da cidade. Na verdade, discursos e políticas desse tipo vêm e passam (se transformam). O que de substancial fica, porém, é o estigma e o precedente para a aceitação de políticas ainda mais conservadoras. Observando em perspectiva, estes muros já começaram a ser soerguidos há muito tempo, quando os pobres e suas formas de vida foram responsabilizados pelos problemas urbanos. Agora, além do confinamento carcerário a que são usualmente submetidos, estão fadados a serem confinados em suas residências, tendo a sua entrada e saída controlados e, provavelmente, a sua vida monitorada por câmeras [10]. Resta saber o que será erguido sobre estes muros.
Notas:
[1] Estudo intitulado Favelas Cariocas, publicado pelo IPP em 25/06/2008. Disponível na Internet no site http://www.rio.rj.gov.br/ipp/download/ata_25jun08.pdf.
[2] A partir da cota de 100 metros a concessão para obras é muito restrita, e a grande maioria das construções é irregular. Um projeto de lei complementar (45/2007) apresentado à Câmara dos Vereadores, no entanto, prevê a permissão para construções de imóveis de classe média em algumas áreas acima da cota 100, sob o argumento de conterem a favelização.
[3] Revista Isto É, edição de 17/04/2009, disponível na Internet no site http://www.terra.com.br/istoe/edicoes/2058/artigo131883-1.ht
[4] Depoimento publicado no JB Online, no dia 23/12/2008. Disponível na Internet no site http://jbonline.terra.com.br/extra/2008/12/23/e231215891.html
[5] SOUZA, M. L. de (2000): O desafio metropolitano: Um estudo sobre a problemática sócio-espacial nas metrópoles brasileiras. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.
[6] O atual Plano Diretor do Rio de Janeiro é de 1992 (Lei Complementar n° 16, de 4 de junho de 1992).
[7] Segundo a matéria publicada na Isto É, apenas a construção dos muros nas favelas Dona Marta e Rocinha estava orçada em 22 milhões de Reais. Já a matéria publicada no JB Online diz que o custo do muro, somente na favela Dona Marta, seria de um milhão de Reais.
[8] Sobre o processo de expulsão dos pobres na esteira da “modernização” da cidade, sugerimos a leitura de ABREU, M. de A. (1987): A evolução urbana do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Zahar.
[9] Para uma crítica profunda dos absurdos do “mito da marginalidade”, recomendamos a leitura de KOWARICK, L. (1979): A espoliação urbana. Rio de Janeiro e São Paulo: Paz e Terra, e PERLMAN, J. (1976): O mito da marginalidade. Favelas e política no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
[10] Segundo a matéria da revista Isto É, a polícia pretende montar postos nas entradas das favelas. Além disso, cogita-se também instalar câmeras de vigilância nos muros.
Para mostrar um pouco que tipo de opinião a política dos muros vocaliza e amplia, reproduzo aqui alguns comentários dos leitores do Globo Online a respeito do plebiscito realizado na Rocinha, o qual votou contra a construção do muro nesta favela:
Autor: Watchmen
26/04/2009 – 21h 24m
Está certo, não construam muro não, mandem de volta pra terra natal metade dessa gente inútil que está na Rocinha. E aproveita passa a máquina de terraplanagem no Rio das Pedras e Terreirão e coloca esse gente toda num navio e manda de volta pro nordeste.
É incrível que essa gente se sinta no direito de continuar destruindo a cidade sem que possamos fazer nada para impedi-los. Chega de politicamente correto, pagamos a conta, queremos ação, chega de favela, chega de funk, chega de coitadinhos.
Autora: Anna Bella
26/04/2009 – 16h 31m
O QUE MAIS ME ESPANTA É ESSE DISCURSO DEMAGÓCIO DOS FALSOS INTELECTUAIS, DO POBREZINHO ISSO E AQUILO. FAVELA É UM CÂNCER , APENAS ISSO UMA SUBSOCIEDADE.
QUE VOLTEM ENTÃO PARA SUAS CIDADES DE ORIGEM, APENAS ISSO.
Autor: Christian Silva dos Santos – e-mail
26/04/2009 – 23h 45m
CONTROLE DE NATALIDADE E REMOCAO DA PLEBE PARA OUTRO LOCAL BEM LONGE!!! E A UNICA SOLUCAO PRO RIO
Pois é…. a Faixa de Gaza é logo aqui!
O fascismo está mais presente do que nunca. Talvez essa classe média frustrada e ressentida que fez os tais comentários que são citados ao final do texto tenha medo que seus palacetes romanos decadentes sejam invadidos pelos bárbaros que não tem nada mais a perder. Aliás, a descida das favelas rumo à cidade é uma consequência lógica da acumulação capitalista.
Ótimo artigo. Uma boa resposta à fascistização da cidade em tempos de crise. É engraçado como manipulam certos argumentos, como o ambiental, quando querem intensificar a segregação. Quando quiserem colocar um muro separando a favela da Maré e a Linha Vermelha o argumento será para proteger os habitantes da Maré do barulho dos carros…
Abraços, Licio
Concordo plenamente com a questão dos muros. Não acho q resolveram nenhum dos problemas a cima citados. Porém, o que se deve discutir é quais são as posibilidades de política habitacional existentes numa cidade como Rio de Janeiro. Confesso que não considero a favela um lugar humano para pessoas viverem com dignidade, sem a infra-estrutura mínimas, sem condições adequadas. Esse modelo habitacional não pode de forma alguma ser naturalizado e dado como aceitável. Como resolve-los? essa é a grande questão? Ocupação de prédios abandonados, construção de conjuntos habitacionais, remosão de favelas, isentivo a migração para outras cidades e para o campo? Não sei?
Parabens pelo texto!!
Excelente texto
Pena que os grandes veiculos de comunicaçao não costumam nos trazer a verdade. Basta ver os comentarios ao final do texto, a classe media brasileira atual é conservadora e escrava da ilusao de que fazem parte da “alta” sociedade.
Sinceramente, não é com politicas opressoras que vamos rescolver o problema das favelas. O primeiro passo para a descoberta dessa soluçao é ver que quem mora nas favelas também é humano.