Seria irresponsável negar a existência da doença, mas é necessário afirmar que o aproveitamento que o governo está a fazer desta crise da saúde tende obviamente a limitar ao máximo a possibilidade de organização e de protesto das massas nas ruas do México. Por David Venegas Reyes*
No México, a gripe suína é o assunto da moda. A influência que os porcos têm neste país, para mal de todos nós, colocou agora num lugar de primeiro plano a gripe suína, que ocupa de modo quase permanente os noticiários da televisão, da rádio e dos jornais. Parecem já distantes os dias em que a atenção dos grandes órgãos de comunicação e de boa parte dos mexicanos e mexicanas era ocupada pela maior crise económica deste século, pelos milhares de desempregados que os patrões lançam diariamente na rua, pelo empobrecimento acelerado da população trabalhadora, pelos milhares de assassinatos nas refregas entre narcotraficantes e polícias e pelas vítimas civis da «triunfante» guerra contra o narcotráfico prosseguida por Calderón [presidente do México], pelas medidas antipopulares votadas pelas Câmaras de deputados e de senadores, pela repressão contra os movimentos sociais que continua a ocorrer em todo o país e pelo desaparecimento e assassinato dos participantes nas lutas sociais.
A proclamação governamental das 149 mortes provocadas até agora por esta doença, principalmente no centro do país, e a sua rápida difusão entre a população, provocam um ambiente de terror que não se via no México desde a célebre tomada do poder pelos chupa-cabras [uma espécie de vampiros extraterrestres] em 1994, um ano em que ocorria uma crise económica, política e social terrível, mas sem dúvida muito menor do que a que hoje vivemos.
Como bom mexicano, vacinado com o cepticismo que nos distingue e nos protege da virulência de governos corruptos e mentirosos, segui as notícias dos primeiros dias com calma, prudência e cepticismo. Com olhar atento, à espera da altura em que o governo, por trás de uma tão colossal encenação propagandística e de uma tão súbita preocupação com a saúde do povo, desse a conhecer as suas verdadeiras intenções.
Na segunda-feira, 27 de Abril, a Secretaria da Saúde, com os amplos poderes coercitivos que lhe haviam sido concedidos pelo governo federal, impôs à população uma série de medidas destinadas a deter esta doença, classificada já como quase pandémica. Isolamento dos suspeitos de contágio, inspecção de viaturas e bens, entrada em todo o tipo de locais e residências para controlar e combater a epidemia, medidas para evitar a concentração de pessoas em quaisquer lugares de reunião − estas são algumas das medidas aplicadas pelo governo federal para supostamente impedir a progressão da doença.
Ao mesmo tempo, silenciosamente e sem discussão, nas Câmaras de deputados e de senadores os representantes de todos os partidos políticos aprovam disposições e decretos antipopulares, como a reforma da lei da Infonavit e as modificações à lei das expropriações.
Com uma jogada brilhante, capaz de causar inveja ao próprio César Bórgia, e do mesmo modo que sucedeu com a manipulação do medo do povo norte-americano provocado pelos atentados de 11 de Setembro, que serviu para o governo do genocida George Bush levar aquele país e vários outros a lançarem-se numa guerra genocida contra o Afeganistão e o Iraque, o governo federal de Felipe Calderón e os seus aliados incondicionais dos meios de comunicação, aproveitando-se do terror que eles mesmos provocaram entre a população, transformaram um problema de saúde num problema de segurança nacional e implantaram um estado de suspensão de garantias individuais sem significativa oposição nem resistência popular.
Com o pretexto de impedir a difusão da doença, as medidas implantadas pelo governo federal revelam-se claramente tendentes a retirar as pessoas das ruas, a obrigá-las a ficar em casa e, se for necessário, a perseguir quem o governo quiser dentro das próprias residências, a revistar os bens de qualquer pessoa em qualquer lugar e a proibir quaisquer veleidades de organização e de protesto colectivo nas ruas, e o governo conseguiu tudo isto sem disparar um único tiro nem uma única granada lacrimogénea, pelo menos até agora… Não precisaram de o fazer porque o medo de ser contagiados pela gripe suína, alimentado diariamente pelos meios de comunicação, é muito mais persuasivo do que o autoritarismo ou a repressão para levar à aceitação de medidas autoritárias, que de outro modo não teriam sido permitidas e teriam deparado com uma forte manifestação de repúdio popular.
Estas medidas provocam medo e desconfiança entre a população e limitam seriamente o espírito de solidariedade e de apoio mútuo que existe no povo pobre e trabalhador do México, a ponto de o fazer fugir ao contacto com os seus semelhantes. As ruas estranhamente vazias do distrito federal [a capital], a grande quantidade de pessoas que andam assustadas, com máscaras no rosto, imagens abundantemente exibidas pelas televisões e pelos diários nacionais nos últimos dias, revelam até que ponto se interiorizou na população o medo e a desconfiança no outro, no semelhante, medo que o pobre sente pelo pobre, o desempregado pelo desempregado, o explorado pelo explorado, o indígena pelo indígena.
Tudo isto numa altura em que a crise económica, a repressão generalizada, a privação de terras e de direitos sofrida pelos povos indígenas e pelos camponeses de todo o país, as reformas prejudiciais aos direitos dos trabalhadores, levam à organização de grandes protestos de norte a sul em todo o México. Aproximam-se momentos de protesto e de luta nas ruas de todo o México, que servirão para medir o impacto desta campanha de medo sobre o povo pobre e trabalhador, e para mostrar até onde o governo está disposto a chegar para evitar a concentração de multidões. Será que você vai participar nas mobilizações do Primeiro de Maio? Irá protestar nos dias 3 e 4 de Maio contra a repressão brutal sofrida pela população de San Salvador de Atenco? Sairá para a rua com a máscara do medo ou com os lenços coloridos da resistência? Será que os médicos da Secretaria da Saúde serão acompanhados por contingentes armados de polícias ou de militares para dispersar as manifestações?
E como se tudo isto não bastasse, a megacampanha de medo do governo federal e os grandes meios de comunicação deram um colossal presente ao assassino Ulises Ruiz Ortiz, ajudando-o a manter a população de Oaxaca afastada das ruas, da organização e da luta, já que «descobriu-se» que esta doença «teve origem» nada mais nada menos do que numa mulher de Oaxaca que faleceu há poucos dias num hospital daquele estado, vejam só! E agora o desgoverno de Ulises Ruiz envia as hordas de polícias repressores e criminosos, os mesmos que em 2006 distribuíram alegremente balas e gases lacrimogéneos aos povos de Oaxaca e que assassinaram mais de 26 companheiros e companheiras do movimento social, para distribuir amavelmente máscaras em escolas e outros lugares públicos do estado, como se pudessem lavar assim o sangue que têm nas mãos.
Seria irresponsável negar a existência da doença, se bem que não faltem razões para pô-la em dúvida. Mas é necessário afirmar que o aproveitamento que o governo está a fazer desta crise da saúde tende obviamente a limitar ao máximo a possibilidade de organização e de protesto das massas nas ruas do México, precisamente quando ocorre uma crise fundamental no sistema capitalista a nível mundial e no regime governativo mexicano.
Que este Primeiro de Maio dos trabalhadores e o 3 e 4 de Maio de San Salvador de Atenco sejam combativos! Todos para as ruas!
Oaxaca de Magon, cidade da resistência, em 28 de Abril de 2009.
* «El Alebrije», conselheiro da Assembleia Popular dos Povos de Oaxaca.