Lado a lado, a luta pelo transporte público e a luta pelo acesso à cultura se tocam. Por José Calixto
Todos aqueles que não crêem na divisão natural das classes sociais e que almejam a igualdade de acesso aos bens básicos de sobrevivência sabem que não basta apenas que a produção seja partilhada socialmente: para além do mínimo de um bem-viver tecnológico de existência, a reprodução do mundo egoísta e capitalista que vivemos é tributária de certa disposição para perceber o mundo. A maneira como se vê o mundo diz diretamente a maneira como agimos nele e de como almejamos transformá-lo ou conservá-lo. Cabe questionar então o que nos faz ver. Como se forma nossa sensibilidade? De que maneira educamos nossos sentidos?
O termo estética, vem de aestesis, daquilo que é sensível. Quando se contempla uma obra de arte, é imediata a percepção de como esta invade nossos sentidos e toca nosso corpo. Seja para a pura diversão vulgar ou a real educação e refinamento da percepção, o acesso à arte é fundamental para a tomada de consciência do homem e a superação de sua pré-história, o que depende de um processo de educação e formação histórica e social. Pois se ele souber ver bem, não passará imune diante das atrocidades e desigualdades que nosso mundo apresenta, caminhando cada vez mais para fins catastróficos; se ele souber ouvir bem, saberá reconhecer o outro que lhe fala e assim saberá falar ele também; se ele souber cheirar, saberá que os rios estão cada vez mais poluídos e que os automóveis cada vez mais poluem o ar; se ele souber degustar, saberá preparar pratos deliciosos, uma das mais legítimas felicidades do viver, que tem na fome miserável o seu contragosto; se ele souber tocar, saberá dar amor e delicadeza.
Mas o fato é que o acesso à cultura é tão limitado quanto a partilha da produção. O reino de exclusão da propriedade privada impera. O alto valor das “mercadorias” culturais é fator determinante para a exclusão social da consciência e da educação dos sentidos, fator determinante na manutenção da desigualdade social. Na cidade isso é latente por aquilo que podemos chamar de geografia do acesso à cultura: a grande maioria dos teatros, cinemas, salas de concertos e grandes eventos culturais se localizam e acontecem no centro da cidade. Deixando de lado a questão do preço dos ingressos e das políticas capitalistas de direito autoral, a questão do acesso ao centro da cidade é determinante na manutenção da desigualdade social e torna-se central no debate sobre a exclusão do acesso à cultura.
Diante de uma nítida política de incentivo ao uso do automóvel individual em detrimento do transporte coletivo, a cidade de São Paulo, por exemplo, exclui do acesso à cultura milhares de pessoas. Estas não deixam sua sede estética de lado e, em geral, ao invés de entrar em contato com uma comunidade de espectadores, com um espaço de arte, com um artista em carne viva, ficam limitadas à deformação oferecida pelos canais de TV. Assim, só os ricos têm acesso à cultura, à vida noturna, às artes em geral. É um verdadeiro atentado ao ir e vir, e um toque de recolher forçado imposto pela política de transporte público na cidade.
Nada garante que o acesso à cultura traga grandes transformações políticas na sociedade, mas é nítido que a exclusão de toda uma população do acesso à cultura simboliza a diferença de classe entre os dominadores que podem “educar” seus sentidos para conservar o atual status quo. O que é certo é que a verdadeira arte deve ser afastada das classes dominadas: diante dela o povo se revolta ao perceber sua situação e o teatro, mesmo que não didático, desperta para a ação. Isso sem contar a partilha de experiências que o encontro coletivo em espaços públicos proporciona – no estado de sítio qualquer reunião pública é proibida.
Às classes excluídas, os governos oferecem apenas doses terapêuticas de liberdade: na virada cultural o metrô funciona durante toda a noite. Aquilo que deveria ser cotidiano – o acesso ao centro, o acesso à noite, o acesso gratuito à cultura – torna-se uma política de autopromoção do Estado que diz: veja como é bom, mas a vida não é boa, volte ao trabalho, foi só por uma noite.
Assim, lado a lado, a luta pelo transporte público e a luta pelo acesso à cultura se tocam. O alto preço da tarifa do transporte é o preço da manutenção das desigualdades. O transporte público, assim como a cultura, devia ter suas tarifas reduzidas à zero, pois tratam de direitos fundamentais e constitucionais de qualquer cidadão. Políticas como a do “bilhete amigão”, que permite a integração gratuita por 8 horas no fim de semana, vão no caminho certo embora ainda sejam insuficientes, pois todos sabemos que a cultura não é privilégio dos fins de semana, e, num dia de semana normal, gastar o dobro de passagens para ver obras de arte costuma não compensar as perdas no orçamento geral de uma família. Uma série de reivindicações neste sentido seriam de grande contribuição para reduzir a desigualdade no acesso à cultura: redução da tarifa, aumento da frota, transporte coletivo noite e dia, a redução do preço dos táxis. Assim os homens, no livre ir e vir, no livre educar e cultivar estético, poderiam voltar, não a consumir arte como mero divertir-se, mas sim a se encontrarem na noite, sentirem-se livres para perder-se na cidade, viver o tempo livre de maneira realmente livre e assim sonhar com uma sociedade que realmente conseguisse diminuir o sofrimento coletivo.
José Calixto é músico e estudante de filosofia.
Este artigo faz parte do dossiê temático DOSSIÊ: Campanha Tarifa Zero 2011