Os trabalhadores que continuam a ter empregos regulares, com salários e benefícios decentes, quando fazem greves mantêm-se quase sem excepção nos limites da legalidade e dos estritos “âmbitos de negociação” que garantem a derrota ainda antes de a luta começar. Por Loren Goldner
Pano de fundo
Para se compreender a luta de classes nos EUA desde o desastre financeiro de 2007-2008, temos de referir resumidamente a história das quatro décadas anteriores, desde o fim dos distúrbios espontâneos dos fins da década de 1960, começos da década de 1970. A história da classe trabalhadora estadunidense desde cerca de 1973 (como é bem sabido) tem sido uma quase ininterrupta sequência de derrotas e recuos. Isto foi descrito como “uma guerra de classes em que só um dos lados estava combatendo”. Durante essas décadas, e segundo estimativas prudentes, os salários reais caíram 15% e já a partir de 1960 haviam começado a desaparecer as famílias operárias sustentadas pelo salário de um único dos seus membros. Hoje em dia, uma família operária típica precisa de dois ou três salários mensais e pelo menos um deles destina-se a assegurar apenas o custo da habitação (tipicamente 50% do rendimento da família). A semana de trabalho média aumentou pelo menos 10%, no caso dos empregos a tempo inteiro; de facto a força de trabalho parece-se cada vez mais com uma sociedade em forma de ampulheta, com as “camadas profissionais” a fazerem semanas de 70 horas e a maioria da população a ver-se precarizada em empregos ocasionais a tempo parcial. Durante esse período, os 10% mais abastados da população arrecadaram praticamente 70% do crescimento do rendimento. Grandes zonas do velho nordeste industrial, é igualmente sabido, foram convertidas em “cemitérios industriais”, com salários baixos, com empregos de “serviços” de fim-de-linha (como no Wall Mart) a substituírem os antigos empregos, com salários módicos mas relativamente seguros. Os EUA rivalizam com a Coreia do Sul quanto aos mais perigosos locais de trabalho no mundo capitalista “avançado”, com 14 trabalhadores a morrerem no trabalho a cada dia que passa. 2% da população (sete milhões de pessoas) [1], na maioria negros ou latino-americanos, aguarda julgamento, na prisão ou em liberdade condicional, em grande parte como resultado da “guerra às drogas”. Com centenas de milhares de pessoas a perderem as casas e os apartamentos depois de perderem os empregos, o número dos sem-abrigo disparou, intensificando o assédio policial da “guerra aos pobres”, arrebanhando as pessoas em abrigos fétidos que mais parecem prisões, e a criminalização do povo da rua.
É este, então, o panorama da realidade social no “país mais rico do mundo”.
O declínio das greves
Perante esta ofensiva capitalista desde os anos 1970, a greve clássica, para não falar da greve selvagem, foi desaparecendo até quase sair de cena. Nos anos 1970, 20% dos trabalhadores estadunidenses estiveram envolvidos, por ano, em paralisações ou lockouts; em 2009, apenas 0,05%. Os velhos sindicatos industriais foram muito enfraquecidos pela desindustrialização; caíram de 35% da força de trabalho em 1955 para 12% nos dias de hoje, e a maioria dos que restam são sindicatos da função pública [2]. (Para evitar mal-entendidos: a maior parte dos grandes sindicatos, até 1973, combatia as revoltas selvagens das bases, e não os capitalistas. No entanto, a sua perda de filiados reflecte parcialmente a sua incapacidade para prosseguirem o próprio “sindicalismo negocial” que praticavam até aos anos 1970). Os trabalhadores que continuam a ter empregos regulares, com salários e benefícios decentes, quando fazem greves mantêm-se quase sem excepção nos limites da legalidade e dos estritos “âmbitos de negociação” que garantem a derrota ainda antes de a luta começar.
A pirâmide da dívida de consumo
Nos Estados Unidos, a classe trabalhadora e a “classe média” (um termo ideologicamente marcado, ligado ao quase extinto “sonho americano” de emprego estável, casa própria e boa reforma) compensaram em parte a diminuição dos salários reais após os anos 1970 recorrendo a um aumento das dívidas de consumo. A partir dos anos 1990, isso foi acrescido com a bolha imobiliária, espalhada pelo mito mediático de que “os preços das casas nunca descem” e alimentada, nos anos 2000, pela bolha das sub-primes, quando praticamente toda a gente podia contrair uma hipoteca e comprar uma casa, ou contrair uma segunda hipoteca, e usar esses “activos” imaginários como base para futuros créditos. Grande parte da “recuperação” do estouro da bolha dos “.com” de 2000-2003 esteve relacionada com a construção civil e com as indústrias que dela vivem, como os equipamentos e o mobiliário. Esta acumulação de dívidas de consumo pelos trabalhadores, tanto os de fato-macaco [macacão] como os de colarinho branco, deu-se de par com o crescimento sem precedente da dívida pública (federal, estadual e municipal) e da dívida externa dos EUA (o total líquido dos dólares detidos no estrangeiro, menos os activos dos EUA no estrangeiro), atingindo pelo menos 10 biliões [trilhões] de dólares.
Daí que a presente crise, com o rebentar da bolha do imobiliário em 2007, a que se seguiram os espasmos do sector bancário em 2008, seja apenas o culminar de um longo processo em que desde os anos 1970 se pretendeu ganhar tempo com a pirâmide de dívidas, reflectindo uma subjacente crise do lucro (e, em última análise, do valor, no sentido de Marx) na economia “real”. Mas isso é, no que a este artigo diz respeito, uma outra história.
A dinâmica política
Não se pode ignorar a importância da eleição de Barack Obama em Novembro de 2008 (eleito, muito provavelmente, por causa de a crise ter surgido em Outubro, poucas semanas antes) no clima social geral. Tal como em 1929-1934, a grande maioria da população dos Estados Unidos começou por reagir ao crash com um silêncio estupefacto. Acusado pela “direita” (Partido Republicano, e nestes dois anos o Tea Party [3], facção de direita radical dos republicanos) de ser um “socialista” (ou mesmo de “muçulmano”, quando não de “marxista”), Obama tomou, de facto, medidas políticas à direita do seu antecessor George W. Bush em quase todas as áreas. Mas as reacções a essas medidas ficaram em surdina porque a sua base liberal (no sentido norte-americano do termo) deu ao governo pleno benefício da dúvida. Obama intensificou a “guerra ao terrorismo”, que cada vez mais se vai alargando à oposição interna [4]; aprofundou o envolvimento dos EUA nas suas guerras perdidas do Médio-Oriente (Iraque, Afeganistão) e nos bombardeamentos telecomandados no Paquistão. Da sua “equipa económica” faziam parte conhecidos homens de mão, como Lawrence Summers (que, na qualidade de subsecretário do Tesouro, supervisionou os maus-tratos inflingidos à Coreia do Sul durante a crise asiática de 1997-98), Paul Volcker (que, enquanto presidente da Reserva Federal, administrou a profunda recessão de 1979-1982) e Tim Geithner (ex-presidente da Reserva Federal de Nova Iorque). Esta equipa engendrou gigantescos resgates dos bancos e instituições imobiliárias em colapso, garantindo a 100% biliões [trilhões] de dólares de empréstimos mal parados, ao mesmo tempo que pouco ou nada faziam pela força de trabalho de fato-macaco ou de colarinho branco, para nem falar do número cada vez maior de marginalizados e de sem abrigo.
A reforma orwelliana do sistema de saúde por Obama (também denunciada como “socialista”) foi virtualmente redigida pelas grandes empresas privadas de seguros de saúde, que dominam o retrógrado sistema de saúde dos EUA [5]. Em Dezembro de 2010 Obama ampliou o acesso ao subsídio de desemprego numa “negociação” com o Congresso, que também prorrogou as reduções de impostos para os ricos feitas por Bush, as quais haviam custado ao governo federal 200 mil milhões de dólares por ano em receita perdida desde 2001, enquanto as guerras do Iraque e do Afeganistão já custaram 1,5 biliões [trilhões], se não mais. Com esta administração foram feitas mais deportações de imigrantes ilegais do que em todos os anos de Bush, deportações que atingiram mais duramente os marginalizados latino-americanos que vieram para o país durante o surto imobiliário anterior a 2007 para trabalharem na construção, e que perderam esses empregos quando o sector imobiliário entrou em colapso. Durante a farsa do défice federal dos EUA no Congresso em Junho e Julho, a minoria da direita radical (Tea Party), que tem grande influência na câmara baixa do Congresso, deu cobertura a Obama para guinar ainda mais à direita, preparando uma grande redução dos “direitos sociais” – outro termo ideologicamente conotado, referente aos cuidados de saúde para os pobres e os idosos e ao sistema de Segurança Social dos reformados. Todas essas novas medidas ilustram o papel histórico do Partido Democrático, nomeadamente na aplicação de políticas que, se promovidas pelos republicanos, desencadeariam grandes protestos.
O sistema politico dos EUA tem sido descrito como consistindo em um partido de direita e um partido de extrema-direita; pelo menos desde os anos 1880, os dois partidos dominantes deram lugar a uma rotina do tipo “polícia [policial] mau / polícia bom”. Os 50% mais pobres não votam, e a política oficial converteu-se num teatro de sombras que alimenta a passividade e o cinismo generalizados. Este é um dos contextos que explicam fenómenos estranhos tais como o actual Tea Party; quando as pessoas realmente se mobilizam, os populismos de direita e (de maneira menos evidente agora) de esquerda (a revolta dos “pequenos”) são as primeiras válvulas de segurança do sistema.
Em Novembro de 2010, a indignação populista de direita [6] contra as medidas “socialistas” de Obama (o resgate financeiro dos bancos, a “reforma” da saúde pública, as tentativas irrelevantes e essencialmente simbólicas de regulamentação governamental do sector financeiro) originou enormes ganhos dos republicanos nas duas câmaras do Congresso dos EUA, varrendo a maioria democrática da Câmara de Representantes (baixa) e quase tomando conta do Senado. Grande parte da base de apoio de Obama em 2008, desiludida (ou indignada) com a sua governação quase abertamente a favor dos interesses do grande capital, simplesmente ficou em casa. (Não esqueçamos a raiva, poucas vezes explicitada, da direita populista contra a cor negra da pele de Obama).
A recessão e a resistência silenciada
Desde o Outono de 2008, a taxa oficial de desemprego nos EUA atingiu os 9,1%, estando muito provavelmente perto dos 15%, com números constantemente “revistos”, incluindo uma pessoa que trabalha uma hora em um mês como “empregado” e não incluindo milhões de pessoas que já desistiram de procurar trabalho. Centenas de milhares de pessoas perderam as suas casas depois de perderem os empregos, sobretudo nas zonas que antes estavam em grande expansão, como Central Valley na Califórnia, Las Vegas ou a Florida; milhões de outras pessoas estão a aguentar hipotecas que estão “abaixo da linha de água” (mais elevadas do que o valor real das suas casas). Há listas de casas vazias esperando há anos, e os preços do imobiliário continuam a cair. (No momento em que escrevo – começo de Agosto de 2011 – os mercados bolsistas mundiais estão em queda livre, o que pode desactualizar esses números numa questão de dias).
Fenómeno notável relacionado com o colapso do mercado da habitação é a quase inexistência de resistência colectiva às execuções hipotecárias [7] e aos despejos [8]. Esta é uma grande diferença relativamente ao princípio de 1930, quando na cidade de Nova Iorque (por exemplo) milhares de pessoas se juntaram para proteger vizinhos ameaçados de despejo [9], ou em zonas rurais onde agricultores (muitas vezes armados) tentaram proteger as quintas de serem arrestadas pelos bancos. Um camarada que vive numa das cidades economicamente mais devastadas (Baltimore, Maryland), cujo declínio rivaliza com o de Detroit desde os anos 1970, conta que a grande maioria dos despejados ou arrestados está simplesmente “envergonhada” com a sua situação, esconde-se dos vizinhos, e vai-se embora de noite sem dar nas vistas.
Notas
[1] O aumento da população prisional desde 1970 quase coincide exactamente com o número de empregos perdidos na indústria no mesmo período. Os EUA têm 25% da população prisional mundial.
[2] Uma percentagem significativa dos membros dos sindicatos públicos é constituída por polícias [policiais] e guardas prisionais, inimigos da classe trabalhadora.
[3] O Tea Party [trocadilho entre “chá das cinco” e “partido do chá”, em referência às lutas pela independência dos Estados Unidos] emergiu em 2009 como tendência de direita do Partido Republicano, exprimindo melhor do que qualquer outro grupo político a cólera populista de direita que tem estado presente, ora mais ora menos, na paisagem política estadunidense desde o fim dos anos 1970. Na Europa não há algo que se assemelhe à ideologia do Tea Party, que eu saiba. Ele representa uma “demografia em retrocesso” de gente mais velha, branca, de classe “média” e “média-alta” que crê que os problemas dos EUA podem ser resolvidos por um orçamento rigorosamente equilibrado a todos os níveis de governo, com um “Estado mínimo” que supervisiona um “mercado livre” totalmente à solta. Uma tal economia nunca existiu, mesmo na era anterior a 1914, quando o Estado representava uma parte muito mais pequena do “PIB” mas ainda assim tinha um papel central na política aduaneira, na expulsão dos índios para a expansão da economia esclavagista dos estados do sul, na confiscação de terras para caminhos [estradas] de ferro e canais. O verdadeiro conteúdo desta miragem do Tea Party seria naturalmente um grande reforço da repressão do Estado e a sustentação militar do império (em declínio) dos EUA, de par com a eliminação de todas as dimensões “sociais” do Estado ainda existentes, dimensões essas que a direita radical estadunidense associa ao New Deal “socialista” dos anos 1930 e à “Grande Sociedade” de Lyndon Johnson nos anos 1960. A sua base esmagadoramente branca indica um programa racista, inconfessado mas bem real, de gente assustada pelas tendências demográficas que apontam para uma minoria de população branca cerca de 2050 e por um presidente negro. A verdadeira função do Tea Party na política dos EUA é permitir ao “centro” (Obama et al.) deslocar-se mais para a direita, deixando que o “centro” apareça como uma alternativa sensata e saudável aos “fundamentalistas do mercado”.
[4] Em Setembro de 2010, membros da organização Caminho da Liberdade (Marxista-Leninista) que estiveram activos no movimento antiguerra estadunidense, foram alvo de uma rusga do FBI em várias cidades, e grande parte do seu equipamento electrónico foi apreendido. Estão acusados de estarem em contacto com organizações “terroristas” como as FARC (Colômbia), a FPLP (Palestina) e o Hezbollah (Líbano). Existe agora a possibilidade de que escrever um artigo favorável a uma destas “organizações terroristas estrangeiras” constitua “apoio ao terrorismo” nos termos da Lei de Segurança Interna dos EUA.
[5] A partir de 2014, qualquer dos 50 milhões de pessoas actualmente sem seguro de saúde estará sujeita a uma multa pesada se não se inscrever numa seguradora privada de saúde; actualmente os prémios por indivíduo são da ordem dos 500 dólares por mês; para uma família, mais de 1.000 dólares por mês.
[6] Uma explicação cabal do papel do “populismo”, tanto de direita como de esquerda, na política estadunidense está muito para além do escopo deste artigo. Todavia é importante notar que uma convicção quase universal de que a crise foi “provocada” por alguma elite, sejam banqueiros sejam reguladores governamentais, submerge qualquer análise séria de “crise do valor” subjacente, da qual os bancos, o crédito ao consumo, as bolhas imobiliárias e as regulamentações dos governos são meros epifenómenos.
[7] A execução judicial de um banco ou de uma instituição de crédito quando o dono de uma casa cessa os pagamentos da hipoteca.
[8] O despejo ocorre quando um proprietário em falta ou um inquilino que não paga o aluguer é posto fora de casa pela polícia.
[9] Acerca do começo dos anos 1930, ver este interessante artigo. Para um relato de resistências deste tipo ocorridas desde 2007, ver o artigo de Henri Simon em Insurgent Notes, nº 1 (http://insurgentnotes.com/).
[Fim da 1ª das 3 partes do artigo]