Às pessoas ricas é preciso mentir sempre e dizer que sim. (…) Fala baixinho e mente, filho, mentir não custa nada. Por Raúl Brandão
“Últimos conselhos de uma mãe a seu filho. – Filho, fui eu que te criei. Sustentei-te de restos, de pobreza, de humildade. Só pensei em ti: tens, portanto, obrigação de ouvir os últimos conselhos que te dou. Olha que és o meu filho, o filho que criei de dia, de noite, de fome, de obediência e de sonho amargo. Criei-te para que pudesses um dia pertencer à classes elevadas. Por isso sofri, para isso sonhei, para isso desapareço agora que cumpri o meu destino.
“Filho: mente. Às pessoas ricas é preciso mentir sempre e dizer que sim. Deve-se-lhes consideração, deve-se-lhes obediência. Nunca te ligues com os pobres. Para pobres bastamos nós. A pobreza pega-se, não há nada no mundo pior que a pobreza. Tem cuidado com a língua. Pela boca morre o peixe. Nunca digas o que sentes: o que a gente sente é sempre uma inconveniência. Há pessoas que dizem: – Eu gosto que me contradigam. – Foge delas como o Diabo da cruz. O que toda a gente quer é que os outros sejam da sua opinião. Só os ricos têm direito de contradizer os pobres. Um pobre não deve ter opinião. Guarda as conveniências, acima de tudo guarda as conveniências.
“O mundo antigo tinha muito de bom; sabendo-se ser agradável arranjava-se lá um cantinho. A morte é indispensável para as pessoas herdarem, e para nos dias de luto se desanojarem os ricos. Foge do pecado. Sê religioso e temente a Deus. Nunca digas mal de ninguém. E habitua-te filho, habitua-te que é o grande segredo da vida. Habitua-te a cumprir os teus deveres para com a sociedade. O dever acima de tudo, o dever de te subordinares para que não te queiram mal. Não te esqueças também dos pequenos deveres de cortesia. Não te esqueças de que no dia 21 de Julho faz anos o teu padrinho, nem de deixares cartões de visita às pessoas respeitáveis. Há as que fingem que não reparam nessas coisas. São as piores, são as que reparam mais. Respeita. Respeita a lei, os superiores, a Igreja, os ricos.
“Num caso grave da vida chega-te ao pé do conselheiro Pimenta e diz-lhe com humildade: – Eu sou da Restituta que era prima de V.Exa. – E mais nada. Não sejas causa de desordem nem de escândalo. Fala baixinho e mente, filho, mentir não custa nada. Nunca digas a verdade que pode vir a saber-se. Deus nos livre da verdade. Mente para seres agradável aos outros e a ti mesmo. E sobretudo, repito-te, diz sempre que sim. Não custa nada dizer que sim, dizer a tudo que sim. Não custa nada dizer que sim, dizer a tudo que sim.”
in Húmus, Raúl Brandão, pp. 130-131, Lisboa, Ed. Vega
Raúl Brandão foi um escritor e jornalista português, nascido no Porto em 1867 e falecido em Lisboa em 1930. Do site do Instituto Camões: “É o grande modernista português na prosa de ficção, integrando uma dimensão simbolista de tentativa de transposição de uma realidade aparente e deceptiva para obter uma transcendência ou absoluto que a escrita tacteantemente formula. Ficcionista de personagens patéticas e grotescas na incapacidade de delinearem o seu sonho ou infames no modo de o trair (A Farsa, 1903, Os Pobres, 1906), é no romance Húmus, 1917, que melhor explora a dimensão larvar da pequenez humana, encenando a tragédia da luta da «vila» pelo seu «sonho», e utilizando processos de desconjuntamento do tempo narrativo que antecipam o trabalho discursivo da ficção de hoje. Na mesma linha compôs várias peças de teatro”, sendo a mais conhecida O Gebo e a Sombra.
Os quadros não são de Edvard Munch?
Caro João,
De fato a ilustração em destaque e a última no interior do texto são de Edvard Munch. A primeira chama-se Ao leito de morte e a segunda A mãe morta.
Porém a primeira no corpo do texto é de Vicent Van Gogh, cujo título é Mulher em seu leito de morte.
Cordialmente,
Coletivo Passa Palavra