“Estamos todos no mesmo barco”, mas nesse barco há várias classes e, dependendo da classe, a disponibilidade de botes e coletes salva-vidas é muito diferente. Por Marcelo Lopes de Souza [*]

Palavras iniciais

bosch-5Nestes dias, quando multidões de jovens (e uns tantos não tão jovens) ocupam crítica e criativamente praças em centenas de cidades pelo mundo afora, acampando e protestando, expressando desejos e demandas, dando vazão a frustrações e forma a sonhos e esperanças, o pensamento conservador não poderia deixar de se manifestar. De acordo com o grau de conservadorismo (e obscurantismo) do observador, têm sido frequentes, na grande imprensa, manifestações que vão do repúdio horrorizado ao sentimento de superioridade temperado por uma certa condescendência, passando pelo desprezo, pela chacota e pela ironia. “As palavras de ordem parecem novas, mas são velhas”; “por que não fazem algo mais útil, como estudar ou trabalhar?”; “as críticas e demandas são vagas”; “eles não sabem onde querem chegar” – eis alguns dos comentários que a mídia tem trazido.

Desqualificar os protestos que se têm multiplicado pelos espaços públicos parece fácil – desqualificação essa, aliás, que costuma ser a antessala da criminalização e da repressão. Não importa que os protestos sejam, em geral, pacíficos; não importa que os espaços públicos ocupados sejam tornados, com isso e graças a isso, verdadeiramente mais públicos, em sentido genuíno, ainda que apenas efemeramente; não importa que aqueles que protestam estejam fazendo alusão a problemas que, em grande parte, afetam a esmagadora maioria da população de nossos países e nossas cidades. No fundo, o medo do novo se sobrepõe e ameaça esmagar a crítica do velho.

Entretanto, é válido, pelo menos, desafiar os argumentos conservadores – isto é, dos argumentos que, direta ou indiretamente, visam a conservar o capitalismo e seu Estado – e duvidar de sua superioridade. Desenvolverei meus contra-argumentos em um plano muito abrangente, e sem qualquer pretensão de originalidade. Meu propósito é, tão somente, colaborar para mostrar que certos limites lógicos essenciais do pensamento conservador podem ser desnudados em termos muito simples e inteligíveis por todos.

No início do Capítulo I de seu livro Introdução à Filosofia Matemática, o grande lógico e matemático Bertrand Russell ponderava que o estudo da Matemática poderia ser empreendido em duas direções: “[a] mais comum é construtiva, no sentido da complexidade gradativamente crescente”; “[b] outra direção, que é menos familiar, avança pela análise, para a abstração e a simplicidade lógica sempre maiores”. [1] Ainda que o assunto destas páginas nada tenha a ver, diretamente, com a Matemática, pode, no entanto, ser empregado um raciocínio similar para apresentar o objetivo deste texto: proceder a um exercício de lógica, para testar e expor algumas falácias correntes, reiteradamente utilizadas para depreciar o pensamento crítico/radical e justificar as posições conservadoras. Isso, acredito, é algo que pode ter a sua utilidade. E, para tornar menos árida a discussão, empregarei uma metáfora: o navio.

“Estamos todos no mesmo barco”. OK. Mas… em qual classe você está?

bosch-1O mainstream do pensamento ecológico contemporâneo, que desde os anos 80 gira em torno do slogan do “desenvolvimento sustentável”, tem sido o grande responsável pela popularização da ideia de que “estamos todos no mesmo barco”. Ainda que fazendo uso muito diferente daquele que o mainstream ambientalista costuma fazer, creio, também eu, que essa metáfora possui algumas virtudes e potencialidades relevantes.

Entre os ambientalistas reformistas (isto é, que criticam alguns efeitos do capitalismo, mas não os seus fundamentos) [2] tem sido muito comum a alusão ao fato de que vivemos todos em um mesmo planeta, finito e que vem sendo ecologicamente degradado. Em outras palavras: “estamos todos no mesmo barco”, razão pela qual deveria haver mais “solidariedade”, “compreensão” e “sensatez”. O que os ambientalistas muitas vezes não enxergam (ou olham sem realmente ver) é que, nesse barco, ou navio, há várias classes: uma primeira (as elites, em sentido mais específico), uma segunda (as “classes médias”) e uma terceira (dependendo do tipo de país, um percentual importante ou mesmo a maioria da população). Nem mesmo os conservadores costumam negar que, em nossa embarcação, existam classes diferentes. Muitas vezes, nem mesmo negam que, dependendo da classe, a disponibilidade de botes e coletes salva-vidas seja muito diferente. O que eles fazem é:

1) Negar que essa disponibilidade diferencial de botes e coletes salva-vidas tenha algo a ver com injustiça social. De seu ponto de vista, quem está em uma classe, ali se encontra porque “fez por merecer”, ou porque foi favorecido ou desfavorecido pelo destino (herança material, ancestralidade, carga genética etc.) – e qual seria, perguntam eles, o sentido de questionar o destino, considerando que foi a vontade de Deus ou uma imposição do acaso ou da natureza?

2) Negar que essa disponibilidade diferencial seja algo necessariamente ruim. Afinal, o fato de desejar mais conforto e buscar ascender a uma classe superior seria um estímulo para a evolução individual e, no agregado, um fator de evolução social (ainda que, como eles sabem e como os sempre bem intencionados ambientalistas geralmente salientam, não seria possível, inclusive por razões ecológicas, que todos possam ocupar cabines de primeira classe, uma vez que no barco não há comida, bebida, lugares na piscina e, claro, botes ou coletes salva-vidas para todos).

Assim, ao mesmo tempo em que se duvida da pertinência de se questionar a existência de classes com acessibilidade tão assimétrica a recursos de todo tipo, justifica-se a existência e a perpetuação das assimetrias. Antigamente, essa justificativa se dava com base em argumentos sobretudo religiosos e metafísicos; atualmente, como já indiquei, alguns argumentos ecológicos vêm dar um colorido mais “objetivo” e até “científico” e “respeitável” à legitimação das desigualdades e, no limite, da existência do próprio navio. Sim, porque o funcionamento dessa embarcação é impensável, concretamente, sem a existência das três classes: são os passageiros da terceira classe que, supostamente para pagar sua própria passagem, trabalham – na sala de máquinas, na cozinha etc. – para os demais passageiros. (Os da segunda classe desempenham tarefas mais bem remuneradas, como oficiais na ponte de comando, preparando coquetéis no bar, tocando piano, supervisionando a manutenção das máquinas, e por aí vai. Como raramente sujam as mãos e ganham mais, se acham muito superiores aos da terceira classe, e sonham em ser convidados para sentar à mesa de algum grã-fino da primeira classe.)

“Abandonar o navio é loucura”. Será?

bosch-8Até mesmo os conservadores mais empedernidos vêm admitindo que a embarcação está fazendo água. De sua parte, os ambientalistas reformistas bradam que eles, acima de tudo, têm alertado sobre isso (“construtivamente”, é claro).

Os conservadores mais empedernidos ainda costumam apelar para argumentos e explicações morais de feitio antiquado: decadência dos costumes, dissolução da família e dos valores religiosos… Há quem só consiga ver nos protestos contemporâneos, aliás, nada mais que o velho espectro do “comunismo”, sempre rondando a tripulação e os passageiros de nossa embarcação. A receita para enfrentar os problemas é, muito frequentemente, um aumento da repressão – se não exclusivamente, ao menos como parte fundamental das medidas a serem tomadas para manter o barco no seu curso “normal” e em plenas condições de funcionamento.

Quanto aos ambientalistas reformistas e outros social-reformistas ou “social-liberais”, eles se valem de um misto de explicações morais (“corrupção”, “egoísmo”, “ganância”) e ecológicas (“degradação ambiental desenfreada”). Daí decorre, como receituário, uma combinação de apelos também morais por “responsabilidade ecológica” e “responsabilidade social”, além de recomendações tais como “redução do protecionismo econômico”, “aumento das ajudas para o desenvolvimento”, e outras que tais.

O que todos eles – conservadores de figurino mais antigo, ambientalistas reformistas e congêneres – têm em comum pode ser assim sintetizado:

bosch-71) A negação de que a situação precária do navio tenha a ver, no fundo, com a própria estrutura da embarcação. Projetada de uma tal maneira que, em mares revoltos, rachaduras enormes proliferam, fazendo entrar água que, invariavelmente, os defeitos do navio vitimam sobretudo os integrantes da terceira classe, e um pouco menos aqueles da segunda, ao passo que os da primeira quase sempre estão a salvo, graças à localização de suas cabines. A distribuição de benefícios e riscos (ou custos, mais geralmente) é, portanto, inversamente proporcional: quem aufere os maiores benefícios, desfrutando daquilo que de melhor o navio tem a oferecer em matéria de conforto e entretenimento, corre os menores riscos; já quem menos tem responsabilidade na condução (e muito menos no projeto) do navio, e quem menos usufrui das comodidades a bordo, corre os maiores riscos e arca com os maiores custos quando há tormentas. E isso o pensamento conservador não aceita ou reluta em reconhecer.

2) Que seja razoável pensar em abandonar o navio. Afinal, o navio pode ter problemas, mas, assim argumentam, “é o único que temos”. (“Ademais”, apressam-se a complementar, “lembram-se daquela vez, no século passado, quando uns tantos trocaram o nosso barco por outro, o que foi que aconteceu? O novo barco deles acabou naufragando, e terminaram buscando abrigo no nosso”.) Para os conservadores, pode fazer sentido, eventualmente, ou de tempos em tempos, trocar parte da tripulação, além de submeter os membros da tripulação a cursos de reciclagem e processos de seleção meritocrática; o que não faz sentido algum, do seu ponto de vista, é questionar o próprio navio e sua estrutura, e tampouco colocar em questão a existência de diferentes classes e de uma tripulação bem treinada que, com sua perícia, é a única capaz de conduzir navio tão complexo a um porto seguro.

bosch-12Como os conservadores reagem diante daqueles que, diante de indícios ou mesmo evidências de que a estrutura do navio é intrinsecamente defeituosa, de que não há justificativa moral para as diferenças entre as classes e de que a embarcação, provavelmente, ficará à deriva e irá a pique mais cedo ou mais tarde, com apenas uma pequena parte dos passageiros (adivinhem de qual classe, principalmente…) se salvando? Eles argumentam que a hipótese de alguma embarcação alternativa, ou ilha que possa servir de refúgio, é utópica, no sentido de fantasiosa, irrealista. Como que valendo-se daquele tipo de pensamento hegeliano segundo o qual “o que é real é racional”, eles perguntam: “este navio, afinal de contas, existe; o barco de que vocês falam, diferentemente, é, no máximo, uma possibilidade, e provavelmente nem isso. O que haveria de bom senso em trocar o certo pelo duvidoso, especialmente considerando as experiências dolorosas do passado? Além disso, se o nosso navio já existe há mais de duzentos anos, ele já demonstrou que é capaz de resistir a muitas tempestades. Portanto, também resistirá a esta.”

Ora: dizer que este navio existe equivale a cometer um truísmo, uma obviedade; e, a partir daí, inferir que, já que ele existe há mais de dois séculos, ele tem uma boa capacidade de resistência, isso corresponde, adicionalmente, a incorrer em uma tautologia, ou seja, em uma redundância (é como dizer que o navio tem resistido às tempestades porque possui uma significativa capacidade de resistência). Ocorre que não se trata, em absoluto, de questionar que, apesar de seus problemas estruturais, a nossa embarcação possua a capacidade de resistir a muitas tempestades – e, mais do que isso, a capacidade de seduzir, com sua imponência, seus confortos e sua ilusão de eficiência, os integrantes da segunda classe e mesmo muitos da terceira. O que se critica é o fato de que, a cada tempestade, muitos passageiros (adivinhem de qual classe, principalmente…) padecem e perecem; e o que se adverte, além do mais, é para a probabilidade de que a embarcação, já deteriorada, acabe em algum momento indo de fato a pique, arrastando para a morte um número ainda maior de passageiros (adivinhem de qual classe, principalmente…) e deixando em seu lugar um monte de destroços, nos quais aqueles passageiros (adivinhem de qual classe, principalmente…) que não tenham colete e nem estejam em algum bote salva-vidas tentarão se agarrar, desesperados.

Será que a recusa em admitir que possa existir uma alternativa é mais realista que a constatação dos problemas e a presunção de fragilidades estruturais de um navio em que a água já entra por todos os lados, cada vez mais afetando as cabines da própria segunda classe?

Palavras de arremate

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Em um tal tipo de debate, em última instância, não basta apenas esgrimir com dados e informações, assim como também não é suficiente duelar em um plano teórico: afinal, estão em jogo valores (e visões de mundo). Muitas vezes esses valores (e essas visões de mundo) revestem interesses, e não é tão difícil assim demonstrar as conexões entre uns e outros. De toda maneira, não será cada detalhe da argumentação conservadora que poderá ser refutado “rigorosamente”, com precisão “matemática”. Nos terrenos político e ético, cabe recordar a sabedoria de Aristóteles na Ética a Nicômacos, que nos lembrava que “os homens instruídos se caracterizam por buscar a precisão em cada classe de coisas somente até onde a natureza do assunto permite, da mesma forma que é insensato aceitar raciocínios apenas prováveis de um matemático e exigir de um orador demonstrações rigorosas”. [3] Mesmo assim, socorrer-se de dados e informações é necessário, do mesmo modo que refletir teoricamente (isto é, em torno do que é geral e do que é específico, fazendo comparações e estabelecendo paralelos) é imprescindível. Apesar disso, e de toda maneira, ainda há lugar para simples exercícios de lógica, como o que apresentei aqui. Sem a pretensão de ser “cientificamente rigoroso”, o que desejei foi, como anunciado na seção introdutória do texto, desnudar, de uma forma simples, breve e direta, a impertinência conservadora que consiste em tratar como irracionais as críticas anticonservadoras.

Até onde a vista alcança, não há demonstração rigorosa alguma sobre a inexistência de alternativas razoáveis ao navio no qual, de fato, nos encontramos todos, ainda que em distintas classes e submetidos a riscos muito variáveis. Nossa embarcação não existe desde o começo dos tempos; ela possui uma historicidade. Antes dela existiram outras, e paralelamente a ela houve também outras, de existência menos ou mais efêmera, menos ou mais duradoura. Onde reside a prova irrefutável de que este navio é tão menos imperfeito que todos os outros barcos possíveis, a ponto de quase se presumir, na prática, que ele haverá de ser eterno?… Como se vê, a recusa peremptória em se conceder, pelo menos, um quinhão de racionalidade e mesmo de realismo ao debate sobre alternativas se assenta, ela mesma, em um solo de quase religiosa, mais do que de lógica ou de ciência. Que não se venha, por conseguinte, acusar de inútil, tola ou ingênua a reflexão em torno de um outro mundo que, por enquanto, ainda não se demonstrou ser impossível.

Notas

[*] Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

[1] Bertrand Russell, Introdução à Filosofia Matemática. Rio de Janeiro, Zahar, 1974 (primeira edição em inglês: 1919), pág. 9.

[2] Estou convencido de que a maior parte do que atualmente se chama, de modo bastante impreciso, de “movimento ambientalista”, não vai além desse reformismo desfibrado, que não raro mal chega a clamar por reformas amplas e de largo alcance, como uma reforma agrária e uma reforma urbana. Em não poucos casos, aliás, o que se tem nem sequer é reformismo de espécie alguma, em sentido progressista, mas sim preconceitos (inclusive racistas) e, no limite, “ecofascismo”, como evidenciado por certos representantes da “ecologia profunda” (deep ecology), em especial nos Estados Unidos. Todavia, seria injusto reduzir toda e qualquer preocupação, toda e qualquer reflexão e todo e qualquer ativismo que diga respeito à proteção ambiental a essas manifestações puramente reformistas ou, pior ainda, francamente reacionárias. O exemplo de Murray Bookchin e de alguns outros demonstra que é possível ser anticapitalista, humanista (e, no caso de Bookchin, libertário ainda por cima) e, ao mesmo tempo, dedicar-se profunda e sistematicamente a meditar sobre a problemática ambiental – até mesmo para mostrar o caráter antiecológico do capitalismo. Consulte-se, sobre a perspectiva que Bookchin denominava de “ecologia social” (social ecology), por exemplo, seu livro Post-Scarcity Anarchism (Edimburgo e Oakland, AK Press, 2004 [1969], 3.ª ed.), em especial os textos “Ecology and Revolutionary Thought”, “Towards a Liberatory Technology”, “The Forms of Freedom” e “Listen, Marxist!”; vide, também, seus livros The Ecology of Freedom: The Emergence and Dissolution of Hierarchy (Oakland e Edimburgo, AK Press, 2005 [1982]) e Social Ecology and Communalism (Oakland e Edimburgo, AK Press, (2007 [2002]). Também os livros que Bookchin dedicou à crítica da urbanização capitalista são indispensáveis, mormente The Limits of the City. (Nova Iorque e outros lugares, Harper Colophon Books, 1974) e From Urbanization to Cities: Toward a New Politics of Citizenship (Londres, Cassel, 1995). Vale a pena, por fim, acompanhar passo a passo o debate entre Bookchin e Dave Foreman, representante da “ecologia profunda”, que consta do livro Defending the Earth: A Debate Between Murray Bookchin and Dave Foreman (Montreal e Nova Iorque, Black Rose Books, (1991 [1989-1990]).

[3] Aristóteles, Ética a Nicômacos. Brasília, Editora da UnB, 1985, pág. 18 (1094b).

Ilustrações: de Hieronymus Bosch, A Nave dos Loucos e detalhes de O Jardim das Delícias Terrenas e de A Tentação de Santo António.

16 COMENTÁRIOS

  1. Se isto fosse uma matéria introdutória de algum projeto pedagógico de esclarecimento das massas, somente um percentual – reduzido, suspeito – da turma concluiria o curso.
    O restante teria abandonado o curso para se articular em alguma luta e tentar aproveitar o pouco tempo de vida que lhes resta.

  2. Adorei a metáfora do navio. Não por acaso um dos filmes de conteúdo mais revolucionário (na forma e no conteúdo)de todos os tempos seja o Encouraçado Potemkim! Vou me permitir acrescentar alguns elementos à metáfora e às diversas argumentações.

    Um velho argumento dos conservadores empedernidos é a superlotação do navio, que ameaçaria levá-lo à pique. O Malthusianismo segue sendo a ideologia demográfica dominante, e não por acaso um artigo do Le Monde perguntava, ainda ontem, com grande preocupação, o que será do nosso navio daqui a 20 anos, quando a sua tripulação provavelmente atingirá os 8 bilhões.

    Os ambientalistas e socialistas passadistas, por sua vez, sustentam que o problema do navio está na sala de máquinas, queimando óleo e carvão, de modo a intoxicar toda a tripulação. Recomendam que se quebrem as turbinas e caldeiras e que todos, das classes A à C, desçam às galés para remar. Seremos, assim, todos, escravos do navio. A este respeito, é preciso romper com a oposição binária progresso técnico vs primitivismo. Afinal, nossa embarcação pode seguir eficientemente seu rumo sem que ninguém reme 12 horas por dia, e sem precisar queimar óleo, não é verdade? O produtivismo desenfreado e ambientalmente predatório não é a única contrapartida à estagnação produtiva, mas tão somente o modo produtivo coerente à hegemonia da mercadoria (no capitalismo “de mercado” ou “de Estado”).

    Ora, no meu entendimento, o navio alternativo é real porque já existe, em parte, dentro do Titanic capitalista. Os bucaneiros estão lá dentro, sem hierarquia nem chefe e desenvolvendo sistemas de navegação livres, sem os quais, provavelmente, o navio já teria arrebentado o casco num iceberg. Trata-se de generalizar a ideia da superioridade destes sistemas e arranjos colaborativos “bucaneiros” sobre a pesada e lenta hierarquia da nossa atual Marinha Mercante.

  3. Caro Gustavo: não presuma a ignorância das massas a partir da sua própria. Quem tem algum contato com as lutas de massa sabe a energia que eles dispendem para se (auto)formarem, pois eles sabem que isso é uma das maneiras mais eficientes de ocupar o pouco tempo de vida que lhes resta depois da lida diária, onde empreendem suas lutas quotidianas.

  4. Não tenho problema nenhum em reconhecer a minha própria ignorância, e em nenhum momento presumi a de outros, principalmente a das massas.
    Acho mais fácil supô-la num acadêmico do que nas massas.
    E é exatamente por isso que rejeitei o uso de exercícios lógicos abstratos como possível meio de formação.
    A desigualdade não se explica racionalmente.

  5. Nossa!!! Eis uma pérola: “A desigualdade não se explica racionalmente”! E explica-se como? Culpando a Deus, como fazem os conservadores religiosos? Os judeus, como fizeram os nacional-socialistas alemães? Atribuindo-a à cupidez dos ricos? Meu caro, eu não sou marxista, embora leia Marx. Permita-me, então, a citação de um trecho de “Salário, preço e lucro”, do velho barbudo: “A vontade do capitalista é certamente de ficar com o mais possível. O que temos de fazer não é falar acerca da sua vontade, mas de inquirir do seu poder, dos limites desse poder e do caráter desses limites.”

    Nos cursos de formação política do MST, pré-vestibulares comunitários, ocupações de sem-teto e outros espaços de trabalho de base, o que encontro são trabalhadores ávidos por conhecimento teórico, logo racional. Não que ele dê conta de elucidar toda a realidade, e que a indignação perante as desigualdades não seja o motor para combatê-las. Mas daí a presumir que elas não se explicam racionalmente é de um populismo obscurantista atroz. Quando a emoção quis EXPLICAR as desigualdades, o resultado foi o fascismo e o estalinismo.

  6. Eduardo: esse desdobramento da metáfora, empreendido por você, é, a meu ver, muito pertinente. De fato, aí estão (estamos) os piratas, volta e meia dando bastante trabalho! (Aliás, acabo de me lembrar que foi criado, na Alemanha, um “Piratenpartei” – “Partido dos Piratas” -, que ganhou várias cadeiras nas últimas eleições, creio que em Berlin. É uma pena, porém, que se trate de um ajuntamento bastante amorfo de interesses, cujo principal denominador comum é a insatisfação com os partidos já estabelecidos, de “esquerda”, “centro” ou “direita”. Além do mais, quanto a ser um partido o melhor veículo para expressar e mobilizar descontentamentos, disso duvido muitíssimo. Vale a pena, inclusive, lembrar a esses “Piratas” que, pouco mais de trinta anos atrás, um outro partido era criado lá mesmo, com o mesmo discurso de ser um “partido antipartido”: Die Grünen, o partido Verde. O mesmo que, com o passar dos anos, foi-se tornando mais e mais um sólido bastião da ordem estabelecida. Enfim: verdadeiros piratas consideram a forma-partido antes uma parte do problema que da solução…)

  7. Temos neste naufrágio colectivo os conservadores empedernidos e os intelectuias de esquerda esclarecidos. Os conservadores são metaforicamente os ratos e os intelectuais esclarecidos de “esquerda” os comandantes do navio.
    Os intelectuias de esquerda sabem tudo e são muito expeditos na sua análise científica, os conservadores, membros da classe dominante, os empedernidos que não sabem nada.
    O navio afunda-se, os intelectuias que não pertencem à classe dominante, (geralmente oriundos da pequena burguesia rafeira e arrogante) afundam-se também na voragem do mar revolto.
    Enfim, este é o grande espectáculo, o maior circo do mundo que a pequena burguesia criou a partir da 2ª metade do séc. XX.
    Os trabalhadores arrastados por esta ignomínia social destes académicos ociosos e inúteis terão o seu infortúnio desmesurado nas águas profundas do oceano em fúria.

  8. Caro Eduardo, de fato a minha frase foi péssima, especialmente porque dá margem, senão mesmo se presta unicamente, à interpretação que você deu, à naturalização das condições existentes, “as coisas são assim porque sempre foram e sempre serão”. Acabou ficando como mais um exemplo, vá lá, “uma pérola” para o que o autor diz no item 1.

    O que na verdade tento, com dificuldade, apontar, é que os “limites lógicos essenciais do pensamento conservador” podem ser, na verdade, limites lógicos do próprio pensamento racional, como você mesmo reconhece, e que, portanto, não seriam prerrogativa apenas do pensamento conservador, mas de qualquer pensamento racional.

    Daí eu continuar não vendo muito sentido na tentativa de recorrer ao pensamento lógico racional, a Aristóteles, a Russel, para denunciar os limites do pensamento conservador (que pensamento? que limites?), já que eles forçosamente também apontarão limites do pensamento progressista ou qualquer outra linha de pensamento que se queira defender.

    É claro que a desigualdade é explicada por razões históricas, mas isto não me parece ter muito a ver com a razão lógica, com Russel, a ponto de gerar um artigo.

    A História, me parece, não é feita pela Razão, mas por lutas (entre razões, que não serão desmontadas pela Razão, mas por lutas)

    Afinal, me parece que o autor está preocupado em tornar algo inteligível, como ele mesmo diz no texto, portanto, em pensar, de alguma forma, a respeito da formação (e não é este um dos principais objetivos do Passa Palavra, a começar pelo próprio nome?)

    Fico com a impressão que remeter a um lugar de pureza racional e lógica é um caminho que recalca e se distancia da realidade, mesmo quando revestida das melhores intenções, e que acaba por ser um substituto do mesmo calibre da religião.

    Mas, se está funcionando enquanto método de formação – e isso vocês é que têm que dizer – então me calo.

    Mas por alguns artigos anteriores, parece que há uma certa crise nesse processo de formação, gerando um certo desânimo.

  9. A desfaçatez de certos comentadores chega a níveis estratosféricos, como é o caso deste afonsomanuelgonçalves. Presumem a ociosidade de pessoas as quais nunca tiveram contato ou cuja biografia nunca procuraram conhecer para se inteirarem de suas trajetórias ou saber das suas vinculações ou não com as lutas. De todo modo, seria o fim da picada se agora fosse necessário acrescentarem-se notas biográficas dos autores de um site eminentemente político, como se as ideias contidas nos textos precisassem de uma chancela de autoridade para serem pertinentes ou equivocadas. O argumento da autoridade se impõe à autoridade do argumento às mentes débeis.

    Parece-me pertinente reproduzir aqui a citação de Schiller, que se encontra atualmente na seção “Citando…” deste Passa Palavra, lá no alto, à direita: “Contra a estupidez, os próprios deuses lutam em vão.”

  10. ou então Brecht

    “Há homens que lutam um dia, e são bons;
    Há outros que lutam um ano, e são melhores;
    Há aqueles que lutam muitos anos, e são muito bons;
    Porém há os que lutam toda a vida
    Estes são os imprescindíveis “

  11. Caro Gustavo: estamos de acordo que a nossa luta é, entre outras coisas, para instaurar instituições as mais democráticas possíveis, como conselhos de trabalhadores, conselhos de bairro, confederações etc. etc.? Caso sim, estamos igualmente de acordo que o domínio da democracia é o da disputa racional de ideias, do domínio do lógico, mesmo que a emoção esteja sempre presente em um proferimento discursivo? Se estamos de acordo, então reflita a respeito disto: as ideias são formuladas invariavelmente por proposições linguisticas, dotadas de elementos que podem se contradizer, serem falaciosos, faltarem com precisão ou extrapolarem o grau de precisão de uma determinada matéria, não é verdade? Quando alguém diz: “O Bolsa família torna os trabalhadores uns vagabundos”, então podemos, por meio de uma averiguação empírica, constatar ou não isso, e, caso o refutemos, diremos que esta proposição é falsa. Não porque ela nos deixa apenas indignados, mas porque ela é, em termos racionais, falsa. Pois bem, isso remete à lógica, e isto não é uma abstração vazia, mas está inextricavelmente ligado ao domínio da ética e da política. Aristóteles pensou sobre isso, Marx leu muito Aristóteles, Rosa Luxemburgo leu a ambos, Gramsci leu todos eles, e por isso todos escreveram coisas que são até hoje pertinentes ao domínio da ação política, concordemos ou não – o que deveria remeter a discussões racionais.

    A propósito, mesmo as explicações históricas às quais você faz alusão necessitam de consistência lógica, abstrações e debates epistemológicos. Veja, por exemplo, as diferenças entre estruturalistas e historicistas (um Althusser e um Lukács), ambos materialistas históricos…

  12. Ainda continuo achando que não precisamos de Aristóteles ou Russel para fazer uma “avaliação empírica” e constatar a “falsidade” da “proposição”.

  13. Caro Eduardo Tomazine, as considerações que faço sobre o actual estado da esquerda intelectual são genéricas e não atingem ninguém em particular, até porque como diz muito bem eu não conheço pesssoalmente alguém a que possa dirigir esta crítica nesses termos. Se ela peca por desfaçatez e está carecida de inteligência é um problema que me ultrapassa e que eu saiba ainda não tem remédio.
    Ora, o que eu viso é uma perspectiva analítica do que foi a 2ª metade do séc XX e os resultados que a generalidade do esforço intelectual realizado pela esquerda alcançou e se a análise não corresponde aos factos só tenho que reconhecer que estou enganado e corrigir a reflexão; mais nada.

  14. Olá,

    Cito o trecho final, para depois propor um breve exercício para o Marcelo e todos nós que estamos acompanhando e participando desse debate aqui no Passa Palavra:

    “Como se vê, a recusa peremptória em se conceder, pelo menos, um quinhão de racionalidade e mesmo de realismo ao debate sobre alternativas se assenta, ela mesma, em um solo de fé quase religiosa, mais do que de lógica ou de ciência. Que não se venha, por conseguinte, acusar de inútil, tola ou ingênua a reflexão em torno de um outro mundo que, por enquanto, ainda não se demonstrou ser impossível”.

    Concordo com as questões apresentadas no texto e todos os argumentos desenvolvidos pelo Marcelo. Cabe dizer, com efeito, que o comentário de Eduardo Tomazine nos aponta um caminho interessante para seguirmos esse debate e continuarmos utilizando essa bela metáfora (de forte conteúdo pedagógico):

    “Ora, no meu entendimento, o navio alternativo é real porque já existe, em parte, dentro do Titanic capitalista. Os bucaneiros estão lá dentro, sem hierarquia nem chefe e desenvolvendo sistemas de navegação livres, sem os quais, provavelmente, o navio já teria arrebentado o casco num iceberg. Trata-se de generalizar a ideia da superioridade destes sistemas e arranjos colaborativos “bucaneiros” sobre a pesada e lenta hierarquia da nossa atual Marinha Mercante”.

    Desse modo, assim entendo, nossa tarefa é justamente contribuir, criticamente e de forma aliada, para fortalecer e publicizar (como o Passa Palavra sempre fez) concretamente essas outras lutas que arranham o casco do navio atual – e, além disso, seguir viagem com os piratas, bucaneiros e coletivos que estão construindo esse outro navio alternativo.

    Abraços para todos.

  15. Olá,

    Comentando novamente, acabo de encontrar o seguinte trecho no livro “O enigma do capital – e as crises do capitalismo”, de David Harvey:

    “Ao longo dos últimos quarenta anos os quadros institucionais organizados de tal resistência à descivilização do capital foram destruídos, deixando para trás uma estranha mistura de velhas e novas instituições, que tem dificuldades em articular uma oposição coesa e um programa alternativo coerente. Esta é uma situação que prenuncia uma situação de dificuldades tanto para o capital quanto para o povo. Isso leva a uma política de après moi le déluge, em que os ricos fantasiam que podem flutuar com segurança em suas arcas bem armadas e bem aprovisionadas (é isso o que a aquisição de terras globais significa?), deixando o resto de nós com o dilúvio. Mas o rico não pode ter a esperança de flutuar sobre o mundo que o capital fez porque agora literalmente não há lugar algum para se esconder”.

  16. Gostei bastante da metáfora também.
    Me chamou atenção, um pouco a par da questão do conteúdo, que achei muito bom e não tenho muito a acrescentar, a forma de metáfora do texto.
    Costumo pensar bastante na questão pedagógica do ensino de Geografia, pois sou professor desta disciplina. E lá pelas tantas, lendo algumas coisas, me veio a questão das metáforas como um recurso pedagógico de elucidação do discurso. Ou seja, colocar um elemento análogo para tornar pedagógico ao entendimento do outro a quem se quer comunicar.
    O Gustavo questionou a eficácia da racionalidade como um discurso mobilizador, não é?
    Participei de uma aula certa vez em que falamos de um povo indígena do Norte do Brasil, os Yanomâmis se não me engano e salvo algum erro de digitação.
    Questionei se naquela sociedade constituída por eles haviam embates estruturais sobre as “regras do jogo” da sua sociedade, como a “luta de classes” e a visão de linearidade Histórica, e se dava para fazer alguma analogia entre a sociedade branca/ocidental/cristã e a sociedade deles.
    O relator de sua convivência com o povo Yanomâmi disse que era difícil, pois a explicação do mundo para eles não tinha nada a ver com a nossa. Não existe História para eles. Existem mitos.
    Um mito pode ser o da existência da Arara, pois um certo dia dois irmãos subiram foram colher frutas mas só um deles era leve o suficiente para subir. Ele comia e distribuía para seu irmão no solo até que começou a comer sozinho. O irmão, que tinha poder espiritual maior disse: faça-se a Arara, que come e não divide com ninguém. A Arara se fez.
    Esse mito pode ser considerado uma metáfora? E se for pode-se dizer que é errada essa explicação?
    Existem muitas explicações para o mundo. Mas o que talvez o Marcelo tentou fazer é colocar que por mais que tudo seja um juízo de valor, tem coisas que são completamente incoerentes e que não podemos deixar que a retórica que emana dos conservadores passe como a única verdade sobre o mundo. Ou seja, tem coisas que podem ser facilmente desconstruídas, pois temos muitos elementos empíricos e discursivos para defendê-lo, e se isso puder ser usado nas salas de aula, nos espaços de debate político, melhor.
    Diante da pergunta se a História pode ser explicada por um discurso lógico/racional/científicodigo: a pergunta que devemos fazer é menos essa, mas o quanto o discurso racional/científico pode nos ajudar a construirmos a sociedade que sonhamos e buscamos. Acho então que a apropriação do discurso científico é vantajosa por ser uma metáfora que nos permite traduzir a nossa maneira a realidade, mas ao mesmo tempo permite criarmos novas metáforas, que nos podem servir para dialogar e nos mobilizarmos.

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