Por Manolo

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Neste balanço político, a política habitacional tem papel fundamental. Para além do óbvio e incontestável efeito de garantir moradia – nem sempre digna – para quem não tem onde morar, a popularidade garantida por investimentos no setor e a alta movimentação de recursos exigida fazem dos programas habitacionais uma das vedetes de qualquer gestão política. No PAC 2 – lançado quando apenas 40,3% das metas do PAC original foram cumpridas, e incorporando obras nele previstas, mas ainda inconclusas – o setor ganha recursos vultosos. Mas qual o pano de fundo destes programas, em especial o programa Minha Casa, Minha Vida?

Em 2008, a Prefeitura de Salvador tinha a petulância de usar um documento oficial para fazer afirmações como estas:

O déficit habitacional estimado em 2000 de Salvador é de 81.400 unidades. Para eliminá-lo são necessários R$ 890 milhões. No entanto, no cenário proposto, verifica-se que os recursos disponíveis (estimados em R$ 553,7 milhões) são inferiores ao total necessário. A demanda acima de 5 salários mínimos será atendida pelo mercado habitacional, não implicando o atendimento público. Na faixa de renda entre 3 a 5 salários mínimos (6.800 domicílios), considera-se que uma parcela significativa (50%) procurará resolver sua necessidade de moradia por meio do autofinanciamento. O restante (3.400 domicílios) procurará o FGTS para obter financiamento o que comprometerá em torno de R$ 51 milhões. Já as 17.800 famílias que recebem de 2 a 3 salários mínimos deveriam ser atendidas por linhas de financiamento subsidiadas pelo FGTS, resultando em um montante de R$ 267 milhões. Para famílias mais vulneráveis, cuja renda é inferior a 2 salários mínimos (50.800 domicílios), considerou-se que 50% da demanda poderia ser atendida com cesta de material de construção. Os demais 50% serão atendidos pela construção de unidades, totalizando na soma das duas opções R$ 356 milhões. As fontes de recursos do OGU/FNHIS e FUNCEP são suficientes para atender a 41% do déficit. As restantes 30 mil famílias ou encontrarão alternativas autofinanciadas ou se manterão no déficit. (Plano municipal de habitação de Salvador – 2008-2025, pp. 74-75, com grifo nosso)

Este cenário, entretanto, é anterior à criação do programa Minha Casa, Minha Vida. A Bahia é uma das estrelas do programa, pois

…foi o primeiro estado a alcançar a meta de contratação do Programa Minha Casa, Minha Vida, com 32,8 mil unidades em 2009, segundo informações da Caixa Econômica Federal. Os empreendimentos estão situados em 23 municípios baianos, liderados por Salvador, com 5.716 moradias, seguido por Feira de Santana, Camaçari, Alagoinhas e Juazeiro. O volume de financiamentos liberados para a Bahia pela Caixa no ano passado atingiu a cifra de R$ 2,452 bilhões, 296% acima do montante alcançado em 2008. Isto representa a casa própria para 215 mil pessoas.

De acordo com o balanço do ano passado, a Bahia também teve o maior número de propostas apresentadas à Caixa para moradias destinadas às famílias com renda, de até três salários mínimos, contemplando 85 mil unidades habitacionais. Em dezembro, a Caixa havia recebido cerca de 3.000 propostas para construir 590 mil moradias no país, como parte do programa, com a contratação de 213 mil unidades. (Revista ADEMI Bahia, ano 9, nº 43, p. 11)

A realidade, entretanto, mostra sinais que a ADEMI oculta. Por baixo dos números do “progresso”, há uma verdadeira ditadura das empresas do setor imobiliário, que atropelou conquistas históricas do movimento de luta pela reforma urbana (Estatuto da Cidade, SNHIS) para, no meio de uma crise internacional originada no setor imobiliário estadunidense, usá-la como desculpa para receber mais subsídios para a produção. Mesmo sabendo que o impacto do financiamento imobiliário sobre o PIB brasileiro é de apenas 3% – algo irrisório frente aos quase 50% de impacto deste mesmo financiamento sobre os PIBs dos EUA e da União Européia – o programa foi tido como medida anticíclica e saudado como solução para resolver parte do déficit habitacional. Na Bahia, segundo a Secretaria de Desenvolvimento Urbano do Governo do Estado (SEDUR), até 2010 18 mil imóveis já haviam sido entregues, 40 mil estavam em construção e outras 40 mil estavam em fase de contratação; mesmo se todos fossem entregues, 98 mil imóveis representam pouco diante das 650 mil unidades necessárias para cobrir o déficit habitacional no Estado.

Pior: diante da hegemonia das empresas do setor imobiliário sobre a política habitacional baiana (e, no caso de Salvador, da política como um todo), nem sequer se sabe se estas 98 mil unidades serão destinadas à extinção do déficit ou à acumulação patrimonial. Um exemplo está no processo de negociação da construção de casas na ocupação de Mata Escura, em Salvador: enquanto o Movimento de Sem Teto da Bahia (MSTB) articulou-se com uma equipe de professores universitários para elaborar um projeto urbanístico de excelente qualidade, nomeado Recanto dos Cajueiros e aprovado pela SEDUR, quando esta última foi apresentá-lo às construtoras responsabilizadas pela execução da obra recebeu um “não” retumbante, e viu-se obrigada a substituir o projeto construído coletivamente pelo movimento e suas assessorias por outro que, em função do aumento do número de apartamentos – e do consequente aumento da margem de lucro das construtoras – precarizava completamente as condições de vida nos imóveis a serem construídos.

Esta hegemonia tem como fundamento de poder um fator histórico importante, ainda não resolvido apesar de décadas de luta popular parcialmente vitoriosa pela reforma urbana: o nó da terra. O nó da terra – expressão usada para designar os entraves políticos, jurídicos e econômicos às reformas sociais impostos, nas cidades, pelas empresas do setor imobiliário e pelos latifundiários urbanos – é ainda forte o suficiente no Brasil para atravancar qualquer possibilidade de vida digna por parte dos trabalhadores. Mas este nó muda de acordo com o ângulo pelo qual é visto: enquanto no campo esta desigualdade no acesso à terra pode ser vista na contradição entre uma pequena quantidade de latifúndios e um número incontável de pequenas propriedades, nas cidades esta desigualdade dificilmente se vê a olho nu. Mas existe, e é tão mensurável quanto – através da retenção especulativa.

O Plano municipal de habitação 2008-2025 de Salvador apresenta dado interessante: aqueles 40km2 de terras não-construídas em Salvador seriam suficientes, segundo “um cálculo realista (…) para a produção de 80 mil unidades habitacionais de interesse social”, pois, ainda segundo o Plano, metade desta área disponível será destinada à habitação “e, desta, uma parte significativa deverá ser disputada pelo mercado para a produção de unidades habitacionais destinadas às faixas de renda superiores a cinco salários mínimos. De modo que restará uma porcentagem pequena para os programas de habitação de interesse social” (pp. 68-69).

Aqui se verifica o quanto de opção política existe por trás dos programas habitacionais baseados na construção de novos imóveis. Toda construção pressupõe uma disputa por terrenos vazios, que o próprio Plano municipal de habitação 2008-2025 já dá por perdida para a habitação de interesse social. Por outro lado, a divulgação de informações atualizadas sobre o déficit habitacional de Salvador por uma reportagem de A Tarde publicada em 2 de agosto de 2011 trouxe informações que não eram novidade alguma, mas surpreenderam ao apontar um “efeito adverso” da retomada do estímulo do Governo Federal à produção de moradias para diversos segmentos de mercado.

Para compreender melhor a situação, voltemos um pouco ao passado antes de falarmos do presente. Segundo dados do Censo IBGE 2000, enquanto há dez anos havia 89.405 imóveis vazios em Salvador (12% do total de imóveis na cidade), havia também um déficit habitacional de 81.400 unidades. Isto significa que, em 2000, se a Prefeitura de Salvador ou o Governo da Bahia empregassem os instrumentos do Estatuto da Cidade (desapropriação-sanção) ou do Código Civil (arrecadação de bens vagos) para colocar estes imóveis vazios à disposição de quem precisa – e não o fazem, em especial a Prefeitura, porque fogem à obrigação de regulamentá-los como o diabo foge da cruz – acabaria com o déficit habitacional e ainda restaria um estoque de 8.005 imóveis.

É este estoque de imóveis vazios sobrante quando se subtrai o número de famílias no déficit habitacional do número de imóveis vazios que temos chamado de retenção especulativa; é, em termos menos precisos, “o que sobra” se todos os imóveis vazios da cidade fossem empregues no combate ao déficit habitacional, se fossem colocados à disposição de quem deles precisa. Apesar das tintas “socialistas” com que se pinta tais medidas, não se trata de “subversão” nem de “revolução”, mas de uma simples aplicação das leis fundiárias que impõem a transformação da terra empregue como “terreno de engorda” em bem econômico de uso imediato – ou seja, de uma correção de deficiências de mercado. Mesmo assim, apesar de já estarem estabelecidas em lei medidas como o IPTU progressivo (Código de Tributos e Rendas do Município de Salvador – CTRM, art. 73), o parcelamento, edificação ou utilização compulsórios (Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano de Salvador – PDDU, art. 248) ou a desapropriação por descumprimento de função social (PDDU, art. 252), elas não são aplicadas porque lhes falta a lei municipal que as regulamentará; e mesmo uma medida de aplicação imediata, como a arrecadação de bens abandonados pelo Município (Código Civil brasileiro, art. 1.276), não é executada por falta de cadastro atualizado de bens no território municipal…

Há mais. A mesma reportagem aponta que enquanto o déficit habitacional em Salvador, segundo cálculo do Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (CEDEPLAR) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), diminuiu para 52.500 moradias, o número de imóveis vazios apontados pelo Censo IBGE 2010 caiu para 77.900 – o que resulta numa retenção especulativa de 25.400 imóveis. Como se vê, diminuíram, em números absolutos, tanto o número de imóveis vazios (11.505 a menos, redução de 12,86%) quanto o número de famílias incluídas no déficit habitacional (28.900 a menos, redução de 35,5%); a retenção especulativa, todavia, pulou de 8.005 em 2000 para 25.400 em 2010 – ou seja, 17.395 imóveis vazios sobrantes a mais, representando incríveis 207% de aumento frente aos valores de 2000. Como se vê, em números absolutos, o déficit foi reduzido e o número de imóveis vazios caiu; mas a retenção especulativa aumentou violentamente. E isto quer dizer, na prática, que a especulação imobiliária urbana em Salvador aumentou violentamente em dez anos, por maior que seja o sucesso dos programas habitacionais – e talvez mesmo por causa disso.

A opção pela construção de novas unidades, em substituição à redistribuição dos domicílios vagos para quem deles precisa, expressa uma opção política bem pensada em favor das empresas do setor imobiliário e dos latifundiários urbanos. Pior: o mercado de terras nas cidades distribui a população no espaço com base no aproveitamento e uso da propriedade privada. Se, segundo estudo do IPEA publicado em agosto de 2009, 46,4% do patrimônio imobiliário brasileiro é usufruído por apenas 10% das famílias do país, como não se vê que esta desigualdade resulta na determinação dos rumos econômicos, sociais e políticos de uma cidade pelo seu restrito grupo de latifundiários urbanos?

Do planejamento urbano feito sob a hegemonia conjunta das empresas do setor imobiliário e dos latifundiários urbanos resultará a criação de novas periferias populares em Salvador – tais como Barro Duro e Cassange, empregues hoje pela Prefeitura como lugar de envio das 19.300 famílias que pretende “relocar” entre 2008 e 2025. Barro Duro e Cassange desempenham hoje, na geopolítica de Salvador, o mesmo papel desempenhado décadas antes pela Boca do Rio e pelo Alto de Coutos. Ou, ainda – segundo a proposta do Plano de “que o governo estadual implante lotes urbanizados em outros municípios da região metropolitana (…) de modo a absorver em condições dignas a população que não conseguirá se alojar em Salvador” – a metropolização da pobreza, resultante da divisão (prática, antes de formal) da Região Metropolitana de Salvador entre cidades de elite (Lauro de Freitas), cidades produtivas (Camaçari, Simões Filho, Candeias, São Francisco do Conde, Madre de Deus, Pojuca), cidades administrativas (Salvador), cidades de veraneio (Mata de São João, Vera Cruz, Itaparica) e cidades periféricas propriamente ditas, polos da pobreza na região. E dentro destas cidades, mesmo consideradas suas funções específicas no planejamento regional, ainda há que se considerar as periferias pobres e contradições sociais derivadas da “vocação” de cada uma.

Leia aqui o próximo artigo.

6 COMENTÁRIOS

  1. Senti falta de referências.

    Procurei no Google por “Recanto dos Cajueiros” e MSTB e só encontrei duas referências: um artigo do jornal Massa Online, que dá a entender que só existia um habitante naquela região, portanto, a única vítima de despejo, e um da deputada do PC do B Olívia Santana, que não cita em nenhum momento o projeto elaborado pelos professores.

    É possível disponibilizar esse projeto na internet, ou citar as referências a ele, bem como a narrativa do processo de luta pela sua implementação?

    Acho que só esse tema já seria merecedor de uma série de artigos, seja aqui neste site, ou em qualquer outro.

  2. Gustavo,

    o problema de muitos dos leitores acostumados com a dita “blogosfera” é pensar que tudo se acha no Google. Há coisas que infelizmente não saem dos gabinetes.

    O caso do Recanto dos Cajueiros é o de uma ocupação com centenas de famílias no bairro de Mata Escura, hoje cadastradas para recebimento de aluguel social enquanto aguardam a construção de seus prédios pelo Governo do Estado, que acompanhei pessoalmente durante um tempo. Serve como referência? Se precisar de mais, posso passar contatos diretos de lideranças locais.

  3. Obrigado Manolo.
    A minha observação não foi no sentido de “duvidar” da existência de tais eventos, mas, como já apontei no primeiro comentário, de me espantar pela ausência – porque não, na “blogosfera” – de relatos detalhados sobre eles.
    Exatamente para amplificar-lhes a importância.
    Na minha opinião, relatos muito detalhados sobre eventos pontuais – especialmente estes fora do grande circuito midiático – são tão importantes quanto análises de maior fôlego e mais amplas, como a que você faz aqui.
    Se virão em forma de livro, documentário, ou qualquer outra, tanto faz, contanto que estejam registrados, em detalhe.
    Foi apenas neste sentido o meu comentário.
    No mais, excelente artigo.
    Obrigado mais uma vez.

  4. Eu gostaria de fazer partee dessa historia eu tabem gostaria de ter um cantinho pra mim e pro meu filho
    Vcs fizeram um bom trabalho para essas Pessoas e hoje eles tem Oportunidades

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